A Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Norte e a Defensoria Geral promoveram nesta semana uma capacitação ministrada pelo magistrado Fábio Ataíde. O ministraste promoveu um instigante debate, estando ele e aquelas entidades de parabéns.
O minicurso começou perguntando aos Defensores quais as causas do crime. As respostas dos Defensores refletiu a experiência diária de cada um, já que tínhamos participantes de diversas regiões do Estado. Mas acabou se observando que aquele grupo de pessoas de origens e pensamentos tão diversos acabou chegando a conclusões muito parecidas.
Logo em seguida, as duas tragédias em seqüência que abalaram os americanos ganham os noticiários. Dois jovens claramente problemáticos abrem fogo contra adultos e crianças, causando feridos e mortos em larga escala. Os dois acabam mortos e nos deixam sem explicações.
Como é comum quando acontecem estes crimes nos EUA, começa o debate sobre o controle de armas naquele país, onde 47% das residências estão armadas.
O debate é interessante, mas tenho grande dificuldade de conciliar o que seria uma conclusão óbvia - os EUA precisam restringir o acesso às armas - com dados estatísticos que revelam que no Brasil, país onde as armas são quase totalmente proibidas, mata-se muito mais com armas de fogo que naquele país.
Os EUA têm 300 milhões de habitantes; o Brasil, 200 milhões. Em 2010, foram assassinadas naquele país 12.996 pessoas (4,3 por 100 mil habitantes), 8.775 com armas de fogo. No Brasil, no mesmo ano, houve 49.932 (26,2 por 100 mil habitantes) — 35.233 por armas de fogo.
O fato é que cada país tem seus problemas e suas soluções. Importar ou exportar fórmulas não garante os mesmos resultados. Continuo na dúvida de qual a melhor solução. Tanto para nossos problemas como para os dos outros.
“Não se pode perder de perspectiva que a frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pela injusta omissão do Poder Público — que, sem razão, deixa de adimplir o dever de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura, aos necessitados, o direito à orientação jurídica e à assistência judiciária —, culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável” Ministro Celso de Mello
domingo, 16 de dezembro de 2012
Crimes e armas
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Direito Penal do Inimigo no Facebook
O Facebook é um instrumento maravilhoso. O poder que possui a mobilização pelas redes sociais já foi testado e provado em diversas ocasiões.
Existe uma menina de 12 anos que denuncia as más condições em sua escola e, após grande repercussão na rede, conseguiu uma série de investimentos em sua unidade escolar. Uma"repórter" que humilhou um acusado perdeu o emprego. No Rio Grande do Norte, estudantes se organizaram nas redes sociais em dois movimentos que deram o que falar, o #ForaMicarla e a #RevoltadoBusão, para expressar sua insatisfação com a atual Prefeita do Natal e contra o aumento do preço da passagem (que baixou após o movimento). Até a derrubada de regimes ditatoriais é atribuída em parte à mobilização virtual (será?).
No entanto, no Facebook também tem muito lixo. Frases aleatórias atribuídas a pessoas famosas (a preferida é Clarice Lispector). Fotos de pessoas que na verdade não estão desaparecidas. Correntes ameaçando o pobre usuário de toda sorte de maldição caso não compartilhe o status. Textos e informações incorretas postadas de forma irresponsável ou mesmo intencionalmente maliciosa.
Hoje visualizei no status de um amigo um texto atribuído a um Promotor de Justiça. Procurei na rede e não encontrei a publicação em um site sério. Não tenho como dizer se o profissional citado é ou não o verdadeiro autor do texto. Em todo caso, a mensagem está lá fora, na rede, e merece uma resposta. Assim, omitindo a autoria por incerta, tomei para mim a missão de responder.
Imitando o polêmico Reinaldo Azevedo, abaixo, o texto em vermelho é o atribuído ao promotor. Em azul, minhas breves considerações.
Está certo isso? Brasil dos criminosos?
Você sabia que a Constituição Federal estabelece o trabalho obrigatório
para maiores de 18 anos (art. 143), por meio do ‘serviço militar
obrigatório’ e, no entanto, alguém que mata, rouba, estupra, não pode
ser obrigado a prestar serviços à população (poderia arrumar estradas,
consertar escolas, auxiliar hospitais, etc), conforme art. 5o, XLVII,
‘c’? Está certo isso?
Na verdade, o que a Constituição proíbe é o trabalho escravo. Tanto o serviço militar como o trabalho do preso são obrigatórios (art. 39, V, LEP), mas devem ser remunerados. A diferença é que o preso não possui todos os direitos trabalhistas (art. 28, § 2º, LEP). Além disso, parte de sua remuneração (que não pode ser menor que 3/4 de um salário mínimo - art. 29, caput, LEP) fica com o Estado para custear parcialmente suas despesas, parte vai para sua família e parte para a vítima (art. 29, § 1º, LEP).
O Estado é que não fornece condições de trabalho ao preso. Para evitar o óscio e ser beneficiado com a remissão, a grande maioria pede para trabalhar. Mas o Estado não dá trabalho ao preso.
Você sabia que essa estória de ‘ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo’, tão falada no Brasil, não está escrita na Constituição nem em lei alguma, sendo invenção (interpretação?) de juristas e tribunais, para desobrigar criminosos ? Está certo isso?
O acusado pode fazer prova contra si mesmo. Ele não pode é ser obrigado. O acusado não pode ser torturado para confessar, por exemplo. Acho que a crítica aqui era direcionada ao Supremo Tribunal Federal, que entende que o acusado (na verdade, ninguém) não pode obrigado a soprar um bafômetro ou a se submeter a um exame de DNA, por exemplo. Em alguns países esta intervenção forçosa é possível com ordem judicial. No entanto, no Brasil, o STF mantém o entendimento pela sua impossibilidade.
É a (má) herança de nosso ensino extremamente positivista que estimula o desejo de que todo esteja escrito. O positivismo caiu em desgraça quando a comunidade jurídica percebeu que o holocauto estava de acordo com as leis alemãs. Daí passou-se a dar cada vez mais importância aos princípios. Quem quer que todo esteja escrito e teme a interpretação pratica um direito atrasado mais de 60 anos.
Você sabia que no Brasil o criminoso ‘tem direito a mentir’, já que se disser um monte de mentira e inverdades, uma vez descoberto, não haverá alteração em sua pena, enquanto em muitos países se o criminoso mentir responderá por essa mentira, claramente por tumultuar a busca da verdade? Está certo isso?
Se está certo? Beccaria respondeu essa pergunta em 1764: "Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião!" e "E, se um interrogatório especial é contrário à natureza, obrigando o acusado a acusar-se a si mesmo, não será ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as convulsões da dor? Os homens, porém, se ocupam muito mais, em sua norma de conduta, com a diferença das palavras do que com a das coisas." (Dos Delitos e Das Penas).
Você sabia que a Constituição Federal estabelece sim a pena de morte (CF, art. 5a, XLVII, ‘a’), para casos de ‘guerra declarada’, e, no entanto, contra essa ‘guerra’ contra a traficantes, crime organizado e corruptos, não podemos coloca-los sequer em prisão perpétua? Está certo isso?
Não apenas a Constituição Federal, mas o tratados internacionais que o Brasil assina repudiam a idéia de qualquer pena ad aeternum. Trata-se do reconhecimento da falibilidade do Estado. O Estado erra ao condenar muito mais que se pensa. Embora possamos concordar que alguns crimes mereceriam uma pena assim, engana-se quem acha que as condenações criminais são baseadas em uma certeza inabalável de que aquele crime foi cometido por aquela pessoa. Muitos são condenados por homicídio, por exemplo, por conta meramente de um boato que corre na rua, sem prova material ou testemunhal direta (meu júri mais recente foi assim - condenação por 4x3 que se encontra sob análise do STJ no momento). Ao se admitir a pena perpétua, estaríamos admitindo que (em muitos casos) pessoas inocentes passassem o resto da vida presas por algo que não fizeram.
Você sabia que juristas e tribunais brasileiros têm comparado nossas leis com as leis de outros países para favorecer criminosos, e que somente no Brasil alguém é condenado pelo Júri Popular por homicídio e continua solto, enquanto não acabarem os recursos? Está certo isso?
Você sabia que juristas e tribunais brasileiros têm comparado nossas leis com as leis de outros países para favorecer criminosos, e que somente no Brasil alguém é condenado pelo Júri Popular por homicídio e continua solto, enquanto não acabarem os recursos? Está certo isso?
Na verdade, enquanto não condenado definitivamente, toda prisão é precária. A prisão preventiva é possível em qualquer fase processual, inclusive após a condenação pelo Tribunal do Júri. Mas deve o caso se enquadrar em alguma das hipóteses legais de preventiva. O problema é que um julgamento por homicídio, por vezes, pode demorar muitos anos e o acusado acaba solto por excesso de prazo.
Você sabia que há quinze anos, quem assassinava uma pessoa, além de receber penas muitas vezes maiores a 20 anos, deveria cumprir a pena toda em regime fechado (preso) e, hoje, em razão de entendimentos do Supremo Tribunal Federal, raramente um assassino recebe pena alta e, ainda, cumpre somente uma pequena parte da pena para ser colocado em liberdade? Está certo isso?
Você sabia que há quinze anos, quem assassinava uma pessoa, além de receber penas muitas vezes maiores a 20 anos, deveria cumprir a pena toda em regime fechado (preso) e, hoje, em razão de entendimentos do Supremo Tribunal Federal, raramente um assassino recebe pena alta e, ainda, cumpre somente uma pequena parte da pena para ser colocado em liberdade? Está certo isso?
O Código Penal é de 1940. A pena pelo homicídio simples vai de 6 a 20 anos e pelo qualificado de 12 a 30 anos. Não se trata de entendimento do STF. É a pena prevista na lei. Há bem mais que 15 anos.
A Lei de Execuções Penais é de 1984 e lá consta a progressão da pena. Existe muita desinformação sobre o tema. O acusado com bom comportamento, após certo tempo (1/6 para crimes comuns e 2/5 para hediondos), tem direito a um abrandamento de seu regime, justamente para se sentir se ele pode ser reintegrado à Sociedade. Primeiro lhe é permitido trabalho externo, depois saídas temporárias e, por fim, deve se recolher apenas no período noturno. Qualquer falta grave acarreta a regressão do regime e é comum que alguns acabem cumprindo toda a pena no regime fechado.
Não sei de onde se tira que estas penas são pequenas. Ainda mais com a verdadeira tortura que é infligida em nossas masmorras públicas.
