quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Parceria entre o MPE e a DPE

Ontem, no dia 28/09/2011, viajei a Caicó/RN para acompanhar a primeira audiência de uma Ação Civil Pública que possui como autores a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Deixando de lado a discussão sobre a legitimidade da Defensoria Pública para propor Ação Civil Pública (ADI 3943), os dois órgãos se uniram para, colocando em primeiro lugar o interesse da sociedade, utilizar a ferramenta legal como instrumento para buscar Justiça.

No caso em tela, a demanda pretende que o Estado do Rio Grande do Norte providencie uma urgente reforma da Penitenciária Estadual de Caicó. O processo possui inúmeros documentos e laudos periciais que constataram diversos problemas. Eis os mais graves:

1. Eletricidade - Devido à falta de manutenção, houve uma pane elétrica na Penitenciária. A energia ainda não foi restabelecida totalmente e existem diversos pontos onde a instalação está exposta;

2. Água - Só existe água durante 15 minutos por dia para os presos. Isto em uma região extremamente quente;

3. Esgoto - Devido à superlotação, o esgoto é insuficiente e está estourado, o que, além do mau cheiro, leva ao surgimento e proliferação de doenças;

4. Prevenção de incêndio - Não existem extintores ou mangueiras para combater um eventual incêndio, que seria uma catástrofe;

5. Estrutura - Existem diversos pontos de enfraquecimento estrutural que, além de colocar em risco os agentes e presos, podem facilitar fugas.


Os dois órgãos ingressaram ainda, também em conjunto, com uma outra Ação Civil Pública, desta vez para a construção de uma Cadeia Pública na cidade. Mas esta ainda não teve audiência.


Chegamos ao fórum para a audiência de conciliação que iria se iniciar às 14h. O Fórum de Caicó é grande e bem estruturado.


O ato processual aconteceu em uma sala de audiências que mais parecia uma sala de reuniões.


Da esquerda para a direita, estavam presentes à audiência José Olímpio (Coordenador do Sistema Penitenciário), os juízes Luiz Cândido Villaça e André Melo Gomes Pereira, o Procurador do Estado José Duarte Santana, o Promotor Geraldo Rufino, o Defensor Público Rodrigo Gomes e Pedro Henrique Dantas da Rocha, o representante da OAB/RN.

De antemão, fiquei sabendo que o juiz André Melo costuma convocar a OAB, a Defensoria Pública e o Ministério Público sempre que uma Ação Civil Pública é ingressada, não importa quem seja o autor. Pareceu-nos uma medida salutar e reconhecedora da importância destas instituições, principalmente na luta pelos direitos humanos fundamentais e sociais.

A reunião foi longa, mas proveitosa. Foram tecidos diversos comentários sobre a situação no Sistema Prisional Estadual e sobre as condições de encarceramento específicas de Caicó.
O Coordenador do Sistema Penitenciário reconheceu os problemas, mas elencou as dificuldades de ordem financeira e procedimental pela qual passa o Estado.

O Secretário Thiago Cortez não pode comparecer à audiência por estar em Mossoró em um evento do Governo do Estado, mas, por telefone, comprometeu-se a apresentar, em 60 dias, um projeto técnico para solucionar as pendências.

Uma nova audiência foi marcada para o dia 30/11/2011, quando o Secretário deve comparecer e quando deverá ser discutido o cronograma da realização da obra.


A análise final é que o Ministério Público e a Defensoria Pública saem fortalecidos da parceria, sendo notável a sintonia entre os representantes destes órgãos na discussão do tema Sistema Penitenciário. A sociedade agradece.

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Núcleo Regional do Seridó

Localizada em pleno Semi-Árido, em área de solos de baixíssima fertilidade (salvo os escassos aluviões), a região do Seridó está submetida a regime de escassez e desigual distribuição de chuvas. No Rio Grande do Norte (parte da região se localiza na Paraíba), vivem no Seridó quase 300 mil pessoas, mais da metade (52%) na zona rural.

De acordo com Tânia Bacelar de Araújo (aqui), "se a natureza não dotou a região de abundância em água e terra fértil, a sociedade que ali se desenvolveu é constituída de pessoas que sempre valorizaram a educação, que têm iniciativa, que são solidárias entre si, que sabem se organizar para conquistar o que julgam importante, que não se deixam abater pelas adversidades. Um povo com uma cultura muito especial, que sabe construir seus próprios caminhos, que sabe o que quer".
 
A maior cidade da região (no RN) é Caicó, que se localiza na microrregião do Seridó Ocidental, na região centro-sul do Estado, distando 256 km da capital. Caicó possui o mais alto índice de desenvolvimento humano do interior e do semiárido nordestino, a maior expectativa de vida ao nascer (73,317 anos), o maior índice de longevidade (0,805) e o menor índice de exclusão social do Estado. A festa da padroeira Sant'Ana, realizada no mês de julho, em 2010 foi tombada como patrimônio imaterial do Brasil pelo IPHAN.

Contam-se várias lendas sobre a origem da cidade, porém todas citam um vaqueiro português que, à procura de água para o seu gado, durante uma seca, se deparou com um touro bravio de feições míticas. Aflito, o vaqueiro fez uma promessa a Sant'Ana, comprometendo-se a construir uma capela em sua homenagem se sobrevivesse e encontrasse água. O touro sumiu e o vaqueiro encontrou um poço que nunca secou. Ele contou o episódio a amigos e, juntos, iniciaram a construção da capela que é o marco inicial do povoamento de Caicó.
 
Em 2008, a Defensoria Pública criou o Núcleo Regional do Seridó, com sede em Caicó. Hoje, o Núcleo responde pela sede, com 62.727 habitantes, e por mais 10 comarcas (Acari, Currais Novos, Cruzeta, Florânia, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó, Jucurutú, Parelhas, São João do Sabugi e Serra Negra do Norte). Uma população total de 279.525 habitantes sob a responsabilidade de apenas dois Defensores Públicos: Rodrigo Gomes da Costa Lira e Francisco de Paula Leite Sobrinho. Segundo o Ministério da Justiça, o ideal seria uma proporção de um Defensor para cada 10.000 habitantes, ou seja, 28 defensores.
 
