sábado, 28 de maio de 2011

Falsa identidade e a punição pelo não-crime: quando o Direito quer ser mais que a realidade

Deparei com um processo onde o acusado estava preso há longo tempo acusado de posse de arma de fogo desmuniciada. Pedi o relaxamento de prisão, argumentando inclusive a atipicidade da conduta, pedido que foi deferido. Quando o alvará de soltura ia ser cumprido, constatou-se que o acusado havia mentido o seu nome e, ao invés de liberto, a denúncia foi aditada para incluir o crime de falsa identidade.

Quando fui cientificado, o acusado já estava preso há mais de um ano.


Sobre a imputação de falsa identidade, tenho a posição de que o acusado não tem a obrigação de auxiliar o Estado em seu trabalho de o punir, afinal, ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo (Nemo tenetur se detegere), podendo o acusado ficar calado e até mesmo faltar com a verdade, sem que possa ser punido por isso.

Não há sentido, data vênia, na doutrina que busca dividir o interrogatório em duas partes herméticas. Para este entendimento notadamente ultrapassado, o acusado seria obrigado a dizer a verdade na fase de identificação, mas poderia inclusive mentir ao ser questionado sobre o mérito.

A falta de lógica desta corrente é bem evidente.

Se o acusado é obrigado a falar a verdade na fase de identificação, como conseqüência lógica, a ele também é negado o direito ao silêncio. Neste sentido, Márcio Ferreira Rodrigues Pereira:

Segundo pensamos, parece, de fato, assistir razão à doutrina majoritária sobre o tema (Oportuno registrar a posição divergente de Luiz Flávio Gomes para quem o direito ao silêncio abrange também a qualificação do acusado – Direito Processual Penal. São Paulo: RT, 2005, p. 193), que, lembremos, defende ser impossível o silêncio no momento da qualificação (clique aqui).

Assim, para esta corrente, se o acusado se negar a responder perguntas sobre seu nome ou endereço, por exemplo, preferindo ficar calado, estaria ele na ilegalidade, talvez até incorrendo no crime de falso testemunho (art. 342, CP).

Com o devido respeito, esta leitura nos parece absurda.

O direito ao silêncio e a impunidade da mentira é justificada filosofica e psicologicamente na incongruência em se exigir de alguém que prejudique a si mesmo. É obsceno punir alguém por calar ou mentir para não ser preso, pois seria exigir deste alguém que não ouvisse seu instinto mais íntimo (instinto de auto-preservação) e agisse contra seu direito mais básico (direito natural à liberdade). Claro que é desejável que alguém se disponha a responder por seus erros, a pagar por seus crimes, mas não é razoável punir alguém por não atingir este admirável patamar ético.

Esta afirmação era novidade no pré-iluminismo, quando o Marquês de Baccaria escreveu seu Dos Delitos e Das Penas. Não deveria ser novidade nos dias atuais. Ensina Beccaria:

Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição!

Neste sentido:

Em nosso entendimento, o acusado que mente sobre sua identidade não comete o crime do art. 307 do CP, por duas razões: a) São constitucionalmente garantidos o direito ao silêncio (CR/88, art. 5º, LXIII, e § 2º) e o de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a confessar-se (PIDCP, art. 14, 3, g) ou a declarar-se culpado (CADH, art. 8º, 2, g). Como lembra DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO, “o faltar à verdade equivale a silenciar sobre ela, omiti-la”, pois “sob o plano ético-axiológico, como adequação da coisa à escala valorativa (...) o que é mais valioso tem precedência ontológica sobre o menos valioso” (“O interrogatório do réu e o direito ao silêncio”, in RT 682/288). b) Conforme já decidido pelo TACrSP, em acórdão unânime da lavra do juiz, hoje desembargador, Gentil Leite (AP nº 172. 207, j. 7/3/1978, cuja ementa foi publicada na RT nº 511/402), embora a expressão “vantagem”, mencionada neste art. 307, inclua tanto a patrimonial como a moral, não abrange “o simples propósito de o delinqüente procurar esconder o passado criminal, declinando nome fictício ou de terceiro (real), perante autoridade pública (...) ou particular”. Isto porque “quem assim age visa a obter vantagem de natureza processual, comportamento que, a constituir delito, deveria estar previsto no Capítulo II do Título XI do CP, referente aos crimes praticados por particulares contra a administração pública, ou no Capítulo III, que prevê infrações contra a administração da justiça”. Não haveria, portanto, o dolo específico exigido pelo tipo. (Celso Delmanto. Código Penal Comentado, 6ª ed., Renovar, 2002, p. 611)

Falsa identidade. Não configuração. Autodefesa. Trancamento da ação penal. Ordem concedida. Omissis Não comete o delito previsto no art. 307 do Código Penal o réu que, diante da autoridade policial, se atribui falsa identidade, em atitude de autodefesa, porque amparado pela garantia constitucional de permanecer calado, ex vi do art. 5º, LXIII, da CF/88. (HC nº 36.849/DF, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 9/2/2005).

Penal. Habeas Corpus. Falsa identidade. Não configuração. Autodefesa. Ordem concedida. I - Não comete o delito previsto no art. 307 do Código Penal o réu que, diante da autoridade policial, se atribui falsa identidade, em atitude de autodefesa, porque amparado pela garantia constitucional de permanecer calado, ex vi do art. 5º, LXIII, da CF/88. Precedentes. II - Ordem concedida, para reconhecer a atipicidade da conduta do réu. (HC nº 33.900/SP, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 2/8/2004).

PENAL E PROCESSO PENAL - Habeas Corpus. Falsidade ideológica. Art. 307 do CP. Acusado que declara nome e idade falsos perante a autoridade policial e o Ministério Público. Atipicidade Exercício de autodefesa. Direito ao silêncio. É atípica a conduta do acusado que, ao ser preso em flagrante, declara, perante a autoridade policial, e após, ao Ministério Público, nome e idade falsos, haja vista a natureza de autodefesa da conduta, garantida constitucionalmente, consubstanciada no direito ao silêncio. Ordem concedida. (STJ - 6ª T.; HC nº 35.309-RJ; Rel. Min. Paulo Medina; j. 6/10/2005; v.u.).

Assim, entendemos que o acusado não pode ser punido por calar ou faltar com a verdade durante sua oitiva, mesmo que a atitude ocorra durante as perguntas de qualificação, devendo ele ser absolvido pela imputação do art. 307 CP.

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