Você sabia que um brasileiro, que trabalha diariamente e obedece as leis e regras de convivência, recebe um salario mínimo no valor de R$ 622,00 (seiscentos e vinte e dois reais) para manter toda sua família (CF, art. 7o, IV), enquanto um criminoso, que roubou, matou, estuprou, etc, possui direito a ‘auxílio reclusão’ no valor de R$ 915,05 (novecentos e quinze reais e cinco centavos) vide: http://www.previdencia.gov.br/
Só tem direito ao auxílio reclusão o condenado que era segurado, ou seja, que pagava o INSS regularmente no momento em que foi preso. Não é preciso dizer que se trata de hipótese rara dentro da regra de miserabilidade e exclusão social das pessoas que são condenadas por crimes. Além disso, não se trata de assistência social, mas previdência. É seguro, não é benesse. É uma contraprestação devida pelo INSS a que todo trabalhador que se veja preso. E mais: é destinado à sua família, não ao preso.
Pois é! Lembre-se que os poderes públicos e suas medidas e decisões devem (ou deveriam!) servir à população e pessoas de bem. Eis apenas alguns alertas.
Esta distinção entre "pessoas de bem" e "pessoas do mal" é o típico Direito Penal do Inimigo, fundamento teórico que alguns usam para justificar perfis étnicos, perseguições religiosas e até torturas. Os poderes públicos existem para olhar pelos direitos de todos os cidadãos. De outra forma, retornamos à babárie.
domingo, 16 de setembro de 2012
Amigo em pé (primo pobre)
Em programas humorísticos da
década de 1980, Paulo Gracindo e Brandão Filho consagraram o quadro “primo rico
e primo pobre”, que visava a um só tempo fazer rir e criticar a gritante
desigualdade social brasileira. Atualmente o quadro foi reconfigurado, trazendo
Fernando Ceylão e Aramis Trindade em um metrô como “amigo sentado e amigo em
pé”.
A realidade de penúria e
falta de investimentos na Defensoria Pública, principalmente quando comparada
com o Poder Judiciário e do Ministério Público, fizeram com que o órgão fosse
conhecido como o “primo pobre” do aparelho Judiciário. Ou, modernizando a
expressão, o Defensor Público seria o “amigo em pé”.
O magistrado “diz a lei”. O
Ministério Público fala pela sociedade. O Defensor Público é a voz dos
excluídos. Juntamente com a advocacia (pública e privada) estas nobres funções
são consideradas pela Constituição Federal como essenciais à função
jurisdicional do Estado. Em outras palavras: o Estado que falha em investir
nestas instituições, fracassa na missão de distribuir Justiça.
Porém, diante do escândalo
dos números que a seguir serão expostos, não há como se escapar da conclusão de
que a Defensoria Pública e seu público alvo (a população carente) encontram-se
cada vez mais distantes dos corações e mentes de nossos governantes.
O Estado do Rio Grande do Norte possui 166 Municípios
organizados em 65 Comarcas. Para atender a demanda de 3.168.133 habitantes a
legislação estadual prevê 315 cargos de Magistrados, 249 de membros do
Ministério Público e apenas 102 de Defensores Públicos.
Todos os cargos de membros do Ministério Público
encontram-se ocupados e ainda existem aprovados na última seleção aguardando o
surgimento de vagas. Na Defensoria Pública, apenas 40 cargos estão preenchidos
e não há orçamento para a realização de concurso público.
A Defensoria Pública encontra-se precariamente instalada em apenas
oito comarcas: Natal, Parnamirim, Ceará-Mirim, Nova Cruz, Assú, Caicó, Mossoró
e Pau dos Ferros. Não existe Defensoria Pública em 87,69% das Comarcas do
Estado. Ao não investir em Defensoria Pública, o Governo nega assistência
jurídica integral e gratuita de qualidade aos cidadãos necessitados de 142
Municípios.
O Ministério Público encontra-se instalado em 100% das comarcas,
quase sempre com sede própria, amplo quadro de funcionários concursados e
assistentes ministeriais. Para auxiliar os Defensores Públicos, existem cerca
de 30 funcionários cedidos por outros órgãos e o mesmo número de estagiários.
Para se ter uma ideia mais clara da gritante desproporção,
nas oito comarcas em que a Defensoria Pública está instalada, atuam 40
Defensores e 142 membros do Ministério Público (121 Promotores e 21 Procuradores
de Justiça).
Entre inúmeras outras coisas, pode-se destacar que a
insuficiência de Defensores Públicos é uma das causas do atual caos no Sistema
Penitenciário. Por outro lado, iniciativas como o SUS Mediado, criado por uma
Defensora Pública, tem o potencial de minimizar a calamidade pública em que se
transformou a saúde.
Poder-se-ia imaginar que a situação de colapso iminente
levaria o Governo do Estado a ampliar o investimento em Defensoria Pública como
forma de reverter ou pelo menos minimizar a enorme disparidade. Mas não. Ao
contrário. Investe-se cada vez menos no “amigo em pé”.
Em 2011, a Lei Orçamentária Anual previa R$ 517,236 milhões
para o Tribunal de Justiça, R$ 197,462 milhões para o Ministério Público e R$
13,588 milhões para a Defensoria Pública. Isto quer dizer que, para cada R$
100,00 gastos com o aparelho judiciário, R$ 71,41 ficaram com o Tribunal de
Justiça, R$ 26,75 com o Ministério Público e apenas R$ 1,84 com a Defensoria.
Em 2012, o orçamento do Tribunal de Justiça foi ampliado
para R$ 741,9 milhões (+ R$ 224,664 milhões ou 43,44%), enquanto o Ministério
Público ficou com R$ 232,3 milhões (+ R$ 34,838 milhões ou 17,64%). De forma
nunca vista em todo o território nacional, a Defensoria Pública experimentou um
decréscimo orçamentário, ficando com apenas R$ 10,5 milhões (- 22,14% do
total). Assim, para cada R$ 100,00 gastos com o aparelho judiciário, R$ 75,34
ficaram com o Tribunal de Justiça, R$ 23,59 com o Ministério Público e apenas
R$ 1,07 com a Defensoria. Não dá para comprar nem um cafezinho!
Segundo recente reportagem, para 2013, o Tribunal de Justiça
deseja um orçamento R$ 145,6 milhões maior. O Governo admite aumentar cerca de
R$ 70 milhões. O Ministério Público pleiteia mais R$ 34,7 milhões. O Governo
aceita ampliar os recursos do órgão em cerca de R$ 20 milhões. Para a
Defensoria, que queria R$ 10,3 milhões a mais (um orçamento total de R$ 20,8
milhões), o Governo acena com apenas mais R$ 2 milhões. Ou seja, a prevalecer a
vontade do Governo, em 2013, o orçamento do Ministério Público vai crescer pelo
menos algo parecido com o total de recursos de duas Defensorias, enquanto o
Tribunal de Justiça vai ser turbinado com o que poderia sustentar quase sete
Defensorias.
Mais uma vez é importante salientar que não se esta aqui a
defender que o Ministério Público e o Tribunal de Justiça tenham seus pleitos
rejeitados. Ao contrário. O cidadão sempre precisa de mais Justiça.
Todavia, não é admissível, que o Estado do Rio Grande do
Norte invista na Defensoria Pública menos do que investiu, por exemplo, em
propaganda no ano de 2011 (segundo recente relatório do Tribunal de Contas,
cerca de R$ 16 milhões).
O que se espera é que a sofrida população carente do Rio
Grande do Norte tenha direito à assistência jurídica integral e gratuita de
qualidade. O que se deseja é que o Governo do Estado finalmente abra os olhos
para os excluídos e passe a trabalhar para reduzir a discrepância histórica
entre os órgãos integrantes do aparelho de Justiça.
Já chegou a hora do “primo
pobre” ter direito a ter direitos. É tempo de o Estado do Rio Grande do Norte
garantir dignidade ao “amigo em pé”.
Situação continua precária
Ressuscitando o blog, observo que a situação da Defensoria Pública do RN continua precária e tende a piorar. Em breve, dados assustadores.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Situação insustentável da DPE/RN
Situação
da Defensoria do Estado do Rio Grande do Norte
|
|
Comarcas
|
|
Comarcas existentes
|
065
|
Comarcas com atendimento integral
|
008
|
Comarcas com atendimento emergencial
|
057 (87,69%)
|
População
|
|
População do Estado
|
3.164.103
|
População das comarcas com atendimento integral (embora com poucos
Defensores)
|
1.615.314
|
População das comarcas com atendimento emergencial
|
1.998.789 (63,17%)
|
Relação Defensor/População total
|
01 para 79.102
|
Relação Defensor/População com atendimento integral
|
01 para 40.382
|
Relação ideal
|
01 para 10.000
|
Comparação
com outras carreiras e Número de Defensores
|
|
Número de cargos de magistrados
|
202
|
Número de cargos de membros do MP
|
211
|
Defensores necessários (relação ideal)
|
316
|
Mínimo necessário
|
250
|
Cargos existentes
|
102
|
Defensores existentes
|
040 (12,65% do total necessário, 16% do
mínimo necessário e 39,22% dos cargos existentes)
|
Defensores afastados de suas funções por período superior a 30 dias (hoje,
em 13/04/2012)
|
06 (01 para exercer o cargo de Defensora
Geral, 02 por motivos de saúde e 03 por licença maternidade)
|
Orçamento
2011
|
|
Orçamento RN 2011
|
9.498.381
|
Orçamento MPE 2011
|
197.462
|
Orçamento TJE 2011
|
527.236
|
Orçamento DPE 2011
|
013.588
|
Em 2011, o orçamento da DPE representou
0,14% do Orçamento total do RN, enquanto o TJE ficou com 5,55% e o MPE com
2,08%. Para cada R$ 100,00 gastos com o aparelho judiciário, R$ 71,41 são
gastos com o TJE, R$ 26,75 com o Ministério Público e apenas R$ 1,84 são
gastos com a DPE. Vale dizer que o RN ainda remanejou significativa parte dos
recursos da DPE.
|
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Orçamento
2012*
|
|
Orçamento RN 2011
|
9.395.000 (- 01,09%)
|
Orçamento MPE 2011
|
242.870 (+ 22,99%)
|
Orçamento TJE 2011
|
726.556 (+ 37,80%)
|
Orçamento DPE 2011
|
010.500 (- 22,14%)
|
Em 2012, o orçamento da DPE recuou, fato
inédito no Brasil, e representou meros 0,11% do Orçamento total do RN,
enquanto que o TJE ficou com 7,73% e o MPE com 2,58%. Para cada R$ 100,00
gastos com o aparelho judiciário, R$ 74,14 são gastos com o TJE, R$ 24,78 com
o Ministério Público e apenas R$ 1,07 são gastos com a DPE.
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* Pode haver alguma imprecisão
nos dados referentes a 2012 pela limitada publicidade dos dados da OGE 2012,
fato também inédito em tempos de internet e transparência.