No entanto, ao conhecer o Núcleo no dia de ontem (28/09/2011), vi dois obstinados e incansáveis Defensores Públicos, respeitados pela comunidade jurídica e pela população carente. Conversando com os colegas, descobri que o Núcleo é responsável por diversas Ações Civis Públicas, investe forte na conciliação extrajudicial e atua efetivamente em todas as comarcas assistidas.
 
Assisti a um interessante processo de conciliação capitaneados por um psicólogo e um assistente social voluntários, conheci servidores estimulados e atenciosos, observei um assistido, ainda com o dedo manchado pela tragédia do analfabetismo, agradecer entusiasmado a solução de seu problema.

A estrutura da sede administrativa do Núcleo é um casarão espaçoso, mas que precisa de urgente manutenção. O casarão fica em uma região central da cidade, mas um pouco distante do Fórum, que fica em um bairro nobre. Longe das salas de audiências, mas próximo da população. A cor verde da Defensoria poderia ser mais discreta.
 
Embora este não tenha sido o objetivo principal da visita, foi muito proveitoso o contato com os colegas e com a realidade do Núcleo Regional do Seridó.
Parabéns aos guerreiros Rodrigo e Francisco pela sua dedicação e competência.



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Sistematização da conversão em preventiva após a Lei 12.403/2011


Um dos posts mais visitados do blog é o “Novas regras para a prisão cautelar e aantecipação de seus efeitos”, que aborda as novas regras sobre a prisão após as modificações da Lei nº 12.403/2011.

Tentando sistematizar meu entendimento sobre o tema de forma mais didática, elaborei uma espécie de checklist, um passo a passo que deve ser seguido, a meu ver, pelo juiz ao receber os autos de prisão em flagrante.

Introdução.

Segundo o pensamento de Jean-Jacques Rousseau em seu Do Contrato Social (1757), nenhum homem possui poder natural sobre o outro. Na natureza, cada homem é portador de mais absoluta liberdade. Mas, em busca de segurança e autopreservação, o homem passou a viver em sociedade.

Em seu Do Espírito das Leis (1748), Montesquieu afirma que, quando os homens passaram a viver em sociedade perderam o sentimento de sua própria fraqueza. Seduzida com a ilusão da força dos números, cada sociedade passou a querer subjugar as outras, o que gerou um estado de guerra entre as nações. Ao mesmo tempo, cada indivíduo, em cada sociedade, começou a achar-se forte e a buscar algum tipo de vantagem de sua sociedade, gerando um estado de guerra entre os membros da agremiação. Essas espécies de guerra geraram a necessidade do estabelecimento de leis entre os homens.

Pelo chamado contrato social (Rousseau), cada indivíduo cede parte de sua liberdade à coletividade em troca de segurança. Quanto mais segurança, menos liberdade. Quanto mais liberdade, menos segurança. De acordo com Noberto Bobbio, “as sociedades são mais livres na medida em que são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres”.

Os bens mais caros a uma determinada sociedade são protegidos através do Direito Penal, que estabelece condutas proibidas e penalidades para quem desobedece estas regras. Para proteger o cidadão dos excessos do Estado, surgiu o Direito Processual Penal.

Para Malatesta (A Lógica das Provas em Matéria Criminal), enquanto o Direito Penal deve ser “a espada infalível para golpear os delinqüentes”, o Direito Processual Penal, “sendo o braço que guia com segurança aquela espada contra o peito dos réus, deve também ser o escudo inviolável da inocência”.

De acordo com o Princípio da Liberdade Individual ou do Estado de Necessidade, todo cidadão tem os direitos de ir, vir e permanecer.

A liberdade é a regra do Estado Democrático de Direito, ensejando que qualquer restrição ou privação deve ser medida excepcional, que só poderá ocorrer quando houver motivo, fundamento e necessidade.

Com a edição da Lei 12.403/2011, o legislador brasileiro ressalta mais uma vez que a prisão cautelar antes do trânsito em julgado da sentença condenatória deve ser uma exceção.

Para Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva é medida de exceção, devendo ser interpretada restritivamente, para compatibilizá-la com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII da CF), afinal, o estigma do encarceramento cautelar é por demais deletério à figura do infrator”.

Para Júlio Fabbrini Mirabete, “sabido que é um mal a prisão do acusado antes do trânsito em julgado a sentença condenatória, o direito objetivo tem procurado estabelecer institutos e medidas que assegurem o desenvolvimento regular do processo com a presença do imputado sem o sacrifício da custódia, que só deve ocorrer em casos de absoluta necessidade. Tenta-se assim conciliar os interesses sociais, que exigem a aplicação e a execução da pena ao autor do crime, e os do acusado, de não ser preso senão quando considerado culpado por sentença condenatória transitada em julgado”.

Em matéria de prisão cautelar, aqui pretendemos nos focar exclusivamente no procedimento que deve ser seguido pelo juiz na hora em que recebe o auto de prisão em flagrante.

São cinco etapas que, ultrapassadas de forma fundamentada pelo julgador, podem permitir o encarceramento cautelar do suspeito, indiciado ou acusado.

Vale observar que, falhando em ultrapassar fundamentadamente qualquer das fases, deve o juiz liberar o acautelado, sem a necessidade de analisar as demais. Assim, por exemplo, se a preventiva é inadmissível (etapa 02), não é possível se manter a custódia cautelar como garantia da ordem pública (etapa 04).

Etapa 01: Licitude do flagrante.

Esta é a primeira pergunta que o julgador deve responder: o flagrante é lícito?

Diversas são as ilegalidades que podem ocorrer durante a efetivação da prisão. Se os direitos do acautelado não foram a ele informados, se houve invasão domiciliar ou se houve tortura, para ficarmos apenas com estes exemplos, entendemos que estas violações aos direitos humanos pelo Estado desautorizam a manutenção da custódia cautelar.

