sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Qual a distinção entre "bandidos" e "pessoas que cometeram ilícitos"?

Tive a honra de trabalhar por vários anos com os excelentes magistrados Rosivaldo Toscano Júnior e Lena Rocha. Nunca os vi destratar quem quer que seja em audiência. nunca os vi chamar um acusado de "bandido" ou "marginal".

Conversando com uma amiga, fiquei curioso quanto ao critério que algumas pessoas usam para distinguir "bandidos" de "pessoas que cometeram ilícitos". Especificamente, a discussão iniciou por conta de uma postagem sobre um cantor sertanejo que teria sido flagrado na posse de munição.

Na minha visão, a distinção passa por uma questão de familiaridade. A familiaridade facilita a alteridade, o se colocar no lugar do outro. Quando o acusado de um crime é alguém com quem você se identifica, em quem você se enxerga ou mesmo admira, você não vai chamá-lo de "bandido". Para você, será apenas uma pessoa que cometeu um erro.

O referido cantor explicou que alguém deve ter colocado a munição em sua mala apor engano. Certamente será absolvido. Provavelmente nem denunciado. O Promotor ou Juiz vai justificar que a versão do cantor é crível inclusive pelo fato de ele ser "primário e de bons antecedentes". Mas e se essa mesma desculpa fosse dada por algum morador de favela também primário? Qual a chance de ele ter esse mesmo benefício da dúvida? Imagino que teria levado um monte de cacete e estaria em Alcaçuz esperando meses para ter sua primeira audiência. A denúncia provavelmente falaria no estapafúrdio princípio do in dubio pro societate (que meu amigo Claudio Alexandre Onofre me ensinou a questionar). Este seria facilmente chamado de "bandido".

Não se trata de "ter dinheiro para contratar bons advogados" como muitos dizem. A Defensoria Pública, no limite de sua capacidade, tem feito um trabalho muitas vezes melhor que o de muitos advogados. A questão é a familiaridade. O pobre não tem a mesma capacidade de despertar a alteridade em muitos juízes e promotores.

Quando você fala "alguém que cometeu um ilícito" você o reconhece primeiro como pessoa humana, demonstrando simpatia, compreensão, familiaridade. E isola o fato típico cometido por ele como uma pequena parte de sua vida. O uso do termo "bandido" é um estereótipo, um rótulo. Quando você diz "bandido", você reduz toda a existência de alguém a um aspecto. Ele não é uma pessoa, não tem pai, não tem mãe, não tem circunstâncias. Ele é como uma erva daninha, um mal a ser estirpado.

Isso justifica construções como o mantra da ignorância, o "bandido bom é bandido morto" que nos reduz também à condição de "bandido", ou seríamos apenas "alguém que cometeu o ilícito" de apologia ao crime?


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"O movimento lei-ordem emerge da dramatização da violência - vista como espetáculo - gerando o tipo-social bandido, consolidando um Estado policialesco. Com a crença penal-cárcere, explode o que se tem denominado Direito Penal do Terror: todos, absolutamente todos, dentro deste modelo, são, foram ou serão delinquentes (aliás, ainda não conheci pessoa que não tenha cometido delito, estou como Demóstenes, com a lanterna acesa em procura do "puro", do "bom")". Em muitas falas, tenho ironizado: em alguns locais ocorre um cenário surreal: o juiz delinquente dá presença, em audiência, a um promotor delinquente que está ausente na solenidade, com a conivência de um advogado delinquente; e nenhum deles (ou seja nós) é delinquente, delinquente é o réu que furtou alguma coisa em algum supermercado - a hipocrisia em seu grau máximo" É o que disse o fantástico Amilton Bueno de Carvalho em seu livro Direito Penal a Marteladas!

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