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quinta-feira, 12 de abril de 2012
Seu Laércio, o "criminoso"
Seu Laércio é um idoso que tem um pequeno comércio que mal dá para sustentar sua família. Em dezembro de 2010, pouco depois do Natal, recebeu a visita de dois desconhecidos. Um deles puxou uma arma e disparou contra o comércio de Seu Laércio. Ele foi atingido três vezes, sendo uma na cabeça.
Quando se recuperou, Seu Laércio foi à polícia e registrou um BO. O Estado foi incapaz de identificar os agressores. A polícia disse que não tinha como garantir sua segurança.
Desesperado, Seu Laércio saiu para comprar uma arma de fogo. Na volta para casa, foi parado por uma viatura. Aboradagem de rotina. Seu Laércio, que nunca havia passado sequer perto do Fórum, hoje responde por porte de arma de fogo de uso permitido. Já chorou algumas vezes na sala da Defensoria, com a preocupada esposa, companheira de tantos anos, agarrada ao seu braço. Ele me pergunta, com o olhar de que procura algo que nunca viu: "Doutor, isto é Justiça?"
Seu Laércio segue com a vida ameaçada...
Acabei de fazer sua defesa, juntando boletim de ocorrência, laudo do ITEP e declarações médicas. Além disso, cito Lênio Streck:
"(...). Está-se diante de caso de absoluta falta de razoabilidade: o Estado, porque – e isso é confesso – inoperante e sem efetivo policial para conter a violência, não pode infligir pena, por uma conduta que visava à defesa pessoal, a um sujeito que não consegue proteger. Refira-se, ainda, que a legislação penal brasileira não veda a existência de causas supralegais de extinção da culpabilidade, como é o caso da examinada inexigibilidade de conduta diversa. Aliás, não seria sistemicamente aceitável anuir que em casos de ilícitos previdenciários se afaste a punibilidade dos responsáveis da empresa – quando estes, conforme entendimento pacificado no Tribunais Regionais Federais pátrios, deixam de repassar ao INSS os valores descontados dos salários dos empregados quando motivada essa falta de repasse por comprovada crise financeira – e não aceitar a mesma a causa de exclusão da culpabilidade quando um indivíduo detém uma arma para resguardar a sua segurança concretamente ameaçada".
O que acham, Seu Laércio merece ser condenado?
quarta-feira, 11 de abril de 2012
A Anencefalia e o Crime de Aborto: Atipicidade por Ausência de Lesividade
A Anencefalia e o Crime de Aborto:
Atipicidade por Ausência de Lesividade.
Manuel Sabino Pontes[1]
SUMÁRIO: 1. Introdução; 1.1. Números da Matéria; 2.
Anencefalia; 3. Aborto; 4. Dignidade da Pessoa Humana; 4.1. Evolução da
Concepção Atual da Dignidade; 4.2. Tentativa de Conceituação e Caracteres; 5.
Direito à Vida; 6. Princípio da Lesividade; 7. Princípio da Proporcionalidade;
8. Crime de Aborto; 9. Conclusões; 10. Obras Consultadas.
1. Introdução
O abortamento tem-se mostrado como um dos
temas que mais suscitam discussão e polêmica em nossa sociedade, encontrando
desde os que defendem a descriminalização completa da conduta até os que lutam
pela sua proibição absoluta e incondicional. O tema ressurge de tempos em
tempos, ao sabor de fatos marcantes da ocasião.
A interrupção
da gravidez, mais especificamente quando se trata de feto portador da
anencefalia, retorna ao cenário nacional de discussões graças à divulgação na
mídia de uma Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/DF)
ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Confederação Nacional
dos Trabalhadores da Saúde (CNTS). Apresenta-se o seguinte questionamento:
deve-se permitir o prosseguimento de gestação de feto sem qualquer viabilidade
de vida?
A referida ADPF é de grande importância, já
que dificilmente chegam aos tribunais superiores pedidos de autorização para
abortamento, embora o abortamento exista de fato, ainda que clandestinamente.
Por outro lado, ainda que tais pedidos de autorizações sejam submetidos ao
Judiciário, a lentidão do maquinário jurisdicional ou mesmo o forte ranço
religioso que marca a formação de muitos profissionais do direito impede a
apreciação em tempo oportuno da questão.
Sobre os motivos que levaram a CNTS a
ingressar com a referida ADPF, declarou José
Caetano Rodrigues (REDE FEMINISTA DE
SAÚDE, 2005, p. 1), secretário-geral daquela
organização:
Foi por ver o
sofrimento e a peregrinação dessas mulheres na Justiça que decidimos entrar com
a ação que resultou na liminar. É também muito difícil para os médicos e
enfermeiros que acompanham essas gestações fazer o diagnóstico e não ter
respaldo legal para oferecer uma alternativa.
O nosso
objetivo com o presente texto consiste em analisar especificamente o
abortamento em casos de anencefalia, primando por uma abordagem puramente
jurídico-científica. Não se ambiciona aqui solucionar indiscutivelmente o
problema, posto a complexidade das paixões envolvidas e as evidentes limitações
do autor. Busca-se, entretanto, dar contornos mais objetivos e práticos à
matéria, rejeitando argumentos religiosos ou sem base legal.
1.1. Opção Metodológica
Quando as
Constituições de praticamente todo o mundo moderno resolveram retirar da Igreja
o controle sobre as Políticas Públicas, criando a noção de estado laico, não se pretendia incentivar a ausência de religiosidade
pela população, mas conceder a cada cidadão a liberdade para escolher que
religião deseja seguir. Contrario sensu,
impor à população através do Estado as verdades de uma determinada religião,
significa desrespeitar a liberdade de crença garantida a todos aqueles que
professam outra fé.
Por
reconhecer a importância do estado laico,
optamos por nos afastar de qualquer argumentação religiosa neste estudo,
conforme já explicitado desde sua primeira versão[2].
No entanto, utilizando-se de palavras de força (facismo, eugenia, assassinato)
e de autoridade (Deus, castigo), alguns leitores nos encaminharam mensagens de
flagrante ódio e intolerância. O engano que esses leitores cometem é exatamente
aquele que se buscou evitar neste trabalho: tentar derrubar uma tese científica
com idéias transcendentais. Não se trata exatamente uma novidade, já que Galileu Galilei (1564-1642) foi condenado
como herege por defender sua já então comprovada cientificamente teoria
heliocêntrica[3],
mas parece-nos uma tarefa impossível de se realizar no mundo pós-iluminismo. Embora
seja possível a interpretação da religião à luz da ciência, como já defendia Santo Agostinho (354-430)[4],
a via oposta, ou seja, a validação ou invalidação da ciência pela fé, é inadmissível.
Em um estado laico, é necessário lembrar que
existem diversas diferentes religiões com diversas diferentes concepções
teológicas. Mais ainda, dentro de cada religião, existem diferentes interpretações
de importantes conceitos. O estado laico precisa
respeitar a liberdade de crença de cada facção. Um estado religioso, por outro lado, precisaria escolher uma
determinada doutrina de uma determinada religião para seguir, satisfazendo os
seguidores daquela fé, mas necessariamente submetendo todos os demais.
Neste
sentido, Hélio Schwartsman (2005a, p. 2) é preciso:
(...) concedamos a eventuais céticos radicais que dogmas,
postulados e axiomas são indiscerníveis entre si e valem todos a mesma coisa,
isto é, nada. Ainda assim, a ciência teria sobre as religiões uma vantagem. Ela
tem como subproduto tecnologias - uma medida indireta de sua “exatidão” - cuja
universalidade é aferível. O foguete que eu construo com base em minhas idéias
sobre a física, desde que corretamente lançado, me levará à Lua quer eu seja
judeu, ateu, católico, muçulmano ou corintiano. Já com as religiões, as mesmas
ações que levariam o partidário de uma ao paraíso atiram-no no inferno segundo
a doutrina da outra. Daí se segue que um Estado democrático e multi-étnico
precisa necessariamente abraçar o laicismo.
Se não o fizer corre o risco de deixar de ser democrático
ou, pior, de acabar com as etnias e grupos minoritários.
O
início da vida humana, tema que interessa ao nosso estudo, por exemplo, é uma questão
controvertida entre todas as grandes religiões.
Com
relação especificamente ao cristianismo,
a questão teve várias reviravoltas. O filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) entendia que um novo ser humano
só existia após
os primeiros movimentos
do feto no ventre
materno. Hoje
sabemos que os primeiros
movimentos perceptíveis no ventre materno
ocorrem mais ou
menos após 20
(vinte) semanas de gestação. Apoiado no conhecimento científico da época,
entretanto, o grego definiu como o início da vida aos 40 (quarenta) dias da
concepção (quando o feto passaria de “inanimado” para
“animado” e se tornaria vida humana). Influenciados pelo filósofo grego,
São Tomás de
Aquino (1227-1274) e Santo Agostinho (344-431) definiram o início da vida moral, quando
o feto adquire alma, como sendo o 40° (quadragésimo) dia de gestação. O
primeiro Papa Católico a verdadeiramente condenar qualquer tipo de interrupção
da gravidez, através da Bula Effraenatam[5] e sob pena de excomunhão, foi Sixto V (1521-1590),
em 1588. Logo depois, no entanto, através da Bula Sedes Apostolica, de 1591, o
Papa Gregório XIV (1535-1591) voltou
atrás, estabelecendo que o feto “inanimado” não poderia ser considerado um ser
humano e que, em conseqüência, seria menos grave o aborto antes dos 40 (quarenta)
dias de gestação. A posição da igreja só se estabilizou em 1869, quando Pio IX (1792-1878) estabeleceu o início
da vida humana com a concepção (SUPERINTERESSANTE, 2005, p. 59). Ou seja, para
a atual doutrina católica, o produto da concepção é um ser humano pleno e dotado
alma, sendo inadmissível o aborto, mesmo em caso de risco de vida para a mãe ou
gravidez resultante de estupro, hipóteses estas expressamente previstas em
nosso Código Penal.
Vale
lembrar ainda que, com base na bíblia, já houve quem defendesse que a alma
ingressa no corpo com a respiração[6], enquanto outros já
entenderam que a alma surge com a formação do sistema circulatório[7], lá pelo 18° (décimo
oitavo) dia de gestação. A própria bíblia, ressalte-se distingue a vida em
formação da vida plena, estabelecendo uma mera pena pecuniária pelo aborto
acidental causado por terceiro, mas aplica o “olho por olho” quando a vítima do
mesmo fato for a mãe[8].