Mas, no mínimo, o julgador deve atentar para as hipóteses legais em que é admitida a prisão em flagrante. O acusado tem que ter sido preso enquanto o crime era cometido (flagrante próprio), logo após o cometimento do crime e em situação que faça presumir que ele é o autor do fato (flagrante impróprio) ou logo depois a infração ter ocorrido e na posse de objetos que façam crer ser ele o autor do delito (flagrante presumido).

Fora dessas hipóteses, não há flagrante e a prisão é ilegal (mesmo nos casos em que a lei expressamente admite a postergação do flagrante, o fato é que a autoridade policial tem que ter presenciado o autor em alguma daquelas situações, apenas adiando a detenção).

É necessária também a observância do cumprimento das formalidades legais da prisão em flagrante, em especial no que se refere às comunicações obrigatórias (ao juiz, à família e à Defensoria Pública). Não realizadas as comunicações nos prazos legais, o flagrante deve ser relaxado.

Ultrapassada esta etapa, ou seja, sendo lícito o flagrante, não é possível a manutenção da prisão cautelar apenas por isso, é necessário se decidir pela sua conversão ou não em prisão preventiva.

Etapa 02: Admissibilidade da Preventiva.

A prisão preventiva, segundo o art. 313 do CPP, só é admissível se: (a) a pena máxima cominada abstratamente for superior a 04 anos; (b) o acusado for reincidente em crime doloso com sentença transitada em julgado; ou (c) o crime envolver violência doméstica e familiar. Contrario sensu, fora destas hipóteses, a prisão preventiva é inadmissível.

A primeira observação que deve ser feita é que basta que o acusado seja reincidente em crime doloso, que a pena máxima abstratamente cominada seja superior a 04 anos ou que o crime envolva violência doméstica para que a preventiva seja admissível. Não é necessário o enquadramento em todas as alíneas. Ademais, é uma análise objetiva, que não admite maiores ponderações.

A segunda observação é que, se a preventiva é inadmissível, não há que se manter a prisão por qualquer outro motivo previsto nas etapas posteriores. Por exemplo, o fato de o flagranteado não possuir comprovante de residência ou carteira de identidade não pode ser utilizado para manter uma prisão preventiva que a lei não admite.

Nesse exemplo, é muito interessante a solução encontrada pela magistrada Marlúcia de Araújo Bezerra em decisão publicada no siteda Associação de Juízes para a Democracia. A julgadora determinou a soltura do acusado e determinou que a autoridade policial o identificasse corretamente[1].

Etapa 03: Existência dos Pressupostos da Preventiva.

Para haver a decretação da preventiva, necessária a prova da materialidade delitiva, bem como de indícios críveis da autoria.

Neste sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues são contundentes: “para a decretação da preventiva é fundamental a demonstração de prova da existência do crime, revelando a veemência da materialidade, e indícios suficientes de autoria ou de participação na infração (art. 312, caput, in fine, CPP)”.

Não há sentido em se manter uma prisão cautelar, por exemplo, se o fato é atípico pela aplicação do princípio da insignificância, ou se não houve a apreensão da arma de fogo no crime de porte.

Etapa 04: Enquadramento nas hipóteses da Preventiva.

Ultrapassadas as etapas anteriores, necessário observar se o caso se enquadra nas hipóteses em que a lei recomenda a medida: (a) como garantia da ordem pública ou da ordem econômica; (b) por conveniência da instrução criminal, caso a liberdade do acusado cause concreto obstáculo à elucidação dos fatos; ou (c) para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver dúvida sobre a identidade do acusado ou fundado risco de fuga (Art. 312 do CPP).

Nesta etapa, necessário se ter bastante cuidado para não cair nas armadilhas da construção genérica da norma. Não existe acordo na doutrina ou jurisprudência quanto ao que seria a tal “ordem pública”, por exemplo.

O fato é que o enquadramento em qualquer das hipóteses deve ser fundamentada em fatos concretos e é inadmissível que o magistrado utilize esta etapa para manifestar seu repúdio pessoal a qualquer tipo de crime.

De acordo com Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva não poderá ser decretada para preservação da integridade do próprio suspeito, por medo de que seja linchado ou assassinado por parentes da vítima”. Também não é possível se manter a prisão para não afetar a imagem da Justiça.

Etapa 05: Insuficiência de Medida Cautelar ou Desnecessidade de Prisão Domiciliar.

Caso o flagrante seja lícito e, na situação concreta, além de ser admitida a preventiva, estejam presentes os seus pressupostos e haja o enquadramento nas hipóteses legais em que a medida é recomendada, a conversão em prisão preventiva é possível.

No entanto, antes de converter a prisão em flagrante em preventiva, o julgador deve verificar se não é suficiente a substituição por uma medida cautelar ou se não é caso de aplicação da prisão domiciliar.

Poderá ser decretada medida cautelar em sua substituição observando-se a: (a) necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; e (b) adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282 do CPP).

Eis as espécies de medidas cautelares:

Art. 319 do CPP. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica. 

O juiz deverá substituir a preventiva por prisão domiciliar quando o agente for: (a) maior de 80 (oitenta) anos; (b) extremamente debilitado por motivo de doença grave; (c) imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; ou (d) gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco (art. 318 do CPP).

A conversão da prisão em flagrante em preventiva só deve ocorrer se não for aplicável prisão domiciliar ou se não for suficiente a medida cautelar.


[1] “O acusado deverá ser apresentado, pela autoridade administrativa responsável pela custódia, ficando esta responsável também pela correta identificação do custodiado, ao Oficial de Justiça encarregado da diligência de cumprimento do alvará de soltura”.

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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Princípio da Adequação Social - Da Série Seis teses sobre a violação de direitos autorais (Parte III)

Princípio da Adequação Social

O Direito Penal moderno não atua sobre todas as condutas moralmente reprováveis, mas seleciona aquelas que efetivamente ameaçam a convivência harmônica da sociedade para puni-las com a sanção mais grave do ordenamento jurídico.

Esse caráter subsidiário do Direito Penal determina que a interpretação das suas normas deve levar sempre em consideração o princípio da intervenção mínima, segundo o qual, o Direito Penal só deve cuidar das condutas de maior gravidade e que representam um perigo para a paz social, não tutelando todas as condutas ilícitas e sim apenas aquelas que não podem ser suficientemente repreendidas por outras espécies de sanção - civil, administrativa, entre outras.

