quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Um oficial cheio de justiça (Sem Juízo, por Marcelo Semer - 06/10/2011)



Quando o juiz começa sua carreira, em uma pequena comarca do interior, faz um pouco de tudo. Causas cíveis, criminais, da infância, execuções e até família. É uma espécie de clínico geral.

Quando mais ganhamos experiência, galgando os cargos nas cidades maiores, mais o trabalho se concentra, permitindo que possamos nos fixar em uma só matéria.

Mas a vantagem em percorrer todos os campos do direito logo no começo é que tomamos contato com as matérias que mais nos seduzem ou que menos nos traumatizam, para quando for a hora de escolher as varas privativas.

A essa altura, os leitores já intuíram que minha escolha acabou se dando no direito penal. Mas até chegar a essa situação de razoável familiaridade, tive de percorrer outros caminhos nada suaves.

A primeira audiência que fiz na primeira comarca que assumi foi de uma causa cível de parceria agrícola. Suei frio e tentei disfarçar o desconhecimento, até encontrar um velho código comentado, dentro do qual, perdida em uma nota de rodapé com letrinhas menores que um contrato de seguro, se escondia a solução para o meu problema.

O anjo da guarda dos juízes também estava à espreita quando decidi minha primeira e, ao que me recordo única, busca e apreensão de criança.

A princípio, tudo pareceu tão apropriado, que era quase indispensável, como costumam ser as providências drásticas que as partes nos pedem. Quanto mais invasiva, grave e constrangedora a medida, mais ela se aparenta como a única forma de evitar um desastre. Essa é a proporção freqüente das ‘escolhas de sofia’ que se impõem aos juízes cotidianamente. Ninguém passa incólume por elas.

O pedido daquele pai descrevia uma situação tão caótica que a vida de uma criança de sete anos parecia depender exclusivamente do que eu iria decidir nas próximas vinte e quatro horas.

Depois da separação, a mãe, ele dizia, passou a beber. Prendia o filho em casa impedindo que fosse à escola. À noite, ou o deixava sozinho ou o levava para ambientes indevidos. Passara a impor toda a forma de obstáculo às visitas e se afastara do resto da família que passou a temer pelo pior. Mais de uma vez, ameaçara fugir com a criança e nunca mais aparecer.

Para evitar me fiar apenas nas palavras de um possível amante ressentido, ouvi as testemunhas que ele apresentou, duas ou três pessoas que me diziam de forma mais ou menos acentuada, que aquilo tudo não era uma elucubração de ex-marido, nem uma forma fraudulenta de inverter a guarda dos filhos.

Dada a urgência e gravidade do que fora pedido, em especial o alerta de que havia fortes indícios de que ela estava se preparando para deixar a cidade, optei por uma medida que o latim jurídico apelidou de “inaudita altera pars”. Ou seja, sem ouvi-la, para evitar que sabendo do fato, pudesse fugir e inviabilizar todo o pedido.

Só mais tarde fui me dar conta da enorme violência da decisão que tomara. Havia fundado amparo jurídico e seu exemplo era citado em manuais de doutrina e de jurisprudência.

Mas, afinal, o que sabem os manuais?

A ordem passada ao oficial de justiça era dramática, mas ele iria acompanhando o próprio pai e a avó da criança o que aparentemente tornava a situação mais fácil.

Uma ou duas horas depois, no entanto vi o oficial Ricardo voltar com uma cara de assombro, ofegante e em um nível de excitação que me parecia desproporcional. Ele me encontrou no gabinete, após o fim das audiências do dia. Entrou, fechou a porta e se estatelou no sofá antes mesmo que eu o convidasse a sentar. Diante do meu espanto, só teve forças para dizer:

-Quase.

Refazendo-se aos poucos, a história me chegou aos pedaços.

Ricardo fora até a casa da mãe para cumprir a ordem de apreender seu filho. A primeira parte da diligência transcorreu sem qualquer dificuldade. Foi a própria criança que abriu a porta e ao ver o pai e a avó nem se assustou com a presença do corpulento servidor da justiça.