Para
o judaísmo, por sua vez, a vida
humana começa no 40° (quadragésimo) dia de gestação, quando o feto começa a adquirir
forma humana. Antes disso, a interrupção da gravidez não é considerada
homicídio. Para o islamismo, o início
da vida humana começa quando Alá sopra a alma no feto, cerca de 120 (cento e
vinte) dias após a fecundação. O aborto é condenado, mas o feto só é considerado
vida humana após adquirir sua alma (SUPERINTERESSANTE, 2005, p. 61). Para os kardecistas, por fim, a alma começa a se
unir ao corpo a partir da concepção, mas a união só se completa com o
nascimento. Assim, caso o corpo morra antes de nascer, o espírito a ele ligado
escolhera um outro para se vincular[9].
Além
destas diferenças gritantes, é interessante ressaltar que a posição oficial de
determinada religião não significa a concordância de todos os que professam
aquela fé. Especificamente sobre o tema do aborto no caso de anencefalia, pesquisa
do IBOPE revelou que 70% (setenta por cento) das católicas concordam com o
direito da mulher de decidir. Nesta mesma linha, concordam com aquelas 100% (cem
por cento) das kardecistas, mórmons e seguidoras da Assembléia de Deus, bem
como 90% (noventa por cento) das Testemunhas de Jeová e 83% (oitenta e três por
cento) das freqüentadoras da Seicho No Ie[10].
Quando
perguntadas se seria tortura obrigar uma mulher a manter, contra sua vontade, a
gestação de um feto anencéfalo até o final da gravidez, os números foram ainda
mais altos: 100% (cem por cento) das kardecistas, da Seicho No Ie, Mórmons,
adventistas do 7º Dia e da Assembléia de Deus consideram que não se deve exigir
isso da mulher. Também concordam 80% (oitenta por cento) das católicas, 79% (setenta
e nove por cento) das evangélicas e 84% (oitenta e quatro por cento) das espíritas5.
Sobre
a interseção entre o tema e o pensamento religioso, nenhum artigo foi tão
preciso e convidou tanto á reflexão quanto Anencefalia
na perspectiva da fé e da ética, de Frei
Cláudio van Balen e Sérgio Bittencourt
(2005, p. 4-6), publicado no sítio da Igreja do Carmo de Belo Horizonte:
(...). Ora, em matéria de anencefalia e de morte
encefálica é hora de acolhermos, com visão crítica, os dados da ciência e
as luzes da fé cristã. Não vale preconceito social, sectarismo religioso nem
integrismo jurídico com cegueira, passividade e intolerância.
(...). Em gestações de crianças anencefálicas, a mãe
funciona como um aparelho ligado até o momento do parto (...).
Nesse caso, a interrupção da gravidez nada tem a ver com
aborto, pois a vida não existe sem a mãe-aparelho. Ao se proibir tal recurso, o
feto é impedido de despedir-se de uma vida que já não existe, o que implica
desrespeito para com a mãe, sendo tratada como simples objeto sem
dignidade nem direito. Parece que, então, a mãe é reduzida a sepulcro de seu
próprio feto.(...)
Urge criar uma sensibilidade cristã com cidadania solidária
frente a preconceitos emocionais, culturais, jurídicos e religiosos. Urge
aprender a respeitar o fluxo natural da vida. Urge não empurrar famílias para
um mar de sofrimento, que não gera benefícios. Ninguém tem direito de expor ao
ridículo a limitação do ser humano. Não há motivo para encobrir a realidade com
prepotência jurídica e religiosa, espelhando irresponsabilidade na prática da
fé cristã e no exercício da cidadania.
Somos convidados a superar o preconceito contra a morte,
como se ela não fosse parte da vida. A morte é, sob múltiplos aspectos, a
criação da vida. A ninguém cabe resgatar, ilusoriamente, as pessoas para uma
dor prolongada. Médico, enfermeiro, psicólogo, profissionais de saúde, agentes
religiosos são chamados a defender a vida. Vida de boa qualidade. Jesus
advertiu: “Ninguém imponha a outros um peso que não deseja carregar”
(Lucas 11,46).
Todas
estas considerações, entretanto, seriam apropriadas se este fosse um artigo
religioso, o que não é o caso. O nosso objetivo é responder se, à luz do
ordenamento jurídico vigente, é fato punível interromper-se a gravidez diante
de um diagnóstico de anencefalia. Não se pretende ofender ou defender a fé de
quem quer que seja, mas perscrutar, do ponto de vista puramente
científico-jurídico, se o nosso estado
laico pune criminalmente o aborto nesses casos. Este estudo apenas pretende
responder esta questão, não sendo nosso desejo estabelecer se o aborto do
anencéfalo é ética, moral ou religiosamente aceitável.
Sendo
mais contundente, o articulista Hélio Schwartsman (2005b, p. 2-3) assevera:
(...) Roma tem todo
o direito de exigir
dos católicos que
obedeçam às suas diretrizes.
Estes, se quiserem conservar-se bons católicos,
estão obrigados a fazê-lo. Como cidadãos, contudo, são livres para seguir
ou não
as orientações da Santa
Sé. O Vaticano
também pode aconselhar
o Congresso Nacional
a acompanhar suas
posições, mas
isso não
será mais do que
um palpite,
tão bom
quanto o meu,
o do leitor ou
o da Frente de Libertação
dos Anões de Jardim. (...).
O Estado democrático deve procurar
proporcionar a maior felicidade possível
para o maior número de cidadãos,
sempre respeitando os direitos de todos.
Nessa busca invariavelmente conflituosa,
fatos provados devem ter
primazia sobre
opiniões. Dogmas
e crenças de alguns
merecem todo o respeito,
mas não
podem converter-se em amarras contra todos.
1.2. Importância
do tema
O tema tem
despertado grande interesse e polêmica atualmente, sendo citados conjuntamente
os termos “anencefalia” e
“aborto”, em cerca de 82.200
sítios da Rede Mundial[11].
Segundo pesquisa
encomendada ao IBOPE, 76% da população brasileira é favorável ao aborto no caso
de problemas congênitos absolutamente incompatíveis com a vida, como é o caso
da anencefalia. Por outro lado, relativamente às hipóteses expressamente permitidas
em lei, 79% da população é favorável ao aborto no caso de risco de morte para a
mulher, enquanto que, 62% apóiam com o aborto em caso de gravidez resultante de
estupro (ÉPOCA, 2005, p. 65).
Marcos Valentin Frigério, Ivan Salzo, Silvia Pimentel e
Thomaz Rafael Gollop
realizaram um trabalho intitulado Aspectos Bioéticos e Jurídicos do
Abortamento Seletivo no Brasil. Durante este trabalho, os autores estudaram
263 pedidos de alvarás para interrupção da gravidez em casos de anomalias
incompatíveis com a vida.
Nestes 263 casos estudados, o Ministério Público opinou pelo deferimento
do alvará em 201 (76,43%) casos e pelo indeferimento em 62 (23,57%). Em
contrapartida, o juiz decidiu pelo deferimento em 250 (95,06%) casos e pelo
indeferimento em apenas 13 (4,94%).
Os embasamentos jurídicos das decisões e pareceres pelo deferimento e
pelo indeferimento dos pedidos foram variados, como se pode observar nas
tabelas abaixo:
Embasamento
jurídico no deferimento
|
Juízes
|
MP
|
Inexibilidade de conduta
diversa
|
1
|
2
|
Artigo 5o. da
Constituição
|
3
|
4
|
Preservar a higidez psíquica
da gestante
|
63
|
41
|
Inexibilidade de conduta
diversa + Preservar a higidez psíquica da gestante
|
1
|
2
|
Inexibilidade de conduta
diversa + Artigo 5o da Constituição + Preservar a higidez psíquica
da gestante
|
7
|
5
|
Preservar a higidez
psíquica da gestante e autoriza o aborto pelo art. 128
|
17
|
5
|
No Artigo 5o. da
Constituição + art. 3o, Código de Processo Penal e princípios
gerais do direito nos princípios de jurisdição voluntária e art. 1104 e
seguintes do Código Penal
|
78
|
32
|
Estado de Necessidade +
Aplicando-se anologia "in bonam parte" usando art. 124 CP c/c o
Art. 128,I e II + Artigo 5o. da Constituição
|
1
|
4
|
Autoriza o aborto nos
termos do art. 128,I e II do CP
|
39
|
24
|
Aplicando-se anologia ïn
bonam parte" usando art. 124 CP c/c o Art. 128,I e II
|
13
|
29
|
No Artigo 5o. da
Constituição + art. 3o, Código de Processo Penal e princípios
gerais do direito nos princípios de jurisdição voluntária
|
6
|
5
|
Não há crime em realizar o
aborto pois o feto não tem mais vida a ser tutelada
|
6
|
3
|
Não encontra amparo no
direito normativo
|
3
|
2
|
Sem acesso a informação /
julgado na 2a. Instância
|
12
|
43
|
TOTAL
|
250
|
201
|
Tabela I: Embasamento jurídico de sentenças e pareceres favoráveis
a pedidos de aborto seletivo.
|
Embasamento
jurídico no indeferimento
|
Juízes
|
MP
|
Não se opõe desde que haja
risco de vida materno
|
0
|
1
|
Não configura estado de
necessidade
|
4
|
5
|
Não encontra amparo no
direito normativo
|
9
|
53
|
Invioabilidade do direito a
vida
|
0
|
3
|
TOTAL
|
13
|
62
|
Tabela II: A argumentação contra a autorização do aborto seletivo.
|
Assim, é de se
concluir que a grande maioria da população, bem como dos profissionais da área
jurídica, é favorável à interrupção da gravidez no caso de anencefalia.
Entretanto, ainda existe certa dúvida quanto à fundamentação jurídica adequada
para sustentar as decisões judiciais neste sentido.
2. Anencefalia
A discussão
sobre o aborto do feto anencéfalo tem que passar, necessariamente, por uma
melhor compreensão do que vem a ser a anencefalia. Sobre o tema, de um ponto de
vista médico, os Doutores Carlos
Gherardi e Isabel Kurlat
escreveram o esclarecedor texto Anencefalia
e Interrupción del Embarazo - Análisis médico y bioético de los fallos
judiciales a propósito de un caso reciente. As conclusões deste trabalho
são reproduzidas a seguir, de forma resumida e em tradução livre.
A anencefalia
é uma alteração na formação cerebral resultante de falha no início do
desenvolvimento embrionário do mecanismo de fechamento do tubo neural e que se caracteriza pela falta dos ossos
cranianos (frontal, occipital e parietal), dos hemisférios e do córtex cerebral.
O tronco cerebral e a medula espinhal estão conservados, embora, em muitos
casos, a anencefalia se acompanhe de defeitos no fechamento da coluna vertebral.
Aproximadamente 75% dos fetos afetados morrem dentro do útero, enquanto que,
dos 25% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o
resto dentro da primeira semana.
Na
anencefalia, a inexistência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex)
provoca a ausência de todas as funções superiores do sistema nervoso central.
