quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Diálogo entre juízes: Teoria da Co-culpabilidade

Em determinados casos, quando a marginalização e exclusão social do assistido da Defensoria Pública são patentes, costumo pedir o reconhecimento da atenuante genérica (art. 66 CP) referente à teoria da co-culpabilidade, que tem como maior defensor o mestre Zaffaroni. Trata-se de interessante teoria que costuma obter resultados diferentes dependendo do julgador que se debruça sobre o caso para proferir a sentença. Cito abaixo duas decisões antagônicas, de dois magistrados potiguares.

A argumentação de cada um pode levar o incauto a entender que se trata do embate entre duas visões de mundo completamente diferentes e em acirrado atrito nos dias de hoje: o Direito Penal do Inimigo e o Garantismo Penal. Mas a questão é mais complexa e a posição de ambos os magistrados deve ser respeitada.

Por volta de 500 z.C., Heráclito de Éfeso disse: "Não se pode penetrar duas vezes no mesmo rio". É que, na segunda travessia, nem o homem e nem o rio são iguais aos que se encontraram na primeira vez. As águas sempre correntes já são outras e o homem, em constante transformação e construção por ação de suas experiências, tampouco é o mesmo.

Vamos aos argumentos de cada magistrado. E que cada leitor use seu próprio filtro moral para tirar suas próprias conclusões.

Proc. nº 001.04.010924-1 - 1ª Vara Criminal da Comarca de Natal - Dra. Daniela do Nascimento Cosmo
 

Sobre a alegada tese da co-culpabilidade em razão de vivermos em uma sociedade excludente, penso que o único fundamento para se analisá-la seria o art. 66, do Código Penal, segundo o qual, "a pena poderá ser atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei." Analisando a tese, observo que apesar de sedutora a princípio, não deve ser aplicada, pois parte de premissa falsa e até preconceituosa de que a exclusão social justifica a prática de crimes ou conduz às pessoas a criminalidade, quando não é a verdade, pois esquecem os defensores de tal tese que muitas são as pessoas com posses e letradas que cometem as mais diversas transgressões à lei penal, assim como, são muitos os cidadãos honrados que ainda que vivam na pobreza ou com salário mínimo se pautam pela dignidade em suas vidas. E por ter essa compreensão, é que este juízo não pode admitir a tese levantada, até porque o sistema jurídico penal pátrio é bastante inteligente, permitindo uma pena adequada para o fato praticado pelo acusado.

Processo nº 002.10.000338-0 - 2ª Vara Criminal da Zona Norte da Comarca de Natal - Dr. Rosivaldo Toscano
 

A parte acusada era usuária de álcool e tem estigma de criminoso, à época da infração, assim, justifica-se o reconhecimento de atenuante inominada em favor do acusado, em razão da co-culpabilidade social na participação do delito, pois é notório que a situação acima, no caso o vício no consumo de álcool e o estigma que carrega tem contribuído significativamente para estímulo à prática de crimes, torna o acusado pessoa mais vulnerável ao cometimento de crimes e à seleção pelo sistema penal, em sua peneira já tão bem denunciada por Honoré de Balzac, quando dizia que "as leis são teias de aranha, em que as moscas grandes passam e as pequenas ficam presas".

Sobre o reconhecimento da co-culpabilidade social como circunstância atenuante inominada, vejamos excelente artigo de Bruno Carrijo Carneiro (In
http://www.r2learning.com.br/_site/artigos/artigo_default.asp?ID=343. Acesso em 19.12.2007):

2. Os Princípios da Co-culpabilidade e da Individualização da Pena


A aplicação da pena representa, sem dúvida alguma, um desafio para os operadores do Direito, principalmente no que toca à dosimetria da pena sob a luz do princípio da co-culpabilidade.

Insta salientar que a co-culpabilidade deve ser considerada como um princípio que está intimamente relacionado a outros, em especial o da isonomia e, por conseguinte, ao da individualização da pena.

Salo de Carvalho, reportando-se aos dizeres de Eugênio Raúl Zaffaroni, afirma que "reprovar com a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de privilégio e outras que se encontram em situações de extrema pobreza é uma clara violação do princípio da igualdade corretamente entendido, que não significa tratar todos igualmente, mas tratar com isonomia quem se encontra em igual situação".

Deste modo, considerando o princípio da isonomia na aplicação da pena, o juiz não poderá reprovar, com a mesma intensidade, pessoas que ocupam diferentes papéis dentro da estrutura social, principalmente em decorrência da situação econômica.