Assim, o Direito Penal deve reprimir aqueles comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos à sociedade.

Corolário da intervenção mínima, surgem os princípios da insignificância e da adequação social, o primeiro criado por Claus Roxin e o segundo por Hans Wezel, ambos reduzindo o âmbito de incidência do Direito Penal.

Em tradução a palavra Adequação é proveniente do latim “adaequare” e significa adaptar ou ajustar-se. Tendo como fundamento principal essa premissa, estrutura-se toda a concepção referente ao “Princípio da Adequação Social” e que possui como aspecto primordial à necessidade de constante adaptação, por parte do Ordenamento Jurídico, aos fatos produzidos pela coletividade, a fim de manter a relação de interdependência – "Ubi societas, ibi jus".

De acordo com o princípio da adequação social, é impossível se considerar como delituosa e sujeita a sansão uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que se enquadre em uma descrição típica. Logo, se um comportamento, em determinadas circunstâncias, não recebe juízo de reprovação social, não pode constituir um crime. Como observa Mir Puig[1], “não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto”.

Dessa forma, pode-se salientar que esse princípio se constitui a partir de um critério de subjetividade de aceitação ou reprovação, determinado pela sociedade, e que, por vezes, se desdobra em uma exteriorização a ser materializada pelo legislador e pela comunidade jurídica. Isto é, o legislador não possui a faculdade de produzir, por meio da legislação, normas que firam, seja de forma explícita ou implícita, o consenso de justiça estabelecido e abraçado pela sociedade. Além disso, o Direito como um reflexo dos anseios da sociedade, não tem por meio da comunidade jurídica a “permissão” da população de cominar uma sanção ao fato concreto, se ele for considerado como algo típico e costumeiro.

Tal fato ocorre, haja vista que a evolução dos costumes e hábitos, adotados pela população, diante de específicos assuntos e “instituições”, deve prevalecer e, por conseguinte, estar em consonância com o anseio geral. Como forma de ilustrar o exposto, basta analisar a questão da descriminação do artigo 240, do Código Penal Brasileiro, que antes cominava uma pena para os crimes que configurassem como adultério e que foi revogado pela Lei n° 11.103/2005. Tornou-se pungente esse fato, devido ao cenário de concepção do diploma legal, no ano de 1940, e a sociedade que hoje ele rege, em pleno século XXI.

Um exemplo de condutas formalmente típicas que, no entanto, tem a tipicidade excluída devido à Adequação Social, seria a circuncisão, realizada na religião judaica. Outro exemplo seriam as lesões corporais causadas em partidas de futebol. São ações destituídas de tipicidade material, pois são coletivamente permitidas. É importante ressaltar que, todavia, a sociedade deve tolerar tais condutas, portanto, este princípio não abarca ações excessivas, que estejam fora dos limites da normalidade.

O princípio da adequação social deve nortear o intérprete da norma penal na aferição do juízo de lesividade de uma conduta necessário para a caracterização da tipicidade material de um fato que, em conjunto com sua tipicidade formal, caracteriza a conduta como típica, primeiro elemento do conceito analítico do crime.

Falando especificamente da venda de mídias “piratas” por ambulantes, o juiz Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, da 8ª Vara Criminal de Belo Horizonte, afirmou que a pena pela violação de direitos autorais deveria incidir sobre os verdadeiros responsáveis pela reprodução e distribuição dos produtos, “que almejam lucro imensurável e quase sempre são comandados por organizações criminosas”. O ambulante vende o produto “talvez não por opção, mas porque o mundo do subemprego é a única coisa que ainda resta para se ganhar a vida”[2].

De acordo com Monteiro de Castro, a violação dos direitos autorais é um problema global que deve ser encarado do ponto de vista social. Ele lembrou um artigo de autoria de um membro do Conselho Nacional de Justiça, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, em que a discussão acerca da ilegalidade da pirataria foi abordada por outro ângulo. O texto refere que a incapacidade das empresas produzirem produtos compatíveis com o nível de renda do consumidor brasileiro é a principal causa da ilegalidade.
“Em vez de campanhas publicitárias milionárias, ações policiais e judiciais e da permanente intimidação moral do consumidor, as empresas deveriam investir para reduzir custos, aumentar a eficiência e adaptar seus modelos de produção à realidade dos países emergentes”, afirmava o artigo.

Por certo, a reprodução e comercialização de produtos falsificados devem ser combatidos. No entanto, o Estado se vê longe da atuação mais coerente. Não é difícil encontrar diversos lugares onde artigos ‘pirateados’ e contrabandeados são comercializados sem a menor fiscalização. Tal fato se tornou aceitável pela esmagadora parcela da população, consumidora assídua dos produtos, e deixou de ser coibido pelo próprio Estado. Diversos são os shoppings populares, autorizados pelo Estado, para comercialização de artigos ditos populares, mas que, na verdade, são uma grande feira de pirataria. Tudo que se vende são materiais falsificados, sem notas fiscais.

Em verdade, não há justificava democrática para se ‘criminalizar’ questões meramente patrimoniais, as quais podem ser resolvidas no seu respectivo campo civil, mediante ações respectivas. O Direito Penal não deve servir de longa manus das grandes corporações que se valem do Estado apenas para manter a exploração, ainda mais em se tratando de Brasil. O caso é de típica demanda civil, sem que qualquer pretensão penal possa possa ser deferida, sequer pela questão tributária, pois esta, também, não implica em prisão.

Monteiro de Castro também destaca que a pena mínima de dois anos de reclusão, taxativa ao crime de violação de direitos autorais, é pena demasiadamente exagerada para um caso como este, porque existem outros meios eficazes de combate à falsificação, tais como apreensão das mercadorias e multa administrativa.