Tudo podia ter parado por aí se a mãe se pusesse a ouvir as razões que o oficial tinha para dizer. Mas quando ela chegou na sala, onde pôde ver de uma só vez, seu ex-marido, sua sogra e um estranho com uma bolsa a tiracolo e um papel timbrado, tudo passou como um raio em sua cabeça.

-Doutor, eu pensei que ela ia gritar, agarrar seu filho ou fazer um escândalo. Estava me preparando para ouvir muito, pensando em tudo que podia dizer para tentar acalmá-la. Mas a reação foi totalmente inesperada.

A mãe não gritou, não agarrou seu filho e não fez o escândalo que a vizinhança, ouriçada pela chegada do ex-marido e do oficial de justiça, já aguardava de prontidão do lado de fora da casa.

Ela esperou que Ricardo começasse a explicar o que estava no papel, que os ânimos se mostrassem serenados e que a pulsação de todos rebaixasse o estado de alerta. Então, sem prévio aviso, deu-lhes as costas. Virou-se calmamente e entrou em um corredor estreito ao lado de sua modesta cozinha. Fechou, quase sem barulho, uma portinhola atrás de si.

Poucos segundos se passaram para que o pai suspirasse de alívio, a sogra começasse a dizer que o interesse da mãe pelo filho era nenhum como se podia notar, e ambos instassem o oficial de justiça a dar logo por cumprida a ordem e saírem daquela residência.

Mas Ricardo teve uma intuição que nos salvou a todos. Negou-se a sair desta forma, quase fugida, sem que tudo estivesse devidamente explicado, nos seus mínimos detalhes. Afinal, ele era um homem da lei. Como a mãe não regressava, resolveu tomar o mesmo caminho e ir atrás dela. Chamou-a pelo nome por duas vezes, a segunda já em voz alta. Até que concluiu que não teria resposta alguma.

-Quando eu ouvi o barulho de um vidro se quebrando, meu coração foi a mil, doutor. Eu não parei, não pensei. Nem sabia ao certo o que estava fazendo. Mas dei um chute naquela porta, doutor, com toda a força que minha perna era capaz. A porta se arrebentou de primeira, e se for preciso, se o senhor mandar, eu mesmo volto lá para reparar o estrago.

Mas o grande estrago ele mesmo já tinha reparado. A mãe estava sentada na bacia, o espelho do armário do banheiro partido em uma dúzia de pedaços. Mas não foram anos de azar. O barulho foi o que fez Ricardo invadir e pegá-la com uma das lascas do vidro forçando contra seu próprio pulso.


-Não, me deixa! –foi a única coisa que o oficial de justiça ouviu dela, antes de puxá-la à força num só golpe para fora do banheiro. Ela bateu o ombro no batente, bateu a nuca na porta, mas quando Ricardo conseguiu controlá-la, abraçando-a com toda a sua força, não tinha mais que um pequeno rasgo no pulso, do qual vazara um filete de sangue.

-Doutor, o senhor é que sabe agora. Foi uma gritaria, choro que não tinha fim. Mas eu peguei todo mundo, pus no meu carro e trouxe aqui doutor. Eles estão aí esperando, depois o senhor me diz o que é que tenho que fazer.

Eu demorei a dizer o que ele tinha que fazer. Eu demorei a dizer o que eles todos tinham de fazer. Para ser sincero, eu demorei a decidir o que eu mesmo devia fazer.

Foram quase duas horas reunidos com aquela família à beira da destruição, até que a adrenalina pudesse baixar e o susto abrisse os olhos de todos.

Apesar de tudo, dos indícios, das testemunhas, dos fatos sobejamente provados, a criança parecia estar muito bem. Não tinha marcas de agressão. Assustada como todos, falava pouco, mas era coerente. Estava com medo, distante e se mostrava muito carente. Se o problema era a mãe, ele queria mais dela e não menos.

O pai, trêmulo, sentiu o peso da responsabilidade e a quase tragédia de ter provocado a morte da mãe na frente de seu filho. Embora não recuasse dos fatos que acusara, evitou usar o episódio como reforço de seus argumentos e se colocou à disposição para ajudar “no que for possível”, dizendo que a questão agora estava nas minhas mãos.