Todavia, não é apenas a diferença de status financeiro que interessa à aplicação da pena. Ao lançar mão do princípio da isonomia, o operador do Direito deve considerar, também, outros aspectos, tais como o elemento “potencial conhecimento da ilicitude do fato”.

Há, inegavelmente, apenas a título de exemplo, uma notável diferença, quanto ao conhecimento da ilicitude do fato, entre um sujeito com 21 anos de idade, que não possui nem o 1o grau completo, e outro indivíduo pertencente à classe média, com a mesma idade daquele, que esteja concluindo o ensino superior.

É inconteste que não há, por parte do Estado, a satisfação dos direitos fundamentais a todos os cidadãos – direitos de liberdade, sociais, econômicos e culturais.

Assim, o juízo de reprovabilidade individual pelo ato delitivo não pode ser igual entre os desiguais, nem desigual entre os iguais. Caso contrário estaria configurada tão somente uma igualdade formal, porém restaria prejudicado o princípio da isonomia.

Destarte, tal desigualdade entre os sujeitos, diante do absenteísmo do Estado, deve ser observada.

Preconiza Salo de Carvalho que "o entorno social, portanto, deve ser levado em consideração na aplicação da pena, desde que, no caso concreto, o magistrado identifique uma relação razoável entre a omissão estatal em disponibilizar ao indivíduo mecanismos de potencializar suas capacidades e o fato danoso por ele cometido. O postulado é decorrência lógica da implementação, em nosso país, pela Constituição de 1988, do Estado Democrático de Direito, plus normativo ao Estado Social que estabelece instrumentos dos direitos sociais, econômicos e culturais".

Portanto, em meio a uma sociedade de camadas sociais e diante de um Estado omisso, o direito penal mais justo, nas palavras de Gustav Radbruch, “só poderia ser um direito relativamente justo.”

E, o mesmo autor, citando as palavras de Anatole France, pontifica que "em sua igualdade majestática a lei proíbe tanto ao rico quanto ao pobre dormir debaixo das pontes, esmolar nas ruas e furtar pão, e nela vale também para o direito penal a palavra amarga: 'Deixais ao pobre tornar-se culpado, em seguida o entregais à dor'!"

E adiante arremata Gustav Radbruch que: "Se é a situação de classe que predominantemente provoca a queda do crime e o uso da pena, deduz-se que não o direito penal, mas, de acordo com a palavra de Franz von Liszt, “política social é a melhor política criminal” – sendo a tarefa duvidosa do direito reparar, contra o criminoso, o que a política social deixou de fazer por ele. Pensamento amargo esse, de quantas vezes as custas do processo e da execução, se empregadas antes do crime, teriam bastado para evitá-lo!"

O operador do Direito, ao dedicar atenção ao princípio da isonomia, contempla, por conseguinte, um princípio fundamental do direito penal, a saber: o princípio da individualização da pena, insculpido no artigo 5o, inc. XLVI, de nossa Magna Carta.

Preconiza Chaïm Perelman que "a passagem da igualdade formal para a igualdade real se manifestará, em direito penal, pela teoria da individualização da pena, que leva em conta, na repressão, a individualidade do delinqüente. Em vez de atentar apenas aos elementos objetivos de uma infração, insistir-se-á nos elementos subjetivos; o que, necessitando de uma medida individualizada, redundará em penas desiguais, mesmo para co-autores de um mesmo delito. A Corte de Cassação da Bélgica aprovou esse modo de agir ao rejeitar vários recursos que pretendiam que o juiz havia violado o art. 6o da Constituição belga, que garante a todos os belgas a igualdade perante a lei, porque havia tratado diferentemente dois homens que haviam cometido um mesmo delito."

Destarte, o princípio da individualização da pena ganha supremacia sobre o princípio da mera igualdade formal que, não raro, é ensejador de injustiças. O princípio da isonomia, pelo qual se deve tratar os desiguais na medida em que se desigualam, deve ser o princípio basilar para uma justa individualização da pena e, deste modo, o fundamento de aplicação do princípio da co-culpabilidade.

J. Messine, em citação de Chaïm Perelman, afirma: “O que é mister buscar não são penas iguais: são penas adequadas ao objetivo que se lhes atribui.”