Estas funções têm a ver com a existência da consciência e implicam na cognição,
percepção, comunicação, afetividade e emotividade, ou seja, com aquelas
características que são a expressão da identidade humana. Há apenas uma efêmera
preservação de funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as
funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal. Esta situação
neurológica corresponde aos critérios de morte
neocortical (high brain
criterion), enquanto que, a abolição completa da função encefálica define a morte cerebral ou encefálica (whole brain criterion).
A viabilidade
para a vida extra-uterina depende do suporte tecnológico disponível (oxigênio,
assistência respiratória mecânica, assistência vasomotora, nutrição, hidratação).
Há 20 anos, um feto era considerado viável quando completava 28 semanas,
enquanto que, hoje, bastam 24 semanas ou menos. Faz 10 anos que um neonato de 1
kg estava em um peso limite, mas hoje sobrevivem fetos com 600 gramas. A
viabilidade não é, pois, um conceito absoluto, mas variável em cada continente,
país, cidade e grupo sociocultural. Entretanto, em todos os casos, a
viabilidade resulta concebível em relação a fetos intrinsecamente sãos ou
potencialmente sãos. O feto anencefálo, ao contrário, é intrinsecamente
inviável. Dentro de um quadro de morte
neocortical, carece de toda lógica aplicar o conceito de viabilidade em
relação ao tempo de gestação. O feto será inviável qualquer que seja a data do
parto.
Vale
ressaltar que, para o Conselho Federal
de Medicina, segundo o contido em sua Resolução nº 1.752/2004, o anencéfalo
é um natimorto cerebral. Por não possuir o córtex cerebral, mas apenas o tronco
encefálico, é inaplicável e desnecessária a utilização dos critérios médicos
definidores da morte encefálica.
De acordo com
o Ministro Joaquim Barbosa, do STF,
“o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo (porque feito de
células e tecidos), não tem proteção jurídica”[12].
Isto porque, como lembra Claus Roxin (2005,
p. 11), “a vida vegetativa não é suficiente para fazer de algo um homem e com a
morte encefálica termina a proteção à vida”.
3. Aborto
Para o Dicionário
Aurélio, aborto é a “interrupção
dolosa da gravidez, com expulsão do feto ou sem ela” (FERREIRA, 1999). Não há grande debate sobre a
definição do que vem a ser aborto, mas a classificação do tema suscita muitas
paixões e intermináveis controvérsias. A lição de Débora Diniz[13],
na qual nos baseamos, parece a mais objetiva e sistemática.
Basicamente, podem-se
reduzir as situações de aborto a quatro grandes grupos:
a)
Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de abortos
ocorridos em nome da eugenia, isto é, situações em que se interrompe a gestação
por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente, apontam-se os atos
praticados pela medicina nazista como exemplo de aborto eugênico, quando as
mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra
geral, o aborto eugênico se processa contra a vontade da gestante, sendo esta
obrigada a abortar;
b)
Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos de abortos
ocorridos em homenagem à saúde materna, isto é, em situações onde a interrupção
da gravidez visa salvar a vida da gestante. Hoje em dia, com o avanço
científico e tecnológico na medicina, os casos de aborto terapêutico são cada
vez em menor número, sendo raras as situações terapêuticas que exijam tal
procedimento;
c)
Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de abortos
ocorridos em virtude de anomalias fetais, isto é, situações em que se
interrompe a gestação pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que
motivam as solicitações de aborto seletivo são de patologias incompatíveis com
a vida extra-uterina, sendo exemplo clássico o da anencefalia;
d)
Interrupção voluntária da gestação (IVG): são os casos de abortos
ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, ou seja,
onde a gestação é interrompida porque a mulher ou o casal não deseja a
gravidez, seja por ser ela fruto de um estupro ou de uma relação consensual.
Geralmente, a legislação que admite esta modalidade de aborto impõe limite cronológico
à prática.
Com exceção do aborto eugênico, todas as outras formas de aborto,
por princípio, levam em consideração a vontade da gestante ou do casal. O termo
eugenia, entretanto, mais por uma estratégia de argumentação que por real
correspondência, tem sido utilizado para descrever a corrente que defende a
liberação do aborto de anencéfalos.
O
término “seletivo” da gravidez (ISG), como explicado, ocorre no caso daquele
feto que, devido a uma má formação fetal, faz com que a gestante ou o casal não
deseje o prosseguimento da gestação. É certo que, neste caso, há uma seleção
(como na eugenia), entretanto, ela foi feita com a concordância da gestante e
em razão da impossibilidade da vida extra-uterina ou da qualidade de vida do
feto depois do nascimento.
Dentro
da definição de aborto seletivo (ISG), há a necessidade de se distinguir os
casos em que o feto vai se tornar uma criança com deficiência, ou seja, com
limitações à plenitude da vida, dos casos nos quais o feto não possui qualquer
viabilidade para vida extra-uterina. O nascimento de uma pessoa com deficiência
é merecedor de proteção legal plena, posto que se trata, aqui, de plena viabilidade
para a vida. Saliente-se, inclusive, que as tais limitações da criança com
deficiência podem ser mitigadas ou até superadas pelo tratamento adequado. A
questão que se debate neste trabalho diz respeito às anomalias plenamente incompatíveis
com a vida, onde a gestação é conduzida com a certeza absoluta da não
sobrevivência. As conclusões deste trabalho não podem jamais ser estendidas ao abortamento
para evitar o nascimento de crianças com deficiência.
Por
fim, embora seja tema de capítulo posterior, é de se destacar que, no Brasil, o
aborto apenas é permitido expressamente no caso de risco de vida para mãe (ITG)
e no caso de gravidez resultante de estupro (IVG).
4. Dignidade
da Pessoa Humana
Embora muitos doutrinadores considerem o direito à vida antecedente
necessário de todos os demais direitos fundamentais, esta análise é de natureza
puramente cronológica. O direito à vida, de nosso ponto de vista, é
conseqüência lógica da dignidade da pessoa humana. Ou seja, é a condição de
pessoa humana que confere ao ser a gama de direitos que compõe o conteúdo da
dignidade, entre eles, o direito à vida.
Neste mesmo sentido, a Constituição Federal considerou a dignidade da
pessoa humana fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), sendo
o princípio-valor fundamental segundo o qual devem ser interpretados todos os
demais diretos.
Assim, antes mesmo de se falar em direito à vida, necessário compreender
a dignidade da pessoa humana e seus caracteres principais.
4.1. Evolução da Concepção
Atual da Dignidade
A construção da atual concepção do pensamento
ocidental sobre a dignidade da pessoa humana deve seus primórdios à filosofia
grega. A Grécia Antiga rompeu com a tradição de se dar explicações mitológicas
às forças da natureza e criou um racionalismo baseado na observação para
explicar os fenômenos naturais, enumerando uma série de leis e princípios
necessários e universais. Além disso, os pensadores gregos estabeleceram que o
homem é detentor da plena capacidade de compreender a natureza e seus
fenômenos.
Rabenhorst (2001, p. 15) lembra a
contribuição grega:
(...) uma das primeiras reflexões acerca do lugar do homem no mundo
aparece na tragédia Antígona, de Sófocles (442 a.C.). Nela encontramos a
idéia de que o homem é uma exceção dentro do conjunto da natureza: Muitos
prodígios há; porém nenhum maior do que o homem (Antígona, v
332-335). O grande trágico grego vê, pois, no homem, uma clara superioridade
com relação às outras espécies. Tal superioridade advém não apenas da
quantidade de coisas que este ser é capaz de realizar, mas principalmente da
qualidade de suas habilidades: ele sabe ensinar a si próprio, sabe cultivar a
terra, domesticar animais, atravessar o mar...
Os gregos
antigos acreditavam que os homens se distinguiam dos demais animais pelo uso da
razão, ou seja, pela capacidade de compreender o mundo e de utilizar a lógica.
A palavra grega logos, aliás, significava, entre outras coisas, o uso da
razão e da linguagem. E era justamente na razão, na lógica, onde residia, para
os gregos, a dignidade.
Importante
ressaltar, entretanto, que a dignidade, para os gregos, não se manifestava da
mesma forma para todos os indivíduos. Em Atenas, por exemplo, apenas os
atenienses do sexo masculino, filhos de atenienses e no perfeito gozo de suas
liberdades, possuíam cidadania e tinham assegurado o pleno exercício da palavra
e a isonomia. Mulheres, escravos e estrangeiros eram considerados inferiores e
não participavam da vida pública.
A dignidade (dignitas), pois, tinha relação com a
posição social ocupada pelo indivíduo, sendo possível se falar em sua
quantificação e modulação, sendo reconhecidos alguns homens como mais dignos
que outros.
O pensamento
estóico – como é conhecida a produção filosófica de Stoa (Pórtico) –
apareceu no período da subjugação dos gregos pelos romanos e defendia que todos
os homens são livres e iguais, já que neles se manifesta uma idêntica
capacidade de pensar (logikós). Desta identidade concluíram os estóicos
que todos os homens são membros de uma mesma comunidade (oikeiôsis)
fraternal, sendo esta uma lei natural superior às leis artificiais do homem.
Neste sentido, os estóicos repudiavam veementemente a escravidão como instituição
social. Para eles, a única forma legítima de desigualdade entre os homens seria
de natureza moral, havendo homens mais sábios ou virtuosos (sophoi) que
outros, insensatos e escravos das paixões (phauloi).
Assim, na antiguidade, coexistiam as noções
de dignidade moral (acepção estóica) e dignidade sociopolítica (no sentido de
posição social e política ocupada pelo indivíduo).
Com o advento
da doutrina cristã, passou-se a difundir a idéia de que o homem foi concebido à
imagem e semelhança de Deus. Neste aspecto, todos os homens são iguais, portadores
de um valor próprio que lhes é intrínseco. Além disso, o cristianismo passa a
propor uma salvação pessoal baseada na escolha de cada um, na liberdade, no
livre-arbítrio. A concepção cristã deslocou o foco da filosofia da sociedade
como um todo para o indivíduo. A visão da dignidade perdeu a dimensão
quantitativa que possuía no mundo antigo, deixando de ser uma honraria ou
distinção decorrente da situação social do indivíduo, para adquirir uma
dimensão qualitativa, no sentido de que nenhum indivíduo possuiria maior ou
menor dignidade, mas todos manifestariam uma idêntica estrutura espiritual.
Neste sentido, cada homem, não importando sua origem ou condição social, seria
intrinsecamente valioso e indistintamente digno de respeito.
Ressalte-se
que esta bela doutrina nem sempre foi efetivada na prática, negando a Igreja
Católica, por vezes, a humanidade de índios e negros, por exemplo. Do mesmo
modo, a Igreja Católica também legitimou todo o sistema de estratificação
social do feudalismo, sistema este que evidentemente distinguia os homens.
