Em abril deste ano, representando o Conselho Penitenciário
e acompanhado do amigo Fábio Ataíde, grande magistrado e criminólogo, entrei em
uma reunião na Secretaria de Cidadania e Justiça do Estado do Rio Grande do
Norte. Na mente fervilhavam ideias. No coração carregava a esperança de contribuir
para a melhoria de nosso desumano Sistema Penitenciário. Nas mãos, trazia um
esboço de projeto para a implantação das audiências de apresentação ou custódia
em nosso Estado.
A receptividade do Secretário, o grande mestre Edílson
França, foi imediata. Mais que isso: sua empolgação com a ideia era evidente.
Embora consciente de que aquela não seria a solução para nosso caótico Sistema
Penitenciário, ele me disse com brilho adolescente no olhar: “todo esse esforço
vai valer à pena se pelo menos uma injustiça nós evitarmos!”.
A Presidente do Conselho Penitenciário, Cibele Benevides, Procuradora
da República, articulou junto com a Sejuc várias reuniões sobre o tema,
removendo habilmente cada impasse apresentado. O Conselho, juntamente com a
Pastoral Carcerária, a Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio
Grande do Norte e o Conselho Estadual de Direitos Humanos emitiram uma nota
técnica conjunta apontando a legalidade e a importância das audiências de
apresentação, tese posteriormente confirmada pelo próprio Supremo Tribunal
Federal.
O Presidente do Tribunal de Justiça, Claudio Santos,
abraçou a ideia e, apesar de algumas resistências já esperadas por parte dos
que temem mudanças, empenhou sua palavra na concretização do projeto.
Finalmente, hoje, no dia 09 de outubro de 2015, o projeto
saiu do papel. Embora designado pela Defensora Pública Geral para atuar na
primeira audiência de custódia, logo cedo descobri que o caso selecionado era
de um preso que já tinha advogado. Consegui o telefone de familiares e avisei
que a audiência se realizaria no Tribunal de Justiça, garantindo a presença do
causídico. Soube depois que preso foi solto, embora submetido a medidas
cautelares.
Ao invés de ir para a cerimônia, dirigi-me para o novo
centro de triagem, onde já haviam três presos que seriam apresentados à tarde.
Conversei com os presos, anotei seus dados, preenchi um perfil sócio-econômico,
gravei suas declarações em vídeo. Tudo será enviado para os defensores que
farão suas defesas. Somente isso já deve ser uma consequência virtuosa das
audiências de apresentação: a melhoria da qualidade da defesa técnica.
Já no primeiro atendimento, a primeira emoção do dia. O
preso havia tentado furtar um par de chinelas de um supermercado. Vi que era
primário e de bons antecedentes, que cometeu o ato por desespero já que
desempregado e sozinho no mundo após a morte de sua genitora. Temi que ficasse
preso por não portar ou ter como conseguir qualquer documento. O rapaz me olhou
com os olhos cheios de lágrimas e inocentemente me perguntou: “então nunca mais
serei solto, doutor?”. Argumentei que o preso havia se submetido a identificação
criminal e que o STF havia decidido que sequer o morador de rua poderia ficar
preso apenas por não ter comprovante de residência. O Ministério Público
concordou e o juiz restituiu a liberdade do preso.
Em seguida, foram realizadas mais cinco apresentações. Em
nenhum dos casos havia a imputação de crime com violência real ou indício de
periculosidade. O Ministério Público opinou pela liberdade em três casos. O
magistrado manteve preso apenas um dos apresentados que, embora suspeito de
crime de menor lesividade, tinha contra si dois outros mandados de prisão em
aberto. Não seria solto de qualquer maneira.
Na última audiência de apresentação, o suspeito de um furto
de pequeno valor, aparentemente com problemas mentais, contou que, após sua
prisão, foi levado ao ITEP e submetido a exame de lesões corporais, sendo
atestada a inexistência de marcas em seu corpo. Após, disse ele ter sido levado
a um local onde cobriram sua cabeça com um saco e o submeteram a cerca de 30
minutos de espancamento utilizando barras de ferro e até uma cadeira. O preso
levantou a camisa e revelou diversas marcas em seu braço, suas costas e até
mesmo nas nádegas. As marcas realmente pareciam consistentes com o relato do
preso. Pedi a submissão do preso a novo exame no ITEP, o que foi deferido. O
caso será encaminhado ao Ministério Público para investigação. Pedi também sua
liberdade, até por temer pela integridade do rapaz após a denúncia, mas foi
decretada sua preventiva.
No final do dia, das oito apresentações, apenas duas preventivas
(25%). Na minha avaliação, foram evitadas algumas prisões desnecessárias que,
suspeito, seriam decretadas. Pessoas que, mesmo se condenadas, acabarão sendo
submetidas a penas restritivas de direitos. Em alguns outros casos, poderia até
ser concedida a liberdade, mas apenas após alguns meses de prisão. Saldo
positivo para o erário e para a Justiça.
Desde seu primeiro dia, portanto, a audiência de
apresentação já começa a concretizar seus principais fins: evitar prisões
desnecessárias, melhorar a qualidade da defesa técnica e combater a tortura. Um
primeiro dia exaustivo, já que acabamos os trabalhos após as dezenove horas.
Mas empolgante e gratificante
Manuel
Sabino Pontes, Defensor Público e membro do Conselho
Penitenciário.