Neste sentido:

APELAÇÃO CRIMINAL - VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL - ADEQUAÇÃO SOCIAL - CASO CONCRETO - ABSOLVIÇÃO - MEDIDA QUE SE IMPÕE. I - O Direito Penal moderno não atua sobre todas as condutas moralmente reprováveis, mas seleciona aquelas que efetivamente ameaçam a convivência harmônica da sociedade para puni-las com a sanção mais grave do ordenamento jurídico que é - por enquanto - a sanção penal. II - O princípio da adequação social assevera que as condutas proibidas sob a ameaça de uma sanção penal não podem abraçar aquelas socialmente aceitas e consideradas adequadas pela sociedade. V.V. (TJ-MG. 5ª Turma. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0325.08.009107-8/001 - COMARCA DE ITAMARANDIBA - RELATOR PARA O ACÓRDÃO: EXMO SR. DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO).
APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. APREENSÃO DE DIVERSOS TÍTULO DE CD E DVD "PIRATAS" EXPOSTOS PARA VENDA. [...] PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO - AUSÊNCIA DE CONTEÚDO MATERIAL DO CRIME - ABSOLVIÇÃO DECRETADA INTELIGÊNCIA DO ART. 386, III, DO CPP - RECURSO PROVIDO. O Direito Penal deve punir somente as condutas que atinjam de maneira mais veemente os bens jurídicos essenciais ao convívio em sociedade, sendo sua aplicação reservada, ademais, quando os demais ramos do direito foram insuficientes para cumpri essa função. Na esteira do entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal, o princípio da insignificância é aplicável quando os vetores da mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada se fazem simultaneamente presentes. (TJMS; ACr Itaporã; Primeira Turma Criminal; Rel. Des. João Carlos Brandes Garcia; DJEMS 21/09/2009; Pág. 35)
APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. ART. 182, § 2º, CP. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO. POSSIBILIDADE INEXISTÊNCIA DE OFENSA GRAVE OU PERIGO CONCRETO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. Ante a não ocorrência de grave ameaça ou perigo concreto ao bem jurídico tutelado pela norma, elementos que estão presentes na conduta da agente, deve-se reconhecer a atipicidade do ilícito, em respeito ao princípio da insignificância. (TJMS; ACr Jardim; Segunda Turma Criminal; Rel. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte; DJEMS 24/06/2009; Pág. 38).
APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. ADEQUAÇÃO SOCIAL. CASO CONCRETO. ABSOLVIÇÃO. MEDIDA QUE SE IMPÕE. I - O Direito Penal moderno não atua sobre todas as condutas moralmente reprováveis, mas seleciona aquelas que efetivamente ameaçam a convivência harmônica da sociedade para puni-las com a sanção mais grave do ordenamento jurídico que é - Por enquanto - A sanção penal. II - O princípio da adequação social assevera que as condutas proibidas sob a ameaça de uma sanção penal não podem abraçar aquelas socialmente aceitas e consideradas adequadas pela sociedade. (TJMG; APCR 1.0699.07.072907-3/0011; Ubá; Quinta Câmara Criminal; Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho; Julg. 15/12/2009; DJEMG 27/01/2010)



[1] MAGALHÃES, Joseli de Lima. O princípio da Insignificância no Direito Penal. http://www.jus.com.br/doutrina/insigni.html, 08 de maio de 2000.
[2] http://www.conjur.com.br/2008-jun-30/ambulante_vendia_produtos_piratas_absolvido.

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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Acesso à Justiça, Direito e Avesso (Marcelo Semer em 23/09/2011)

Acesso a justiça é combinação de responsabilidade pública, compromisso com a igualdade e gestão democrática.

Segue abaixo o texto-base da minha participação no debate “Judiciário e Acesso à Justiça”, dentro do Congresso “Direito e Avesso”, realizado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, em 22 de Setembro, na Sala do Estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Na oportunidade, estava também na mesa o Defensor Público Gustavo Reis, da Escola da Defensoria Pública, do Estado de São Paulo.

Palestra direito/avesso: Judiciário e acesso à justiça

Enorme satisfação em estar neste evento, especialmente nesta sala do Estudante. Quando presidente do C.A. Xi de Agosto, nossa gestão rebatizou a sala, temporariamente, de Sala da Constituinte.

Aqui já eram realizadas as reuniões do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte e marcamos como o local permanente de colheita de assinaturas para as emendas populares quando da instalação da Constituinte em 1988. Nesta mesma mesa, ficavam espalhadas as propostas de emendas que trabalhadores, aposentados e estudantes assinavam.

No fundo, voltando a este evento, continuamos discutindo a mesma coisa: construir mecanismos para que o povo se aproprie do Estado.

 Não me proponho aqui a fazer uma palestra de cunho acadêmica ou teórica –não sou um estudioso da justiça. Pretendo dar um testemunho da minha experiência como juiz e, utilizando dos instrumentos e das preocupações compartilhadas na vivência da Associação Juízes para a Democracia, estabelecer algumas considerações críticas.

Associação Juízes para a Democracia que completa 20 anos neste 2011 e que, por coincidência, também começou com uma reunião nesta casa com 37 juízes paulistas –hoje, felizmente, ampliou-se abarcando colegas de todas as justiças e de todos os Estados.

Mas continuamos firmes no propósito de construir um Judiciário mais justo, mais solidário, instrumento de uma democracia além das formas.

A fotografia mais comum do Judiciário é o gargalo, a lentidão.

O Poder Judiciário incapaz de resolver em tempo razoável com o volume expressivo de suas demandas. A modernização do conhecido ditado já o levou a dizer: a justiça que tarda, falha.

Penso que é preciso estender um pouco a visão.

Se é verdade que o Judiciário está entupido de processos, de outro lado ainda está carente de demandas. Há uma nítida mistura de excesso e escassez, principalmente, neste último caso, persistem estratos da população ainda invisíveis para o Estado.

Penso que a distribuição dos custos do sistema também é desproporcional. Os atrasos e as dificuldades não são sentidos ou suportados da mesma forma por todos. Duas pesquisas recentes do CNJ indicam de forma visível essa desproporção:

45% dos presos são provisórios –com processos que ainda não terminaram;
Entre os 100 maiores litigantes nos tribunais superiores, além dos órgão públicos, só encontram-se bancos.

