Tentando
sistematizar meu entendimento sobre o tema de forma mais didática, elaborei uma
espécie de checklist, um passo a passo que deve ser seguido, a meu ver, pelo
juiz ao receber os autos de prisão em flagrante.
Introdução.
Segundo o pensamento de Jean-Jacques Rousseau em seu Do Contrato Social (1757), nenhum homem possui poder natural sobre
o outro. Na natureza, cada homem é portador de mais absoluta liberdade. Mas, em
busca de segurança e autopreservação, o homem passou a viver em sociedade.
Em seu Do Espírito
das Leis (1748), Montesquieu afirma que, quando os homens passaram
a viver em sociedade perderam o sentimento de sua própria fraqueza. Seduzida
com a ilusão da força dos números, cada sociedade passou a querer subjugar as
outras, o que gerou um estado de guerra entre as nações. Ao mesmo tempo, cada
indivíduo, em cada sociedade, começou a achar-se forte e a buscar algum tipo de
vantagem de sua sociedade, gerando um estado de guerra entre os membros da
agremiação. Essas espécies de guerra geraram a necessidade do estabelecimento
de leis entre os homens.
Pelo chamado contrato social (Rousseau), cada indivíduo
cede parte de sua liberdade à coletividade em troca de segurança. Quanto mais
segurança, menos liberdade. Quanto mais liberdade, menos segurança. De acordo
com Noberto Bobbio,
“as sociedades são mais livres na medida
em que são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres”.
Os bens mais caros a uma determinada sociedade são
protegidos através do Direito Penal, que estabelece condutas proibidas e
penalidades para quem desobedece estas regras. Para proteger o cidadão dos
excessos do Estado, surgiu o Direito Processual Penal.
Para Malatesta (A Lógica das Provas em Matéria Criminal), enquanto o
Direito Penal deve ser “a espada infalível para golpear os delinqüentes”, o
Direito Processual Penal, “sendo o braço que guia com segurança aquela espada
contra o peito dos réus, deve também ser o escudo inviolável da inocência”.
De acordo com o Princípio da Liberdade Individual ou
do Estado de Necessidade, todo cidadão tem os direitos de ir, vir e permanecer.
A liberdade é a regra do
Estado Democrático de Direito, ensejando que qualquer restrição ou privação
deve ser medida excepcional, que só poderá ocorrer quando houver motivo,
fundamento e necessidade.
Com a
edição da Lei 12.403/2011, o legislador brasileiro ressalta mais uma vez que a prisão cautelar antes do trânsito em
julgado da sentença condenatória deve ser uma exceção.
Para Nestor
Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva é medida de exceção, devendo ser
interpretada restritivamente, para compatibilizá-la com o princípio da
presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII da CF), afinal, o estigma do
encarceramento cautelar é por demais deletério à figura do infrator”.
Para
Júlio Fabbrini Mirabete, “sabido que é
um mal a prisão do acusado antes do trânsito em julgado a sentença
condenatória, o direito objetivo tem procurado estabelecer institutos e medidas
que assegurem o desenvolvimento regular do processo com a presença do imputado
sem o sacrifício da custódia, que só deve ocorrer em casos de absoluta
necessidade. Tenta-se assim conciliar os interesses sociais, que exigem a
aplicação e a execução da pena ao autor do crime, e os do acusado, de não ser
preso senão quando considerado culpado por sentença condenatória transitada em
julgado”.
Em
matéria de prisão cautelar, aqui pretendemos nos focar exclusivamente no
procedimento que deve ser seguido pelo juiz na hora em que recebe o auto de
prisão em flagrante.
São cinco etapas que, ultrapassadas de
forma fundamentada pelo julgador, podem permitir o encarceramento cautelar do
suspeito, indiciado ou acusado.
Vale
observar que, falhando em ultrapassar fundamentadamente qualquer das fases,
deve o juiz liberar o acautelado, sem a necessidade de analisar as demais. Assim, por exemplo, se a preventiva é inadmissível (etapa 02), não é possível se manter a custódia cautelar como garantia da ordem pública (etapa 04).
Etapa 01: Licitude do flagrante.
Esta é a
primeira pergunta que o julgador deve responder: o flagrante é lícito?
Diversas
são as ilegalidades que podem ocorrer durante a efetivação da prisão. Se os
direitos do acautelado não foram a ele informados, se houve invasão domiciliar
ou se houve tortura, para ficarmos apenas com estes exemplos, entendemos que estas
violações aos direitos humanos pelo Estado desautorizam a manutenção da
custódia cautelar.
Mas, no
mínimo, o julgador deve atentar para as hipóteses legais em que é admitida a
prisão em flagrante. O acusado tem que ter sido preso enquanto o crime era
cometido (flagrante próprio), logo após o cometimento do crime e em situação
que faça presumir que ele é o autor do fato (flagrante impróprio) ou logo
depois a infração ter ocorrido e na posse de objetos que façam crer ser ele o
autor do delito (flagrante presumido).
Fora dessas
hipóteses, não há flagrante e a prisão é ilegal (mesmo nos casos em que a lei
expressamente admite a postergação do flagrante, o fato é que a autoridade
policial tem que ter presenciado o autor em alguma daquelas situações, apenas
adiando a detenção).