3. A co-culpabilidade como atenuante genérica


As circunstâncias legais atenuantes estão previstas no artigo 65 do Código Penal. O rol constante do dispositivo não elenca a co-culpabilidade como circunstância atenuante, mesmo porque se trata de uma nova tendência do Direito Penal.

Não obstante, a enumeração de tais circunstâncias não é taxativa, haja vista o que dispõe o artigo 66 da Legislação Penal, in verbis: “A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”

Deste modo, a lei vigente, abandonando o sistema da enumeração exaustiva de atenuantes, adotado pelo Código Penal de 1940, introduziu regra que vem a permitir o reconhecimento de atenuantes não expressamente previstas.

Assevera Heleno Cláudio Fragoso que "qualquer circunstância relevante relacionada com o fato ou com a pessoa do agente, que afete de forma significativa o merecimento de pena, deve ser considerada como circunstância relevante."

Destarte, indaga-se, a esta altura, se o princípio da co-culpabilidade poderia ser considerado uma circunstância atenuante, mediante a aplicação do artigo 66 do Código Penal brasileiro. Alguns autores há, como Eugênio Raul Zaffaroni e Salo de Carvalho, que advogam a favor da consideração da co-culpabilidade enquanto circunstância atenuante genérica ou inominada.

Preceitua Eugênio Raúl Zaffaroni "que a co-culpabilidade é herdeira do pensamento de Marat e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado social de direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no CP mediante a disposição genérica do art. 66."

Nesta mesma esteira, afirma Salo de Carvalho que: “... a precária situação econômica do imputado deve ser priorizada como circunstância atenuante obrigatória no momento da cominação da pena.”

E, adiante, vem a complementar a sua idéia, apontando que ”juntamente com a valoração da situação econômica, devem ser avaliadas também as condições de formação intelectual do réu, visto que esta relação é fundamental para a averiguação do grau de autodeterminação do sujeito.”

Salo de Carvalho, ao entender que deve também ser verificada a formação intelectual do réu, vislumbra, ao que parece, o denominado erro de proibição que, se tratar de erro evitável, a pena será amenizada e, em se tratando de erro de proibição inevitável, a pena deverá ser excluída.

Estas circunstâncias atendem, antes de mais nada, ao princípio da isonomia, uma vez que centram-se na análise da real capacidade de o autor socialmente referido conhecer, compreender e motivar sua conduta conforme o direito.

Com razão, Salo de Carvalho advoga que o Código Penal, ao permitir a diminuição da pena em razão de “circunstância relevante”, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista em lei, já fornece um mecanismo para a implementação deste instrumento de igualização e justiça social.

Fundamentando a aplicação do princípio da co-culpabilidade como circunstância atenuante, o autor supra-referido lança mão do artigo 14, inciso I, da Lei n. 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

O citado dispositivo reza, in verbis: “São circunstâncias que atenuam a pena: baixo grau de instrução ou escolaridade do agente”.

Inquire o autor se seria permitida a utilização extensiva da supracitada circunstância atenuante para outras espécies de condutas ilícitas.

E assevera Salo de Carvalho que "é mister lembrar que é plenamente admissível, na estrutura do direito de garantias, a utilização da analogia, desde que não seja em prejuízo do réu. A admissão é tida como pacífica na jurisprudência e na doutrina, dispensando maiores divagações."

Deste modo, possível se torna, sem nenhum óbice, a aplicação analógica do artigo 14, inciso I, da Lei n. 9.605/98, permitindo a inclusão, como atenuante, o baixo grau de instrução ou escolaridade do agente.

Portanto, Carvalho sustenta a aplicação ampliativa da referida regra, porque segundo ele mesmo afirma, “... não entendemos que exista vínculo necessário e suficiente que a restrinja aos delitos ecológicos, como ocorre, por exemplo, com as outras atenuantes mencionadas no art. 14 da Lei n. 9.605/98.”

Assim, para o autor, a circunstância prevista no inciso I daquele artigo, qual seja, “grau de escolaridade”, não se vincula tão somente à minimização do dano ambiental, como ocorre com as outras circunstâncias previstas – arrependimento, reparação, comunicação e colaboração.

Não existindo este vínculo direto entre o grau de instrução do agente e a minimização do dano ao meio ambiente, nada obsta que aquela circunstância atenuante seja aplicada para outros delitos que não os ambientais.