Em resumo: pobres superlotam cadeias, enquanto ricos entopem tribunais.

Tudo isso serve para que nos convençamos que não existe no Judiciário apenas um problema: a lentidão.

Durante muito tempo, nos concentramos na economia como se existisse apenas o problema da inflação. Mas quando a inflação ficou sob controle, nem por isso se pôde dizer que a desigualdade social (nosso problema mais agudo) havia sumido.

Além de não ter instrumentos para julgar em tempo razoável as demandas que nele ingressam, Judiciário de certa forma reproduz a desigualdade que lhe incumbia debelar.

Durante muito tempo, Judiciário se colocou ao largo do problema de sua lentidão, responsabilizando o Executivo, pela falta de recursos financeiros e o Legislativo, pelo excesso de recursos processuais.

Com a reforma, o Judiciário começa a se convencer de que também é parte do problema e isso é um lado extremamente positivo que se deve à criação do CNJ, que quebrou uma visão cartorial e quase coronelista dos Tribunais.

Instaurou-se a ideia de que Justiça sofre de problemas de e padece de ineficiência. Isso nos faz olhar um pouco para nós mesmos e quebrar um sentido histórico de arrogância e só por isso vale a pena.

Mas é preciso ter em conta que uma gestão com postulados de administração privada nem sempre esgota a solução de todos os problemas e ainda cria alguns efeitos colaterais.

Indicadores, metas, resultados são importantes instrumentos para a política da eficiência (obtenção do resultado a menor custo).

Mas sempre é bom ter em conta que Judiciário também deve ter uma dimensão ética (resultado não pode ser alcançado a qualquer custo).

Não é porque custa trazer presos para o Fórum, que vamos negar direito de estar presente à audiência.

E também uma função emancipatória (não é qualquer resultado que nos interessa). Não é porque os tribunais estão abarrotados, que devemos limitar abrangência de Habeas Corpus: Justiça deve ser instrumento de fruição dos direitos constitucionais.
Efeito colateral é a síndrome da planilha e a produção da máquina de julgar, o que, no limite, esvazia o caráter de julgamento (que não é o mesmo que decidir).

Mas a maior crítica ao CNJ é imaginar ser possível modernizar a justiça sem ao mesmo tempo democratizá-la.

Poucas foram as iniciativas do CNJ para ampliar os espaços de democratização interna no Judiciário –espaço em que ainda os ares da redemocratização simplesmente não alcançaram.

Ao revés, quando entrou em questão uma das poucas medidas tímidas de democratização interna, a eleição de metade dos integrantes do órgão especial, o papel do CNJ foi de primeiro obstar eleição por liminar e depois reduzir sua abrangência ao mínimo possível (garantindo o assento a quem lá já estava, tratando cargo de representação como inamovível).

Uma ingenuidade acreditar que é possível modernizar sem democratizar –sem eliminar o caráter ainda oligárquico dos tribunais.

Um exemplo de como o exercício do poder interfere na administração pode ser visto em SP. Durante décadas, desembargadores ficaram protegidos dos crescimentos de demandas. Faziam um represamento estipulando um número máximo de processos que eram distribuídos a cada membro do Tribunal. Se um juiz da primeira instância tentasse fazer o mesmo –dizer a seu escrivão quantos processos lhe enviar à conclusão por semana, seria punido. Assim fazendo, criou-se uma enormidade de processos represados, sem a sensação de ver as mesas superlotadas de processos quando o movimento crescia. Um estoque de quase meio milhão de processos foi assim criado no TJ.

E quando a reforma do Judiciário determinou a distribuição imediata de todos os processos, qual foi a primeira medida do órgão especial? Seus membros decidiram ficar fora da distribuição ordinária, sob o argumento de que havia muitas questões administrativas a discutir quando a junção dos tribunais.

E a segunda? Acertar a criação de um grupo de juízes de primeira instância para baixar o estoque que os próprios tribunais haviam criado.

É uma pena o total desprestígio da democratização interna.

Até o STF, que distribui ativismo para todos os lados, quando olhou para dentro da Justiça, fez valer uma regra draconiana do entulho autoritário para decidir que apenas os mais antigos entre os mais antigos dos desembargadores podiam ser candidatos aos cargos diretivos.

Em SP, por exemplo, as gestões de dois anos se reduziram a no máximo um: os desembargadores que as ganhavam eram tão antigos que não conseguiam cumprir a gestão antes de aposentar.

A última medida da primeira gestão deste retorno à gerontocracia tomou uma medida administrativa de muita importância: garantiu direito à segurança aos ex-dirigentes do Judiciário, em moldes similares ao que tem um ex-governador.

E nem é preciso dizer, porque já se tornou público, pelo pior motivo possível, como os tribunal decidem a segurança para os juízes...

Ingressando no tema de acesso à justiça.

Nenhuma política de acesso à Justiça é mais importante do que uma educação pública de qualidade –quem não conhece, não exige, não se defende, não pressiona.

É fato que a distribuição de renda no Brasil é abissal; e a distribuição de educação é ainda mais profunda, o que termina por condenar grandes parcelas da população a subempregos e subsalários.

Mesmo no que respeita à Justiça, a compreensão dos direitos é extremamente fragilizada –há um nítido desconforto e insegurança de parcelas expressivas da população quanto a sua própria posição de credor de políticas; um enorme desconhecimento de situações que acabam por ensejar, muitas vezes, prática de ilícitos ou vitimizações.

Lembro de questões que vejo cotidianamente na Justiça Criminal. A aquisição por parte das pessoas de menor instrução de bens sem qualquer documentação ou segurança.
Algumas vezes elas são processadas por receptação, porque juízes avaliam que não tomaram medidas de cautela que um comprador normal (com mais instrução, provavelmente) teria tomado; em outras, são vítimas freqüentes de estelionatários, como acontece em loteamentos irregulares.

Há, sem dúvida, um enorme estranhamento diante da Justiça, seja pela desconfiança, seja pelo medo.

E não se pode dizer que o Judiciário de alguma forma auxilie a quebrar essa barreira.