Tomás de Aquino, que chegou a se referir expressamente à dignitas humana, procurou conjugar a
doutrina cristã e a acepção estóica da dignidade clássica. Para o pensador,
quando Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, dotou-o de razão,
qualidade peculiar que lhe permite construir sua vida de forma livre e independente.
Esta capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, para Tomás de Aquino, é o fundamento da
dignidade da pessoa humana.
No âmbito do pensamento jusnaturalista dos
séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana passou por um
processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção de que todos
os homens são iguais em dignidade e liberdade.
Segundo Locke,
cada indivíduo é circundado por um perímetro de não-interferência
intransponível ao controle social. Esta área de não-interferência é disposta
pelos indivíduos como um direito natural e é transferida ao Estado por meio de
um pacto social. Não existiria, portanto, qualquer diferença natural entre os
indivíduos, contudo, para assegurar esta igualdade em uma sociedade civil, os
homens fazem uso de um pacto que formaliza os direitos que eles naturalmente
possuem e os tornam efetivos por meio da coerção.
Para Immanuel Kant, a natureza racional do ser humano lhe confere autonomia da
vontade, ou seja, a faculdade de determinar a si mesmo e agir (ou não) em
conformidade com as normas. Esta característica, apenas encontrada no homem,
constitui-se fundamento da dignidade da pessoa humana. Com base nesta premissa,
Kant (1980, p. 140) sustenta:
(...) o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como
um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se
dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem
sempre de ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de
todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional.
Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da
natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como
meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam
pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer
dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por
conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).
A acepção de
dignidade da pessoa humana elaborada por Kant
prevalece na doutrina jurídica mais expressiva – nacional e estrangeira, muito embora
sofra alguma crítica por seu exagerado antropocentrismo.
Existe uma
significativa diferença entre a visão cristã e a concepção kantiana da
dignidade humana. Ambas atribuem uma dignidade intrínseca ao homem em função da
posição que este ocupa no mundo, entretanto, enquanto que, para a perspectiva
cristã, a dignidade se justifica pela representação divina do homem, para Kant,
a dignidade se alicerça na própria autonomia do sujeito, ou seja, na capacidade
humana de se submeter às leis oriundas de sua potência legisladora e de
formular um projeto de vida de forma consciente e deliberada.
Sartre rejeita a idéia de natureza humana intrínseca. Para
ele, o homem primeiro existe, para depois ter sua essência, pelo que, o seu
futuro está inteiramente por construir e sob sua responsabilidade. O homem,
então, nada mais é que o que ele faz de sua própria vida, só existindo na
medida em que se realiza. Assim, para Sartre,
a dignidade da pessoa humana não é inata, ao contrário, reside justamente no
fato de sua existência estar toda por construir. Ao contrário das coisas, que
já possuem uma existência predeterminada, o homem tem plena liberdade para
fazer-se. Aí reside a sua dignidade.
Cumpre
destacar ainda a noção desenvolvida por Hegel,
sustentando que a dignidade consiste em uma qualidade a ser conquistada. A
dignidade de Hegel é centrada na
idéia de eticidade, de tal sorte que o homem não nasce digno, mas torna-se
digno a partir do momento que assume sua condição de cidadão.
Para Hannah Arendt, por fim, a dignidade da
pessoa humana representa um conjunto de direitos inerentes ao homem que devem
ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado. A autora, ao
analisar o fenômeno totalitário, percebeu que, neste tipo de estado, criam-se
as condições para que se considerem os homens supérfluos, subtraindo sua
condição humana. Para evitar a formação deste tipo de estado e a conseqüente
coisificação do homem, sugere a autora o pleno exercício da liberdade e da
palavra, de forma a possibilitar o pleno desenvolvimento das potencialidades
humanas. A constitucionalização do valor-fonte da dignidade da pessoa humana
sob a forma de princípio em diversas Constituições mundiais decorre diretamente
do pensamento de Hannah Arendt.
4.2. Tentativa de
Conceituação e Caracteres
Segundo
afirma Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 39), é questionável a
viabilidade de se alcançar um conceito satisfatório do que significa a
dignidade da pessoa humana. Esta dificuldade decorre, conforme exaustiva e
correntemente destacado na doutrina, do fato de que se trata aqui de conceito
de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigüidade e
porosidade, bem como por sua natureza polissêmica. Trata-se, pois, de conceito
jurídico indeterminado, ou seja, no dizer de karl English (1983, p. 208), “um conceito cujo conteúdo e
extensão são em larga medida incertos”.
Cabe
ressaltar que não é só o conceito de “dignidade da pessoa humana” que apresenta
certa indeterminação. A própria significação dos termos “humano” e “pessoa”
apresentam alguma fluidez. Para o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1999),
estes termos significam o seguinte:
Humano (do lat. humanu) Adj. 1. Pertencente ou relativo ao
homem; natureza humana; gênero humano. 2. Bondoso, humanitário.
Pessoa (do lat. persona) s.f. 1. Homem ou mulher. 2. V
personagem. 3.V. individualidade. 4. (...). 5. Filos. Cada ser humano
considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades
que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade,
a consciência de si, a capacidade de agir conforma fins determinados e o
discernimento de valores. 6. Jur. Ser ao qual se atribui direitos e obrigações.
Assim, importante deixar claro que, ao
falarmos de dignidade da pessoa humana, estamos nos referindo tão somente aos
integrantes da raça humana. Não há que se falar, pois, de dignidade da pessoa
humana de animais ou plantas, por exemplo. Por mais óbvia que pareça esta
afirmação, ela é importante para dar um ponto de partida seguro à nossa
tentativa de conceituação.
A palavra "pessoa", por outro lado, deriva do
latim persona, e surgiu no cenário grego como máscara dos atores e, aos
poucos, passou a significar o conjunto de traços acusadores de certo tipo de
indivíduo. Foi com esse significado que a palavra se introduziu na linguagem
filosófica, pelo estoicismo popular, para designar os papéis representados pelo
homem na vida social. Segundo Locke,
pessoa "é um ser inteligente e pensante que possui razão e reflexão,
podendo observar-se (ou seja, considerar a própria coisa pensante que ele é) em
diversos tempos e lugares; e isso ele faz somente por meio da consciência, que
é inseparável do pensar e essencial a ele" (PEREIRA, p. 153-155). Pessoa humana, pois, é cada
integrante da raça humana, caracterizada essa, entre outras coisas, pela racionalidade, pela
consciência de si mesmo, pela capacidade de agir conforme fins determinados e
pela capacidade de atribuir valores.
A razão, como
se pode observar, é elemento essencial da definição de pessoa. Entretanto, vale
salientar que esta razão deve ser considerada em abstrato, como sendo a
capacidade que cada ser humano tem de ser racional, ainda que, no caso
concreto, esta potencialidade não se realize. É o caso dos insanos, dos comatosos,
entre outros.
No uso da sua
singular racionalidade, o direito é, sem dúvida, uma das maiores realizações do
homem. Através de uma complexa valoração, o ser humano estabeleceu normas de
convivência social, positivou as mais importantes e criou um sistema organizado
para exigir o seu cumprimento. O homem criou as leis e possui a força
necessária para fazê-las cumprir. Neste sentido – e em outros mais – o ser
humano é um animal singular.
Conscientizando-se
de sua singularidade, o homem passou a acreditar ser merecedor de uma proteção
especial e devedor de uma conduta irrepreensível. A este conjunto de direitos e
deveres fundamentais, destinados a preservar o homem como algo especial, deu-se
o nome de dignidade da pessoa humana. Assim, não há que se falar em dignidade
inata, já que não se trata de dado ôntico, que existe na natureza. Trata-se de
uma convenção social. A dignidade da pessoa humana é um conceito criado pelo
homem e que depende de uma fé, de uma crença de que o ser humano é superior aos
demais animais e merecedor desta distinção. O homem possui dignidade porque ele
diz que a tem e possui a força para fazer valer o que foi dito.
Neste
sentido, Rabenhorst (2001, p. 46):
(...) assumamos que a dignidade humana não é uma propriedade observável
e que, como tal, não pode ser provada ou negada sobre bases meramente fáticas.
Isto significa que ela seria apenas uma ideologia criada pela visão de mundo
ocidental? Não necessariamente. Ela pode significar, também, que a idéia de que
todos os homens são indistintamente dignos repousa em um conjunto de crenças
morais que não podem ser plenamente justificadas. Essas crenças, escreve
o filósofo canadense Charles Taylor, se agregam em torno do sentido de que a
vida humana deve ser respeitada e de que as proibições que isso nos impõe
contam-se entre as mais ponderáveis e sérias de nossa vida.
Embora exista – em um determinado momento e
lugar – a crença de que o homem é portador de uma certa dignidade, isto não
quer dizer que esta fé seja reconhecida pela legislação respectiva e, por sua
vez, mesmo que seja ela reconhecida, isto não quer dizer que todo o conteúdo da
dignidade da pessoa humano seja efetivado a todos. A crença, a positivação e a
efetivação de seu conteúdo são etapas do desenvolvimento da dignidade da pessoa
humana.
O conteúdo da
dignidade da pessoa humana, por sua vez, segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 60) implica em “um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra
todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
A dignidade
da pessoa humana, justamente por se tratar de uma crença social, jamais poderá
ser conceituada de maneira fixista, o que não se harmonizaria com o pluralismo
e a diversidade de valores que se manifestam nas diversas sociedades
contemporâneas e ao longo do tempo. Trata-se, pois, especialmente em relação ao
seu conteúdo, de um conceito em permanente processo de construção e
desenvolvimento.
Com relação
ao momento do surgimento e do desaparecimento do titular da dignidade da pessoa
humana, existem sérias controvérsias. Entretanto, partindo do pressuposto que a
racionalidade e a
consciência de si mesmo, bem como a capacidade de agir conforme fins
determinados e atribuir valores são características definidoras da humanidade, poderíamos conceber que
a pessoa humana surge com o nascimento – já que o feto é um ser humano ainda em
construção – e desaparece com a morte, seja ela propriamente dita ou cerebral.
O feto e o cadáver não são capazes de razão, de autoconsciência ou
autodeterminação. O feto pode vir a ser uma pessoa e o cadáver foi uma pessoa.
Nem um nem o outro é pessoa.
Vale
ressaltar, por outro lado, que o feto e o cadáver possuem dignidade. Mas
trata-se de uma dignidade relativa, em homenagem ao que o feto pode vir a ser e
ao que o cadáver foi. Assim, parte da proteção dada ao ser humano é estendida
ao feto e ao cadáver, entretanto, este fato nunca pode suplantar o dever do
Estado de proteger o ser humano e sua dignidade.