Mas nada foi mais tocante do que o constrangimento da mãe que, ao final, mostrou a todos nós, principalmente a mim, que mesmo no fundo do poço, no quase nada de suas forças, havia uma energia que jamais podia ser desprezada. O amor.

-Doutor, o senhor me desculpe por tudo o que eu fiz. Mas eu não suportei a ideia de perder ele. Deixa eu ficar com ele, doutor, eu prometo que faço tudo certo agora. Doutor, pelo amor de Deus...

Passaram-se alguns minutos de silêncio e outros tantos de reflexão, até que chegássemos a um acordo.

Ela se comprometeu a procurar acompanhamento médico para tratar de sua depressão, como condição para a guarda. E a permitir visitas mais freqüentes do pai, que assumiria novas responsabilidades, como acompanhar o filho nos estudos. A avó, surpreendentemente, manteve-se quieta e não se opôs.

Suponho que o freio de arrumação que aquela diligência representou para a família tenha dado um fôlego e tanto para a situação de todos. Não houve mais reclamações no ano e meio que ainda continuei na cidade.

Da minha parte, talvez tenha aprendido mais do que todos eles juntos, principalmente a manusear a enorme força que tinha nas mãos. Quase, eu viria a repetir por algumas vezes, quando encontrava com meu oficial cheio de justiça.

A comarca, enfim, cumpriu sua função de me apresentar aos mais variados campos do direito para que eu, mais tarde, pudesse optar em julgar casos criminais. Onde as tragédias, pelo menos, já tinham acontecido quando chegavam às minhas mãos. 

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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Conversão do flagrante em prisão preventiva – uma sistematização

Um dos posts mais visitados deste blog é o “Novas regras para a prisão cautelar e a antecipação de seus efeitos”, que aborda as novas regras sobre a prisão após as modificações da Lei nº 12.403/2011.

Tentando sistematizar minha compreensão sobre a conversão do flagrante em prisão preventiva, elaborei uma espécie de checklist, um passo a passo que deve ser seguido, a meu ver, pelo juiz ao receber os autos de prisão em flagrante.

Devido a alguns questionamentos de amigos, decidi fazer esta versão revista e ampliada do post “Sistematização da conversão em preventiva após a Lei 12.403/2011”.


Introdução.

Segundo o pensamento de Jean-Jacques Rousseau em seu Do Contrato Social (1757), nenhum homem possui poder natural sobre o outro. Na natureza, cada homem é portador de mais absoluta liberdade. Mas, em busca de segurança e autopreservação, o homem passou a viver em sociedade.

Em seu Do Espírito das Leis (1748), Montesquieu afirma que, quando os homens passaram a viver em sociedade perderam o sentimento de sua própria fraqueza. Seduzida com a ilusão da força dos números, cada sociedade passou a querer subjugar as outras, o que gerou um estado de guerra entre as nações. Ao mesmo tempo, cada indivíduo, em cada sociedade, começou a achar-se forte e a buscar algum tipo de vantagem de sua sociedade, gerando um estado de guerra entre os membros da agremiação. Essas espécies de guerra geraram a necessidade do estabelecimento de leis entre os homens.

Pelo chamado contrato social (Rousseau), cada indivíduo cede parte de sua liberdade à coletividade em troca de segurança. Quanto mais segurança, menos liberdade. Quanto mais liberdade, menos segurança. De acordo com Noberto Bobbio, “as sociedades são mais livres na medida em que são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres”.

Os bens mais caros a uma determinada sociedade são protegidos através do Direito Penal, que estabelece condutas proibidas e penalidades para quem desobedece estas regras. Para proteger o cidadão dos excessos do Estado, surgiu o Direito Processual Penal.

Para Malatesta (A Lógica das Provas em Matéria Criminal), enquanto o Direito Penal deve ser “a espada infalível para golpear os delinqüentes”, o Direito Processual Penal, “sendo o braço que guia com segurança aquela espada contra o peito dos réus, deve também ser o escudo inviolável da inocência”.

De acordo com o Princípio da Liberdade Individual ou do Estado de Necessidade, todo cidadão tem os direitos de ir, vir e permanecer.