O poder ainda é construído de forma imperial, seus edifícios são Palácios, seus tribunais são Cortes, e as vestes tradicionais intimidam e em muitos casos afastam.

Não é desconhecido, por exemplo, caso do juiz trabalhista que não permitiu que operário acompanhasse audiência de seu processo trabalhista de chinelos. Depois da grande repercussão do caso, solidário o magistrado comprou um par de sapatos ao autor da causa.

Mas não compreendeu que não são as partes que devem se vestir de gala para ir ao Fórum, mas os juízes que devem se despir de seus mantos para atingir o povo –ele é nosso patrão, por mais difícil que isso possa parecer. É para ele que trabalhamos e a consecução de seus direitos é que justifica nossos salários.

Eu diria, mais, que há desconhecimentos de parte a parte e que os juízes, em grande medida tampouco conhecem a realidade de nossos habitantes mais humildes.

Evocando aqui Roberto Lyra (que o nome Direito e Avesso evoca) pode-se dizer que nosso direito ainda é encontrado nos livros, não é achado nas ruas

A formação do operador do direito é uma formação positivista, para a qual as regras são muito mais importantes que os princípios, conceitos abstratos de pouca valia.
Costumo lembrar o caso do direito ao silêncio, garantido em 1988. Durante muitos anos, juízes continuaram advertindo os réus que o silêncio era um direito, mas podia ser interpretado a ser desfavor, como estava consignado no Código de Processo Penal até a poucos anos. E muitos réus foram condenados a custo de um suposto “silêncio na lavratura da prisão em flagrante”, sob o fundamento de que: um inocente jamais se cala.

Só quando a lei infraconstitucional mudou, isso de certa forma atenuou-se. A mudança da lei teve um efeito mais decisivo do que a mudança da Constituição.
Pode-se anotar, ainda, a dificuldade que os tribunais superiores tem para disseminar uma jurisprudência mais garantista, que não é seguida pelos TJs, por exemplo, nem mesmo quando se tornam súmulas –embora os tribunais costumem valorizar suas próprias jurisprudências como orientação aos juízes de primeira instância.

Nas escolas da magistratura, organizam-se visitas a laboratórios, bolsa de valores, academia da polícia. Mas que contato temos com as comunidades carentes?

Juízes sofrem quando tem contato com movimentos sociais ou a assentamentos, mas nem o Código de Ética do CNJ reprova a participação em congressos patrocinados por instituições financeiras.

Na hora de criar soluções, estas acabam por atender basicamente aos reclamos da classe média e as demandas ampliadas pelas revistas semanais, como os juizados nos aeroportos, quando o problema do transporte público é muito mais grave, há muito mais tempo.

O acesso à justiça é, sobretudo, acesso a ordem jurídica justa.

Falar em acesso à justiça, portanto, pressupõe igualdade, mas é preciso convir que o universo legal conspira todo ele pela desigualdade.

As regras são distintas para grandes e pequenos e os exemplos são fartos.
Para a cobrança bancária, a legislação chegou a criar até o mecanismo de prisão (hoje sepultado pelo STF), na chamada alienação fiduciária. Agora, para ações contra os bancos, já é enorme dificuldade considerar incluídas no direito do consumidor.

A tutela penal, então, é predominante da propriedade privada –não é a toa que a população presa é a mais destituída de patrimônio.

O direito à propriedade se sobrepõe à moradia; frustrar direito à moradia não é punível, frustrar direito à propriedade é crime.

A alteração da lei de falências para a recuperação judicial, deu uma mostra por onde se ancora o legislador: incumbe aos trabalhadores o sacrifício da recuperação de uma empresa, como se viu na trágica situação dos funcionários da Varig. O objetivo é beneficiar os credores, instituições financeiras, para uma suposta diminuição dos juros que nunca chega ao consumidor.

O sistema de justiça acaba, assim, por reproduzir a desigualdade que lhe incumbia resolver ou minorar.

Infelizmente, a desigualdade legal normalmente se opera em favor do forte.

É o que vemos na preservação da “síndrome dos desiguais”: foro privilegiado para autoridades, a prisão especial aos diplomados, a imunidade parlamentar a políticos.

Importante é entender que existe essa realidade (ou seja, que a lei não é neutra) e compreender o papel do juiz (que também não é neutro): garantidor dos direitos -embora ainda às vezes tenham se colocado como censores da liberdade.

Por excelência a principal porta de acesso à justiça é a Defensoria Pública.

A “assistência jurídica” prevista na Constituição hoje é maior do que a antiga “assistência judiciária”.

Inclui orientação prévia, bem ainda educação jurídica, de cidadania, destinada a propagar o conhecimento dos direitos.

A Defensoria é capaz de atacar os dois pontos do problema: educação e desigualdade.
Política pública de assistência jurídica passa necessariamente pela criação, instalação e estruturação da Defensoria Pública –nosso “Sistema único de Assistência Jurídica”.

A Defensoria Pública foi instituída pela Constituição Federal de 1988 e, em vários Estados, tem tido inequívocas dificuldades de se instalar efetivamente.

Em São Paulo, por exemplo, demorou 18 anos para ser criada e mesmo assim, com um número de profissionais muito inferior ao necessário para o atendimento à população carente –são apenas 500 advogados para mais de quarenta milhões de habitantes.

Outros Estados ainda não a instalaram e Santa Catarina, por exemplo, nem a criou.
Para tratar a Defensoria como verdadeira política pública é essencial criar uma instituição forte, autônoma e independente.

É preciso dotar a defensoria dos mesmos instrumentos que tornaram forte a instituição do Ministério Público.

O crescimento do Ministério Público, em especial depois da Constituição de 1988, foi extremamente positivo para o Estado Democrático de Direito. Não há porque imaginar que o crescimento da DP também não o seja.

Se é certo que o Ministério Público é o advogado da sociedade, a Defensoria Pública é a advogada de quem quer fazer parte da sociedade, de uma população ainda marginalizada, inclusive na Justiça.

A Defensoria Pública tem o DNA da inclusão no sangue e pode se revelar um instrumento eficaz na luta da redução das desigualdades, que é um objetivo fundamental da República.