No Brasil, a
dignidade da pessoa humana constitui fundamento do Estado democrático de
Direito, previsto no artigo 1.º, inciso III da Constituição Federal. O
constituinte de 1988, assim a posicionando, alçou a dignidade da pessoa humana
à condição de princípio e valor fundamental.
5. Direito à Vida
A palavra vida (do latim vita) é conceituada no Dicionário
Aurélio (FERREIRA, 1999) da seguinte forma:
Conjunto de propriedades
e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos
mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em
funções orgânicas tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos,
a adaptação ao meio, a reprodução, e outras; existência; o estado ou condição
dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte; o espaço de tempo que decorre desde o
nascimento até a morte.
(grifo nosso)
No mesmo sentido, para o Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, a vida, entre outras acepções é “o período de
um ser vivo compreendido entre o nascimento e a morte”.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, aprovado pela XXI sessão da Assembléia Geral das Nações
Unidas, reza que “O direito à vida é
inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém
poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”. (Parte III, art.
6).
O Art. 5º, caput da Constituição
Federal de 1988, assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no
Brasil, o direito à vida. Diz a carta Magna:
Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade.
Segundo a Constituição Federal,
para ser brasileiro é necessário que se tenha nascido com vida. Além deste
pré-requisito, o art. 12 CF estabelece que:
São brasileiros: I - natos: a) os nascidos na República
Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não
estejam a serviço de seu país; b) os
nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que
qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro, de
pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República
Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira;
II - naturalizados: a) os que, na
forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de
países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e
idoneidade moral; b) os estrangeiros
de qualquer nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais
de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a
nacionalidade brasileira.
(grifo nosso)
O estrangeiro, por outro lado, é todo aquele
que não é nacional. É a pessoa humana nascida com nacionalidade[14]
diversa. Assim, seja brasileiro ou estrangeiro, só possui direito à vida quem
com ela já nasceu.
Neste sentido, Pontes de Miranda (1971,
págs 14-29) assevera que “o direito à vida é inato; quem
nasce com vida, tem direito a ela”.
O direito à vida, pois, já que inerente à
pessoa humana, surge com o nascimento e finda com a morte. Trata-se de dado
ôntico, de direito baseado na realidade. Antes surge a vida da pessoa humana,
depois, seu direito à vida. Correndo o risco da redundância, é de se concluir
que só tem direito à vida a pessoa humana que já nasceu e que, portanto, já vive.
Observe-se que não se está defendendo que o
feto não é um ser vivo ou que seja ele uma coisa. O feto não é vida humana, mas
ser que possui potencialidade para a vida humana. O feto também não é uma coisa,
mas ainda não é uma pessoa, posto que seu potencial ainda não se realizou.
Assim, o termo inicial da aquisição do direito à vida é o nascimento, quando
surge a pessoa humana.
Por tudo isso, não há que se falar em direto
à vida do nascituro, posto que ainda não se trata de pessoa humana, não ocorreu
o fato que fará surgir seu direito à vida, ou seja: o nascimento. O Estado,
entretanto, tem interesse que o feto nasça, realizando seu potencial e passando
a ser titular do direito à vida e da dignidade da pessoa humana.
6. Princípio da Lesividade
Dentre os princípios constitucionais não
formalizados que informam e orientam a atuação do Direito Penal, destaca-se o
da lesividade (ou ofensividade ou danosidade), segundo o qual, só interessa ao
Estado fazer uso do jus puniendi
quando houver lesão efetiva a bens jurídicos penalmente relevantes. Ao Direito Penal somente
interessa a conduta que implique dano relevante aos bens jurídicos essenciais à
coexistência social pacífica. Assim, em função do
princípio da lesividade, é vedada a incriminação de condutas que não excedam o
âmbito do próprio autor (BATISTA, 2001, pág. 92), tão-somente por serem
imorais ou pecaminosas.
Desta forma, somente pode ser objeto de punição
jurídica o comportamento que lesione direitos de outras pessoas. Não está o
Direito Penal legitimado a impor padrões de conduta às pessoas apenas porque é
mais conveniente, ou adequado. O objeto de proteção do Direito Penal é o bem
jurídico relevante. O que se aspira é evitar ou punir a conduta que implique
dano relevante a este bem jurídico.
Em resumo: se o bem jurídico protegido pela norma
incriminadora não for atingido pela conduta do agente, não há crime.
7. Princípio da
Proporcionalidade
A origem e a evolução da teoria da proporcionalidade encontram-se
intrinsecamente ligados à evolução dos direitos e garantias individuais da
pessoa humana, quando surgiram na Inglaterra as teorias jusnaturalistas que
pregavam ter o homem direitos inerentes e anteriores ao aparecimento do Estado.
Estes direitos deveriam ser respeitados por todos, inclusive pelo soberano.
Pode-se afirmar que é durante a passagem do Estado Absolutista – em que o
governante tem poderes ilimitados – para o Estado de Direito, que, pela primeira
vez, emprega-se o princípio da proporcionalidade, visando a limitar o poder de atuação
do monarca face aos súditos (CANOTILHO, 1998, pág. 260).
Coube à Alemanha a formulação atual da teoria da proporcionalidade (Verhaltnismassigkeitsprinzip)
em âmbito constitucional. Embora os direitos fundamentais já houvessem sido
postos em relevo pela Constituição de Weimar, foi após o fim da Segunda
Guerra Mundial que os tribunais começaram a proferir sentenças nas quais
afirmavam não ter o legislador poder ilimitado para a formulação de leis
tendentes a restringir direitos fundamentais (STEINMETZ, 2001, pág. 140). A
promulgação da Lei Fundamental de Bonn representa, assim, marco inaugural do
princípio da proporcionalidade em âmbito constitucional, ao colocar o respeito
aos direitos fundamentais como núcleo central de toda a ordem jurídica.
O princípio da proporcionalidade terminou por ser dividido em três
subprincípios, quais foram, a adequação (a),
a necessidade (b) e a proporcionalidade em sentido estrito
(c).
O primeiro (a) traduz uma exigência de compatibilidade entre o fim
pretendido pela norma e os meios por ela enunciados para sua consecução.
Trata-se do exame de uma relação de causalidade, onde uma lei somente deve ser
afastada por inidônea quando absolutamente incapaz de produzir o resultado
perseguido.
A necessidade (b) diz respeito ao fato de ser a medida restritiva de
direitos indispensável à preservação do próprio direito por ela restringido ou
a outro em igual ou superior patamar de importância, isto é, na procura do meio
menos nocivo capaz de produzir o fim propugnado pela norma em questão.
Traduz-se este subprincípio em quatro vertentes: exigibilidade material (a
restrição é indispensável), espacial (o âmbito de atuação deve ser limitado),
temporal (a medida coativa do poder público não deve ser perpétua) e pessoal
(restringir o conjunto de pessoas que deverão ter seus interesses
sacrificados).
Por último, o sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito (c)
diz respeito a um sistema de valoração, na medida em que ao se garantir um
direito muitas vezes é preciso restringir outro, situação juridicamente
aceitável somente após um estudo teleológico, no qual se conclua que o direito
juridicamente protegido por determinada norma apresenta conteúdo
valorativamente superior ao restringido.
8. Crime de Aborto
Não se trata,
aqui, de se fazer um profundo estudo sobre crime de aborto. Para os limites
deste trabalho, entretanto, faz-se necessário que sejam feitas algumas
considerações sobre o tema, principalmente sobre o sujeito passivo e a
objetividade jurídica do delito.
Aborto, como já especificado, é a interrupção do processo da gravidez,
com a morte do feto. O Código Penal pune o abortamento, podendo ser apontadas
seis condutas específicas: a) aborto provocado pela própria gestante ou
auto-aborto (art. 124, 1a parte); b) consentimento da gestante a que
outrem lhe provoque o abortamento (art. 124, 2a parte); c) aborto
provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125); d) aborto
provocado por terceiro com o consentimento ou consensual (art. 126); e) aborto
qualificado (art. 127); e f) aborto legal (art. 128), que não é crime.
Existe grande controvérsia acerca de qual seria a objetividade jurídica e
quem seria o sujeito passivo do crime de aborto. Para Damásio de Jesus (2001, pág 414), a objetividade jurídica do aborto
é a vida da pessoa humana e o sujeito passivo é o feto. Entretanto, salienta o
autor que, no caso do aborto provocado sem o consentimento da gestante, haveria
dupla objetividade jurídica, protegendo o Direito Penal também a incolumidade
física e psíquica da gestante. Conseqüentemente, haveriam dois sujeitos
passivos: o feto e a gestante. Discordando dessa opinião, Mirabete (1999, pág 685) afirma que o “Sujeito passivo é o Estado, interessado no nascimento, e não o feto,
ou seja, o produto da concepção, que não é titular de bens jurídicos, embora a
lei civil resguarde os direitos do nascituro”.
Os autores que compartilham da posição defendida por Damásio de Jesus
baseiam-se na posição do tipo legal no Código Penal, no fato dele se encontrar
dentro do capítulo dos crimes contra a
vida. Assim, se o Código Penal protege a vida do feto, ele é detentor de
bens jurídicos e pode, concluem estes autores, ser sujeito passivo de delito.
Esta opinião, embora respeitável, carece de uma visão sistemática da
legislação brasileira e parte de falsas premissas. Em primeiro lugar, como já
exaustivamente demonstrado, a Constituição Federal garante o direito à vida do
brasileiro a partir do nascimento, e não da concepção. Aliás, os direitos e
garantias fundamentais são previstos apenas pra os brasileiros e estrangeiros,
sendo que a nacionalidade se adquire apenas com o nascimento, enquanto que, ao
feto não houve previsão de qualquer bem jurídico. Em segundo lugar, a propalada
proteção aos direitos do nascituro ocorre exclusivamente no âmbito do Direito
Civil e apenas no que se refere às questões patrimoniais[15]. Mesmo assim,
esta proteção é condicionada ao nascimento com vida. Em terceiro lugar, o feto
não pode ser chamado de pessoa humana, como o faz Damásio de Jesus, já que,
para ser chamado de pessoa, faz-se necessário o nascimento com vida. Patente,
pois, que nossa legislação não tem o feto como sujeito de direitos, não podendo
ele ser sujeito passivo de ato criminoso.
O feto, como já explicado, não possui dignidade da pessoa humana, entretanto,
possui uma dignidade relativa, já que, potencialmente, tornar-se-á uma pessoa
com o nascimento. É neste sentido que o Estado possui interesse em proteger o
feto, sendo aquele o verdadeiro sujeito passivo do crime de aborto. A gestante,
por sua vez, quando o aborto é realizado sem seu consentimento, também seria
considerada como sujeito passivo do delito, já que possui interesse tanto no
nascimento de seu filho como na manutenção de sua integridade física.