A liberdade é a regra do Estado Democrático de Direito, ensejando que qualquer restrição ou privação deve ser medida excepcional, que só poderá ocorrer quando houver motivo, fundamento e necessidade.

Com a edição da Lei 12.403/2011, o legislador brasileiro ressalta mais uma vez que a prisão cautelar antes do trânsito em julgado da sentença condenatória deve ser uma exceção.

Para Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a preventiva é medida de exceção, devendo ser interpretada restritivamente, para compatibilizá-la com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII da CF), afinal, o estigma do encarceramento cautelar é por demais deletério à figura do infrator”.

Para Júlio Fabbrini Mirabete, “sabido que é um mal a prisão do acusado antes do trânsito em julgado a sentença condenatória, o direito objetivo tem procurado estabelecer institutos e medidas que assegurem o desenvolvimento regular do processo com a presença do imputado sem o sacrifício da custódia, que só deve ocorrer em casos de absoluta necessidade. Tenta-se assim conciliar os interesses sociais, que exigem a aplicação e a execução da pena ao autor do crime, e os do acusado, de não ser preso senão quando considerado culpado por sentença condenatória transitada em julgado”.

A custódia cautelar, que deveria ser a exceção, infelizmente é a regra em nosso país. Para se ter uma ideia, segundo os dados do Ministério da Justiça (Infopen – dados de dezembro de 2010), no Rio Grande do Norte, enquanto temos 1.451 pessoas cumprindo pena no regime fechado. Em contrapartida, temos um total de 3.369 presos provisórios (cerca de 70% do total de pessoas sujeitas às regras do regime fechado).

Em matéria de prisão cautelar, aqui pretendemos nos focar exclusivamente no procedimento que deve ser seguido pelo juiz na hora em que recebe o auto de prisão em flagrante.

São cinco etapas que, ultrapassadas de forma fundamentada pelo julgador, permitem a manutenção do encarceramento cautelar do suspeito, indiciado ou acusado, convertendo-se o flagrante em preventiva.

Vale observar que, falhando em ultrapassar fundamentadamente qualquer das fases, deve o juiz liberar o acautelado, sem a necessidade de analisar as demais.

Etapa 01: Licitude do flagrante.

Esta é a primeira pergunta que o julgador deve responder: o flagrante é lícito?

Diversas são as ilegalidades que podem ocorrer durante a efetivação da prisão. Se os direitos do acautelado não foram a ele informados, se houve invasão domiciliar ou se houve tortura, para ficarmos apenas com estes exemplos, entendemos que estas violações aos direitos humanos pelo Estado desautorizam a manutenção da custódia cautelar.

Mas, no mínimo, o julgador deve atentar para as hipóteses legais em que é admitida a prisão em flagrante. O acusado tem que ter sido preso enquanto o crime era cometido (flagrante próprio), logo após o cometimento do crime e em situação que faça presumir que ele é o autor do fato (flagrante impróprio) ou logo depois a infração ter ocorrido e na posse de objetos que façam crer ser ele o autor do delito (flagrante presumido).

Fora dessas hipóteses, não há flagrante e a prisão é ilegal (mesmo nos casos em que a lei expressamente admite a postergação do flagrante, o fato é que a autoridade policial tem que ter presenciado o autor em alguma daquelas situações, apenas adiando a detenção).

É necessária também a observância do cumprimento das formalidades legais da prisão em flagrante, em especial no que se refere às comunicações obrigatórias (ao juiz, à família e à Defensoria Pública). Não realizadas as comunicações nos prazos legais, o flagrante deve ser relaxado.

Ultrapassada esta etapa, ou seja, sendo lícito o flagrante, não é possível a manutenção da prisão cautelar apenas por isso, é necessário se decidir pela sua conversão ou não em prisão preventiva.

Etapa 02: Admissibilidade da Preventiva.

As regras do Código de Processo Penal que regulam a conversão do flagrante em prisão preventiva estão um tanto desorganizadas. O ideal é que se inicie pela análise dos requisitos que exigem menor cognição, e é assim que preferi sistematizar meu entendimento.