Outra questão essencial para o acesso à justiça parece-me ser o fortalecimento das ações coletivas, hoje uma absoluta exceção no movimento forense.
Infelizmente o dogmatismo sempre apostou no julgamento de ações individuais, inclusive para evitar disputas de classe.

Isso é que Boaventura Santos denominava trivialização de conflitos. A legislação sempre foi tímida quanto à possibilidade de conflitos coletivos (onde muitos discutem o mesmo direito numa só ação) e a reposta dos tribunais, negativa.

Toda sorte de obstáculos processuais foi criada para as causas coletivas. De modo que o STF é especialmente responsável pela imensidão de “pedidos idênticos” do qual hoje se queixa.

Lembro-me de uma demanda de estudantes de seis anos que estavam saindo das escolas municipais e impedidos de começar estudos nas estaduais. O MP ingressou com ação civil pública, que foi barrada pelo TJ. Ao final, foram dezenas de milhares de mandados de segurança que acabaram nem sendo julgados, porque, no meio do caminho, as crianças completaram sete anos.

E hoje, ao invés de fortalecer os institutos das ações coletivas, a reforma do judiciário preferiu concentrar a jurisdição para dar valor coletivo a decisões individuais (ou cercear a independência do juiz com as súmulas vinculantes)
Se pensarmos em políticas públicas no Judiciário, por exemplo, as ações coletivas são ainda mais necessárias, para evitar que as políticas aplicadas deixem de ser públicas pelo fato de que apenas alguns ingressam no Judiciário.

E se as ações coletivas são essenciais para a promoção das políticas públicas, e são via de regra propostas contra o Estado (que é quem está no débito das ações sociais), mais uma razão para o fortalecimento da Defensoria Pública.

Nem todos concordam: associação do Ministério Público foi ao STF contestar a legitimidade da Defensoria Pública para promover ações civis públicas, em busca da “exclusividade”.

Se o ativismo judiciário admite discutir políticas públicas; portanto acesso à justiça hoje tb é acesso a políticas públicas.

E quem mais é carente de políticas públicas do que a população mais pobre.

A autonomia da DP é indispensável para, por exemplo, exigir criação de vagas em escolas públicas ou um transporte coletivo de qualidade, desnudando a falta de políticas sociais.

Em caso contrário, o que acontece é que, também pela via da Justiça, os pobres serão os que menos atingirão as políticas públicas (já acontece hoje na questão dos remédios, só quem tem acesso a médicos particulares busca remédios de alto custo na justiça).

Tudo o que devemos fugir é privilegiar quem menos precisa.

Juizados Especiais foram criados para simplificar e baratear a justiça. No início, eram feitas apenas sessões à noite, justamente para possibilitar que os trabalhadores tivessem acesso, após o serviço.

Os Juizados acabaram despertando uma enorme demanda reprimida (daqueles que queriam entrar em juízo sem pagar advogados).

Mas é certo que hoje, predominantemente, tem-se um Juizado afeto a questões de classe média, quase um juizado do consumidor: aumento de planos de saúde, mensalidades escolares, assinatura telefônica, acidentes de veículo, atrasos e cancelamentos de viagens aéreas. ,

As classes populares ainda não têm sido convidadas a participar desta experiência, ou talvez não se sintam à vontade na casa da Justiça, ou não tenham o conhecimento suficiente para transformar suas necessidades, que não são poucas, em ações.

Espera-se profundamente que esse quadro mude com o fortalecimento da Defensoria.

Mas nos preocupamos pouco com uma questão que a mim parece essencial: o excesso de demanda.

O volume de ações é de tal forma incontrolável que as medidas paliativas para um processamento mais ágil não serão suficientes para conferir eficiência ao Judiciário.

É bom que a sociedade seja estimulada a litigar, em busca de sua cidadania.

É importante que, depois de décadas de demandas reprimidas, sobretudo em face do autoritarismo que norteou as relações públicas e privadas, os agentes se sintam em condições de reclamar os seus direitos.

Mas é preciso ter em conta que este excesso de demandas acaba, via de regra, prejudicando aqueles que são mais necessitados. Nem sempre garantir o “acesso ao Judiciário” é o caminho mais curto em direção à Justiça.

Hoje, quem escolhe ir à Justiça é o réu.

O Estado prefere pagar seus compromissos na Justiça, pois pode fazer seus credores aguardarem anos nas filas do precatório. Até o INSS recorre à Justiça para atrasar pagamentos obrigatórios.

O empregador deixa o cumprimento de obrigações trabalhistas para uma eventual ação. Poucos empregados ajuízam contra a empresa e a maioria vai aceitar acordos com bons deságios.

Exemplo recente tem mostrado como se pode anular a eficiência de instrumentos criados para conferir agilidade.

É o caso das privatizações de serviços públicos, como o da telefonia.

Os serviços se ampliaram estrondosamente, mas não as plataformas de atendimento. Há milhares de ações tramitando por juizados referentes a reclamações triviais contra empresas de telefonia, que estão optando por resolver os problemas nos fóruns, com estrutura e pessoal fornecido pelo Estado.

É salutar que os órgãos públicos estejam tentando dar tramitação rápida a estas pequenas lides, em especial pela conciliação. No entanto, uma parte expressiva destas ações nem mesmo precisaria de solução judicial, se as empresas tratassem de receber reclamações contra seus serviços e se houvesse seriedade na fiscalização do Estado.

O poder de polícia, ou seja, a competência administrativa de fiscalização, praticamente se esgarçou no Brasil. As propostas modernas de esvaziamento do Estado acabaram desaguando na omissão ou quando não em agências reguladoras formadas por gestores que se mantêm mais independentes do poder público do que das empresas que devem fiscalizar. O resultado é visível: o Estado abriu mão do controle, as agências pouco regulam e as reclamações contra as empresas superlotam o Judiciário.

Acesso a justiça é uma combinação de responsabilidade pública, compromisso com a igualdade e gestão democrática.

Mas não nos enganemos, nada que diz respeito ao povo vai ser conquistado sem dor, sofrimento e pressão. 


Fonte: Sem juízo, por Marcelo Semer

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