É
necessária também a observância do cumprimento das formalidades legais da
prisão em flagrante, em especial no que se refere às comunicações obrigatórias
(ao juiz, à família e à Defensoria Pública). Não realizadas as comunicações nos
prazos legais, o flagrante deve ser relaxado.
Ultrapassada
esta etapa, ou seja, sendo lícito o flagrante, não é possível a manutenção da
prisão cautelar apenas por isso, é necessário se decidir pela sua conversão ou
não em prisão preventiva.
Etapa 02: Admissibilidade da
Preventiva.
A prisão
preventiva, segundo o art. 313 do CPP, só é admissível se: (a) a pena máxima
cominada abstratamente for superior a 04 anos; (b) o acusado for reincidente em
crime doloso com sentença transitada em julgado; ou (c) o crime envolver
violência doméstica e familiar. Contrario sensu, fora destas
hipóteses, a prisão preventiva é inadmissível.
A
primeira observação que deve ser feita é que basta que o acusado seja
reincidente em crime doloso, que a pena máxima abstratamente cominada seja
superior a 04 anos ou que o crime envolva violência doméstica para que a
preventiva seja admissível. Não é necessário o enquadramento em todas as
alíneas. Ademais, é uma análise objetiva, que não admite maiores ponderações.
A segunda
observação é que, se a preventiva é inadmissível, não há que se manter a prisão
por qualquer outro motivo previsto nas etapas posteriores. Por exemplo, o fato de o flagranteado não possuir
comprovante de residência ou carteira de identidade não pode ser utilizado para
manter uma prisão preventiva que a lei não admite.
Nesse
exemplo, é muito interessante a solução encontrada pela magistrada Marlúcia de
Araújo Bezerra em decisão publicada no siteda Associação de Juízes para a Democracia. A julgadora determinou a soltura
do acusado e determinou que a autoridade policial o identificasse corretamente.
Etapa 03: Existência dos
Pressupostos da Preventiva.
Para
haver a decretação da preventiva, necessária a prova da materialidade delitiva,
bem como de indícios críveis da autoria.
Neste
sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues são contundentes: “para a decretação
da preventiva é fundamental a demonstração de prova da existência do crime,
revelando a veemência da materialidade, e indícios suficientes de autoria ou de
participação na infração (art. 312, caput, in fine, CPP)”.
Não há
sentido em se manter uma prisão cautelar, por exemplo, se o fato é atípico pela
aplicação do princípio da insignificância, ou se não houve a apreensão da arma
de fogo no crime de porte.
Etapa 04: Enquadramento nas
hipóteses da Preventiva.
Ultrapassadas
as etapas anteriores, necessário observar se o caso se enquadra nas hipóteses
em que a lei recomenda a medida: (a) como garantia da ordem pública ou da ordem
econômica; (b) por conveniência da instrução criminal, caso a liberdade do
acusado cause concreto obstáculo à elucidação dos fatos; ou (c) para assegurar
a aplicação da lei penal, quando houver dúvida sobre a identidade do acusado ou
fundado risco de fuga (Art. 312 do CPP).
Nesta
etapa, necessário se ter bastante cuidado para não cair nas armadilhas da
construção genérica da norma. Não existe acordo na doutrina ou jurisprudência
quanto ao que seria a tal “ordem pública”, por exemplo.
O fato é
que o enquadramento em qualquer das hipóteses deve ser fundamentada em fatos
concretos e é inadmissível que o magistrado utilize esta etapa para manifestar
seu repúdio pessoal a qualquer tipo de crime.
De acordo
com Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva não poderá ser decretada
para preservação da integridade do próprio suspeito, por medo de que seja
linchado ou assassinado por parentes da vítima”. Também não é possível se
manter a prisão para não afetar a imagem da Justiça.
Etapa 05: Insuficiência de Medida
Cautelar ou Desnecessidade de Prisão Domiciliar.
Caso o
flagrante seja lícito e, na situação concreta, além de ser admitida a preventiva,
estejam presentes os seus pressupostos e haja o enquadramento nas hipóteses
legais em que a medida é recomendada, a conversão em prisão preventiva é
possível.
No
entanto, antes de converter a prisão em flagrante em preventiva, o julgador deve
verificar se não é suficiente a substituição por uma medida cautelar ou se não
é caso de aplicação da prisão domiciliar.
Poderá
ser decretada medida cautelar em sua substituição observando-se a: (a)
necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução
criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de
infrações penais; e (b) adequação da medida à gravidade do crime,
circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282
do CPP).
Eis as
espécies de medidas cautelares:
Art. 319
do CPP. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento
periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e
justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a
determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o
indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de
novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada
quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado
dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando
a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou
instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de
folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho
fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de
natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização
para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado
nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os
peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal)
e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem,
para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu
andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX -
monitoração eletrônica.
O juiz deverá substituir a preventiva por prisão domiciliar quando o agente for: (a) maior
de 80 (oitenta) anos; (b) extremamente debilitado por motivo de doença
grave; (c) imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6
(seis) anos de idade ou com deficiência; ou (d) gestante a partir do 7o
(sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco (art. 318 do CPP).
A
conversão da prisão em flagrante em preventiva só deve ocorrer se não for
aplicável prisão domiciliar ou se não for suficiente a medida cautelar.
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