quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sistematização da conversão em preventiva após a Lei 12.403/2011


Um dos posts mais visitados do blog é o “Novas regras para a prisão cautelar e aantecipação de seus efeitos”, que aborda as novas regras sobre a prisão após as modificações da Lei nº 12.403/2011.

Tentando sistematizar meu entendimento sobre o tema de forma mais didática, elaborei uma espécie de checklist, um passo a passo que deve ser seguido, a meu ver, pelo juiz ao receber os autos de prisão em flagrante.

Introdução.

Segundo o pensamento de Jean-Jacques Rousseau em seu Do Contrato Social (1757), nenhum homem possui poder natural sobre o outro. Na natureza, cada homem é portador de mais absoluta liberdade. Mas, em busca de segurança e autopreservação, o homem passou a viver em sociedade.

Em seu Do Espírito das Leis (1748), Montesquieu afirma que, quando os homens passaram a viver em sociedade perderam o sentimento de sua própria fraqueza. Seduzida com a ilusão da força dos números, cada sociedade passou a querer subjugar as outras, o que gerou um estado de guerra entre as nações. Ao mesmo tempo, cada indivíduo, em cada sociedade, começou a achar-se forte e a buscar algum tipo de vantagem de sua sociedade, gerando um estado de guerra entre os membros da agremiação. Essas espécies de guerra geraram a necessidade do estabelecimento de leis entre os homens.

Pelo chamado contrato social (Rousseau), cada indivíduo cede parte de sua liberdade à coletividade em troca de segurança. Quanto mais segurança, menos liberdade. Quanto mais liberdade, menos segurança. De acordo com Noberto Bobbio, “as sociedades são mais livres na medida em que são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres”.

Os bens mais caros a uma determinada sociedade são protegidos através do Direito Penal, que estabelece condutas proibidas e penalidades para quem desobedece estas regras. Para proteger o cidadão dos excessos do Estado, surgiu o Direito Processual Penal.

Para Malatesta (A Lógica das Provas em Matéria Criminal), enquanto o Direito Penal deve ser “a espada infalível para golpear os delinqüentes”, o Direito Processual Penal, “sendo o braço que guia com segurança aquela espada contra o peito dos réus, deve também ser o escudo inviolável da inocência”.

De acordo com o Princípio da Liberdade Individual ou do Estado de Necessidade, todo cidadão tem os direitos de ir, vir e permanecer.

A liberdade é a regra do Estado Democrático de Direito, ensejando que qualquer restrição ou privação deve ser medida excepcional, que só poderá ocorrer quando houver motivo, fundamento e necessidade.

Com a edição da Lei 12.403/2011, o legislador brasileiro ressalta mais uma vez que a prisão cautelar antes do trânsito em julgado da sentença condenatória deve ser uma exceção.

Para Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva é medida de exceção, devendo ser interpretada restritivamente, para compatibilizá-la com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII da CF), afinal, o estigma do encarceramento cautelar é por demais deletério à figura do infrator”.

Para Júlio Fabbrini Mirabete, “sabido que é um mal a prisão do acusado antes do trânsito em julgado a sentença condenatória, o direito objetivo tem procurado estabelecer institutos e medidas que assegurem o desenvolvimento regular do processo com a presença do imputado sem o sacrifício da custódia, que só deve ocorrer em casos de absoluta necessidade. Tenta-se assim conciliar os interesses sociais, que exigem a aplicação e a execução da pena ao autor do crime, e os do acusado, de não ser preso senão quando considerado culpado por sentença condenatória transitada em julgado”.

Em matéria de prisão cautelar, aqui pretendemos nos focar exclusivamente no procedimento que deve ser seguido pelo juiz na hora em que recebe o auto de prisão em flagrante.

São cinco etapas que, ultrapassadas de forma fundamentada pelo julgador, podem permitir o encarceramento cautelar do suspeito, indiciado ou acusado.

Vale observar que, falhando em ultrapassar fundamentadamente qualquer das fases, deve o juiz liberar o acautelado, sem a necessidade de analisar as demais. Assim, por exemplo, se a preventiva é inadmissível (etapa 02), não é possível se manter a custódia cautelar como garantia da ordem pública (etapa 04).

Etapa 01: Licitude do flagrante.

Esta é a primeira pergunta que o julgador deve responder: o flagrante é lícito?

Diversas são as ilegalidades que podem ocorrer durante a efetivação da prisão. Se os direitos do acautelado não foram a ele informados, se houve invasão domiciliar ou se houve tortura, para ficarmos apenas com estes exemplos, entendemos que estas violações aos direitos humanos pelo Estado desautorizam a manutenção da custódia cautelar.

Mas, no mínimo, o julgador deve atentar para as hipóteses legais em que é admitida a prisão em flagrante. O acusado tem que ter sido preso enquanto o crime era cometido (flagrante próprio), logo após o cometimento do crime e em situação que faça presumir que ele é o autor do fato (flagrante impróprio) ou logo depois a infração ter ocorrido e na posse de objetos que façam crer ser ele o autor do delito (flagrante presumido).