Com relação à
objetividade jurídica, é necessário esclarecer que a vida protegida pelo Código
Penal também é a da pessoa humana. Não há crime de homicídio, por exemplo, em
se tirar a vida de uma planta ou um animal. Da mesma forma, já que um feto não
é uma pessoa, não é possível punir a interrupção de uma gravidez pelo art. 121
do CP (homicídio). O tipo aborto foi criado para proteger a potencialidade que
possui o nascituro de ser uma pessoa. A razão de ser da criminalização do
aborto é, então, proteger a dignidade relativa do feto, para que ela se torne,
com o nascimento, plena dignidade da pessoa humana. Ou, como diria Rogério
Greco (2005, pág. 275), a objetividade jurídica do crime de aborto “é a
vida humana em desenvolvimento”. Acrescente-se, entretanto, ser necessária uma
mínima possibilidade da realização do potencial que possui o feto de se tornar
uma pessoa humana.
Vale lembrar também que, em duas hipóteses diferentes, o legislador
declara lícito o aborto, excluindo a antijuridicidade nos casos de: a) aborto
necessário e b) aborto sentimental. O aborto necessário, também
conhecido por terapêutico, é o aborto praticado quando não há outro meio
de salvar a vida da gestante. O aborto sentimental, também denominado ético
ou humanitário, é permitido no caso de gravidez resultante de
estupro.
Para os que entendem que a objetividade jurídica do aborto é a vida,
ambos os casos de aborto legal são inconstitucionais: o aborto necessário,
porque o legislador sobrepõe a vida da mãe à do feto – apesar de serem bens
jurídicos idênticos –, e o aborto sentimental, porque o Código Penal sacrifica
direito fundamental – a vida – em homenagem à higidez mental da gestante.
9. Conclusões
De posse de
todas estas considerações, é possível formular uma teoria laica sobre o
abortamento do feto anencéfalo.
Inicialmente,
convém traçar um paralelo sobre a posição jurídica dos dois extremos da vida
humana: o feto (aqui considerado genericamente do ovo até antes do nascimento)
e o cadáver. O feto e o cadáver não possuem dignidade da pessoa humana (já que
pessoas humanas não são), entretanto, possuem uma dignidade relativa. O feto
pelo que ele pode vir a ser e o cadáver pelo que foi.
O Estado não
criminalizou o aborto em homenagem ao direito à vida, mas para proteger a
dignidade relativa do feto, ou seja, a sua potencialidade de adquirir direito à
vida e se tornar uma pessoa humana com o nascimento. Em sentido inverso, a
vilipendiação de cadáver[16]
também é crime, mas em proteção à sua dignidade a posteriori.
Entretanto,
quando o direito à vida (aborto terapêutico) ou à dignidade (aborto
sentimental) da gestante está em risco, o abortamento é permitido. A
vilipendiação de cadáver, por sua vez, desde que para fins científicos ou
educacionais, é admitido. Pela aplicação do princípio da proporcionalidade,
pela ponderação dos bens jurídicos em conflito, é fácil perceber o acerto da
legislação. É que o pode ser (o feto) ou o que foi (o cadáver) jamais pode
prevalecer sobre o que é (a pessoa humana). A gestante e o estudioso da
medicina possuem direito à vida e dignidade da pessoa humana em suas formas plenas.
O feto e o cadáver não.
Utilizando
essas conclusões como ponto de partida, desta feita partindo para o objetivo
deste trabalho, resta avaliar a situação legal do abortamento voluntário quando
se tratar de feto portador da anomalia genética denominada anencefalia.
O feto
anencéfalo pode ser considerado portador de morte neocortical (high brain
criterion), já que não possui a parte da estrutura cerebral responsável
pela existência da consciência e que implicam na cognição, na percepção, na
comunicação, na afetividade. Estas, como se sabe, são as características
definidoras da pessoa humana. Muito embora em alguns poucos casos a vida
extra-uterina seja possível – por um curto período e dependendo do suporte
tecnológico disponível – jamais o feto anencéfalo se tornará uma pessoa humana[17].
Se não existe viabilidade de vida humana, não há que se falar em dignidade
sequer relativa.
Por outro
lado, se o crime de aborto tem por objetividade jurídica proteger a dignidade
relativa do feto, a potencialidade de vida humana, e o portador da anencefalia
não possui esta dignidade, esta potencialidade, é de se concluir que, no caso
do abortamento do feto anencéfalo, não existe lesão ao bem jurídico tutelado
pelo tipo penal. Não havendo lesividade, não há que se falar em crime: é fato
atípico.
Mesmo em se
considerando o feto anencéfalo portador de algum tipo de dignidade relativa, é
de se ponderar que a continuação de uma gravidez inviável não pode ser imposta
à gestante, portadora esta de uma dignidade plena, em homenagem a um feto sem
qualquer possibilidade de se tornar uma pessoa humana. Para se chegar a esta
conclusão, através da aplicação do princípio da proporcionalidade, é de se
considerar a ausência de consciência do feto anencéfalo – ou seja, o fato de
não haver possibilidade de sofrimento no abortamento – e a extrema dor
psicológica da gestante confrontada com um diagnóstico de anencefalia.
Assim,
proibir o abortamento no caso de anencefalia por motivos puramente religiosos é
inadmissível em um Estado laico. Com a permissão, cada um pode agir de acordo
com suas crenças. Com a proibição, a fé de alguns é imposta a todos,
constituindo tratamento desumano e inadmissível tortura psicológica.
Neste sentido
foi o belo voto do Ministro Carlos Ayres Brito, proferido nos autos da
supracitada ADPF 54/DF:
(...) Quero dizer: o crime deixa de existir se o deliberado
desfazimento da gestação não é impeditivo da transformação de algo em alguém.
Se o produto da concepção não se traduzir em um ser a meio caminho do humano,
mas, isto sim, em um ser que de alguma forma parou a meio ciclo do humano.
Incontornavelmente empacado ou “sem qualquer possibilidade de sobrevida” (ainda
uma vez, locução tomada de empréstimo à mesmíssima resolução do CFM), por lhe
faltar as características todas da espécie. Uma crisálida que jamais, em
tempo algum, chegará ao estádio de borboleta. O que já importa proclamar
que se a gravidez “é destinada ao nada” -- a figuração é do ministro Sepúlveda
Pertence -, sua voluntária interrupção é penalmente atípica. Já não corresponde
ao fatotipo legal, pois a conduta abortiva sobre a qual desaba a censura legal
pressupõe o intuito de frustrar um destino em perspectiva ou uma vida humana in
fieri. Donde a imperiosidade de um conclusivo raciocínio: se a criminalização
do aborto se dá como política legislativa de proteção à vida de um ser humano
em potencial, faltando essa potencialidade vital aquela vedação penal já não
tem como permanecer. Equivale a dizer: o desfazimento da gravidez anencáfala só
é aborto em linguagem simplesmente coloquial, assim usada como representação
mental de um fato situado no mundo do ser. Não é aborto, contudo, em linguagem
depuradamente jurídica, por não corresponder a um fato alojado no mundo do
dever-ser em que o Direito consiste. (...)
(grifo nosso)
Concluindo,
não restam dúvidas de que o abortamento do feto anencéfalo não é crime, sendo
caso de atipicidade da conduta pela ausência de lesividade ao bem jurídico
tutelado pelo tipo penal aborto.
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|
[1] Advogado, especialista em Direito
Constitucional e Financeiro pela UFPB e especializando em Direito Processual
Penal pela FESMP-RN. E-mail: manuelsabino@uol.com.br.
[2]
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7538>.
[3]
Como visto em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Aspectos_controversos_do_Catolicismo#A_Igreja_e_o_Conhecimento_Cient.C3.ADfico>
[4]
Como visto em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Aspectos_controversos_do_Catolicismo>
[5] Informação interessante dá conta de que as mesmas bulas papais que rejeitaram o aborto
também condenaram a utilização de métodos contraceptivos (como a pílula ou a
camisinha dos dias atuais).
[6]
“Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas
um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente” (Gênesis, 2:7).
[7]
“Porque o sangue é a vida da carne, e esse sangue eu lhes dou para fazer o rito
da expiação sobre o altar, pela vida de vocês; pois é o sangue que faz a
expiação pela vida” (Levítico, 17:11).
[8] “Numa
briga entre homens, se um deles ferir uma mulher grávida, e for causa de aborto
sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar aquilo que o marido dela
exigir, e pagará o que os juízes decidirem. Contudo, se houver dano grave,
então pagará vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé,
queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe”. (êxodo, 21:
22-25)
[9]
Como visto em: <http://www.espiritnet.com.br/Abertura/Ano2001/dilema.htm>
[10]
Disponível em: <http://64.233.179.104/search?q=cache:-yNSSHJXO9YJ:www.diariodenatal.com.br/materia.php%3Fidmat%3D122638%26idsec%3D95+anencefalia+aborto+pesquisa+%25+cat%C3%B3licos+ibope&hl=pt-BR>
[11] Número de ocorrências em busca realizada no www.google.com.br , em 22/12/2005, dos
termos “anencefalia” e “aborto”.
Convém destacar, entretanto, que o referido site, muito embora considerada a
melhor ferramenta de busca à disposição na Internet, alcança uma pequena parte
da Rede Mundial, sendo estimado que existem cerca de cinqüenta vezes mais
páginas do que ele seja capaz de encontrar (VEJA, 2004, p. 69).
[12]
Disponível em: < http://conjur.estadao.com.br/static/text/24423,2>.
[13] Debora Diniz é antropóloga, ganhadora do
prêmio Manuel Velasco Suarez de Bioética (OPS/OMS) e diretora da Feminist
Approaches to Bioethics Network.
[14]
“A nacionalidade primária, ou original, está vinculada ao
nascimento do indivíduo sendo, portanto, involuntária. Este tipo de
nacionalidade está baseado em dois tipos jurídicos: ius solis que consiste
no direito de adquirir a nacionalidade através do simples nascimento em
território pátrio e o ius sanguinis, que consiste no vínculo sangüíneo
com a pátria, ou,ainda, o critério misto”. (VALÉRIO, Marco Aurélio Gumieri. O
direito de nacionalidade no ordenamento jurídico brasileiro e comparado . Jus
Navigandi, Teresina, a. 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2866>. Acesso em: 31 dez.
2004).
[15] “Art.
2o CC - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento
com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
[16]
Art. 212 do Código Penal.
[17]
Vale ressaltar que esta situação é bem diferente da do feto portador de alguma
má formação congênita que implicará em uma possível deficiência. Em primeiro
lugar, porque o deficiente possui a parte do cérebro responsável pela consciência,
sendo que ele apenas não consegue acessar esta habilidade de forma plena. Em
segundo lugar, porque o feto anencéfalo não pode viver fora do útero sem ajuda
mecânica, situação totalmente diversa da do deficiente.
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