Quanto à aplicação do princípio da co-culpabilidade como atenuante inominada, vindo a diminuir a pena em virtude das condições econômicas do réu, vale transcrever a ementa de um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, citada por Salo de Carvalho. Ei-lo:

"Roubo. Concurso. Corrupção de Menores. Co-culpabilidade. Se a grave ameaça emerge unicamente em razão da superioridade numérica de agentes, não se sustenta a majorante do concurso, pena de 'bis in idem'. Inepta é a inicial do delito de corrupção de menores (lei 2252/54) que não descreve o antecedente (menores não corrompidos) e o conseqüente (efetiva corrupção pela prática de delito), amparado em dados seguros coletados na fase inquisitorial. O princípio da co-culpabilidade faz a sociedade também responder pelas possibilidades sonegadas ao cidadão-réu. Recurso improvido, com louvor à Juíza sentenciante".

O ora decisum merece aplausos, na medida em que não olvida o princípio da co-culpabilidade, entendendo que ao lado da reprovabilidade do criminoso pelo fato, existe uma parte da culpabilidade que a sociedade deve suportar, em virtude das possibilidades sonegadas àquele que agiu contrariamente ao Direito.

Acerca da consideração da co-culpabilidade como circunstância atenuante genérica, arremata, magistralmente, Salo de Carvalho:

"... tal interpretação possibilita no interior da dogmática jurídico-penal, criar um mecanismo de minimização da cruel inefetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, impondo ao Estado-Administração, via Judiciário, uma ‘sanção’, mesmo que residual ou simbólica, pela inobservância de sua própria legalidade no que diz respeito à estrutura do Estado Democrático de Direito que congloba, como vimos, a matriz do Estado Liberal e do Estado Social."

Eis, pois, o modo mais justo de se aferir a culpabilidade, visto que o Estado (brasileiro) contribui sobremaneira para o incremento da criminalidade, à medida que tem sonegado as condições mínimas de desenvolvimento aos seus cidadãos.

Vale ressaltar, aqui, as palavras do Professor Dr. Nilo Batista, segundo o qual, “propensão para o crime tem é o Estado que permite a carência, a miséria, a subnutrição e a doença – em suma, que cria a favela e as condições sub-humanas de vida”.

Pode-se inferir que, para a aplicação de um Direito Penal justo, o juiz criminal deve ser mais que um autômato que anda à procura do tipo legal para determinada conduta típica, antijurídica e culpável.

Seu trabalho deve ir além disso, e o princípio da co-culpabilidade emerge aqui como uma importante ferramenta para a humanização do Direito Penal, a fim de atenuar os efeitos deletérios da exclusão social e econômica de determinadas camadas, em grande parte pelo absenteísmo estatal.

A busca da justiça penal, principalmente na adequada aplicação do princípio da co-culpabilidade, não é tarefa fácil, porém não é impossível. Sem embargo disso, qualquer aplicação da pena que enxergue no criminoso uma pessoa com dignidade a ser respeitada, já é uma tentativa de se chegar a um direito penal mais justo.

 
E essa liberdade pode ser limitada pelas condições sócio econômicas do agente, impondo-se à sociedade e ao Estado certo grau variável de co-responsabilidade pela conduta típica perpetrada (em parte) pelo agente, impelido por condições adversas, recomendando o abrandamento da resposta penal nesses casos.

Esse princípio tem sua sustentação nos princípios da igualdade (máxime em seu aspecto material) e da dignidade da pessoa humana. Em suma, a idéia de Cabette é que “o Direito Penal, perpassado pelo mesmo fio de oura da ética, deve reconhecer em seu bojo o Princípio da Co-Culpabilidade, compreendendo a considerável perda de liberdade de autodeterminação imposta a relevante parcela da população”.


Posto isso, temos que a obediência ao princípio da Co-Culpabilidade representa o respeito pelos valores da dignidade humana, igualdade e justiça, merecendo ser interpretada conjuntamente com o disposto no art. 66 do CP, no sentido de ser reconhecida a atenuante inominada quando circunstâncias adversas causadas pelas inércia do Estado contribuírem para diminuir a autodeterminação do agente no cometimento de infrações penais.

2 comentários:

Juliana N. Silveira disse...

Excelente construção acerca da co-culpabilidade e da tendência a ser seguida pelo direito penal contemporâneo. Este pensamento deve perpetuar aos magistrados, pois assim talvez consigamos dar, através da justiça, o pontapé inicial ao alcance de uma sociedade verdadeiramente democrática, ao que preconiza a doutrina no que tange às teorias do estado social de direito.

Clara disse...

Parabéns! Texto rico e simples.