Fora dessas hipóteses, não há flagrante e a prisão é ilegal (mesmo nos casos em que a lei expressamente admite a postergação do flagrante, o fato é que a autoridade policial tem que ter presenciado o autor em alguma daquelas situações, apenas adiando a detenção).

É necessária também a observância do cumprimento das formalidades legais da prisão em flagrante, em especial no que se refere às comunicações obrigatórias (ao juiz, à família e à Defensoria Pública). Não realizadas as comunicações nos prazos legais, o flagrante deve ser relaxado.

Ultrapassada esta etapa, ou seja, sendo lícito o flagrante, não é possível a manutenção da prisão cautelar apenas por isso, é necessário se decidir pela sua conversão ou não em prisão preventiva.

Etapa 02: Admissibilidade da Preventiva.

A prisão preventiva, segundo o art. 313 do CPP, só é admissível se: (a) a pena máxima cominada abstratamente for superior a 04 anos; (b) o acusado for reincidente em crime doloso com sentença transitada em julgado; ou (c) o crime envolver violência doméstica e familiar. Contrario sensu, fora destas hipóteses, a prisão preventiva é inadmissível.

A primeira observação que deve ser feita é que basta que o acusado seja reincidente em crime doloso, que a pena máxima abstratamente cominada seja superior a 04 anos ou que o crime envolva violência doméstica para que a preventiva seja admissível. Não é necessário o enquadramento em todas as alíneas. Ademais, é uma análise objetiva, que não admite maiores ponderações.

A segunda observação é que, se a preventiva é inadmissível, não há que se manter a prisão por qualquer outro motivo previsto nas etapas posteriores. Por exemplo, o fato de o flagranteado não possuir comprovante de residência ou carteira de identidade não pode ser utilizado para manter uma prisão preventiva que a lei não admite.

Nesse exemplo, é muito interessante a solução encontrada pela magistrada Marlúcia de Araújo Bezerra em decisão publicada no siteda Associação de Juízes para a Democracia. A julgadora determinou a soltura do acusado e determinou que a autoridade policial o identificasse corretamente[1].

Etapa 03: Existência dos Pressupostos da Preventiva.

Para haver a decretação da preventiva, necessária a prova da materialidade delitiva, bem como de indícios críveis da autoria.

Neste sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues são contundentes: “para a decretação da preventiva é fundamental a demonstração de prova da existência do crime, revelando a veemência da materialidade, e indícios suficientes de autoria ou de participação na infração (art. 312, caput, in fine, CPP)”.

Não há sentido em se manter uma prisão cautelar, por exemplo, se o fato é atípico pela aplicação do princípio da insignificância, ou se não houve a apreensão da arma de fogo no crime de porte.

Etapa 04: Enquadramento nas hipóteses da Preventiva.

Ultrapassadas as etapas anteriores, necessário observar se o caso se enquadra nas hipóteses em que a lei recomenda a medida: (a) como garantia da ordem pública ou da ordem econômica; (b) por conveniência da instrução criminal, caso a liberdade do acusado cause concreto obstáculo à elucidação dos fatos; ou (c) para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver dúvida sobre a identidade do acusado ou fundado risco de fuga (Art. 312 do CPP).

Nesta etapa, necessário se ter bastante cuidado para não cair nas armadilhas da construção genérica da norma. Não existe acordo na doutrina ou jurisprudência quanto ao que seria a tal “ordem pública”, por exemplo.

O fato é que o enquadramento em qualquer das hipóteses deve ser fundamentada em fatos concretos e é inadmissível que o magistrado utilize esta etapa para manifestar seu repúdio pessoal a qualquer tipo de crime.

De acordo com Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva não poderá ser decretada para preservação da integridade do próprio suspeito, por medo de que seja linchado ou assassinado por parentes da vítima”. Também não é possível se manter a prisão para não afetar a imagem da Justiça.

Etapa 05: Insuficiência de Medida Cautelar ou Desnecessidade de Prisão Domiciliar.

Caso o flagrante seja lícito e, na situação concreta, além de ser admitida a preventiva, estejam presentes os seus pressupostos e haja o enquadramento nas hipóteses legais em que a medida é recomendada, a conversão em prisão preventiva é possível.

No entanto, antes de converter a prisão em flagrante em preventiva, o julgador deve verificar se não é suficiente a substituição por uma medida cautelar ou se não é caso de aplicação da prisão domiciliar.

Poderá ser decretada medida cautelar em sua substituição observando-se a: (a) necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; e (b) adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282 do CPP).

Eis as espécies de medidas cautelares:

Art. 319 do CPP. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica. 

O juiz deverá substituir a preventiva por prisão domiciliar quando o agente for: (a) maior de 80 (oitenta) anos; (b) extremamente debilitado por motivo de doença grave; (c) imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; ou (d) gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco (art. 318 do CPP).

A conversão da prisão em flagrante em preventiva só deve ocorrer se não for aplicável prisão domiciliar ou se não for suficiente a medida cautelar.


[1] “O acusado deverá ser apresentado, pela autoridade administrativa responsável pela custódia, ficando esta responsável também pela correta identificação do custodiado, ao Oficial de Justiça encarregado da diligência de cumprimento do alvará de soltura”.

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