O artigo 312 CPP estabelece as hipóteses em que poderá ser decretada a prisão preventiva, desde que haja prova da materialidade e indícios de autoria. Observe-se que, a análise do conteúdo probatório mínimo é anterior à análise do enquadramento, ou não, nas hipóteses autorizadoras de preventiva. O tema será mais explorado no próximo ponto.

A análise da possibilidade da conversão do flagrante em prisão preventiva à luz do art. 313 do CPP deve ser anterior à verificação do enquadramento nas hipóteses do art. 312 do CPP. É que naquele dispositivo estão relacionadas situações em que, contrario sensu do que está escrito, a prisão preventiva é inadmissível, impossível, inaceitável.

A prisão preventiva, segundo o art. 313 do CPP[1], só é admissível se: (a) a pena máxima cominada abstratamente for superior a 04 anos; (b) o acusado for reincidente em crime doloso com sentença transitada em julgado; ou (c) o crime envolver violência doméstica e familiar.

Convém destacar que a norma visa minimizar um problema recorrente no dia-a-dia do processo penal. Incontáveis vezes, principalmente nos crimes de médio potencial ofensivo, após condenado, o réu primário acabava por ficar submetido a regime de cumprimento da pena menos gravoso que aquele em que ele esteve provisoriamente, quando ainda pairava a dúvida sobre sua culpa.

Saliente-se que a nova norma apenas minimiza o referido paradoxo, não o fazendo desaparecer por completo. É que, mesmo em crimes cuja pena máxima é superior a quatro anos, o mais provável é que a pena final seja fixada próxima ao mínimo, o que implicaria em regime mais brando que o fechado.

Uma observação que deve ser feita é que basta que o acusado seja reincidente em crime doloso, que a pena máxima abstratamente cominada seja superior a 04 anos ou que o crime envolva violência doméstica para que a preventiva seja admissível. Não é necessário o enquadramento em todas as alíneas. Ademais, é uma análise objetiva, que não admite maiores ponderações.

Uma segunda observação é que, se a preventiva é inadmissível, não há que se manter a prisão por qualquer outro motivo. Aqui surge um problema da nova lei, uma situação que vem merecendo, com a devida vênia, uma interpretação equivocada por parte da doutrina.

Trata-se das situações em que não constem nos autos comprovantes da identidade civil do flagranteado. Têm-se entendido que, nestes casos, mesmo que o caso não se enquadre nas hipóteses do caput do art. 313, CPP, o flagrante deve ser convertido em preventiva. A norma estimula a confusão no parágrafo único do próprio art. 313 CPP:

“Art. 313.  (...). Parágrafo único.  Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida”.

Na verdade, a doutrina entendeu corretamente a vontade do legislador. O que quer o CPP é exatamente que o flagranteado só seja libertado se inteiramente identificado nos autos, mesmo que estejamos diante de situação em que a preventiva é inadmissível. Ocorre que a vontade do legislador e a compreensão da doutrina esbarram em algumas barreiras de ordem constitucional e legal.

Inicialmente, a não identificação civil está e sempre esteve contida na hipótese de garantia da aplicação da lei penal (art. 312, CPP). Aliás, este sempre foi o motivo mais comum de negativa da liberdade. Não há sentido em se observar a mesma circunstância em dois momentos distintos. Mas passemos ao largo desta discussão.

Destaco que o dispositivo diz que a prisão preventiva será admitida quando o flagranteado não fornecer elementos suficientes para esclarecer sua identidade civil.

Ocorre que, estando o flagranteado preso, ele não tem como diligenciar para providenciar sua identidade civil. Em consequência da exigência impossível de ser atendida pelo próprio flagranteado, o Estado o pune com mais prisão.

Poder-se-ia dizer que o flagranteado poderia pedir a um familiar para trazer seus documentos a juízo. No entanto, a família do flagranteado não tem esta obrigação, nem pode justificar a manutenção da prisão de uma pessoa a leniência ou inimizade de outra.

Por outro lado, o flagranteado não pode ser punido, segundo entendemos, nem mesmo se ele efetivamente não quiser entregar seus documentos. É que ele não pode ser coagido a contribuir, de nenhuma forma, nem mesmo se identificando corretamente, com a sua punição. Beccaria já alertava para este absurdo:

“Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição!”

Mas, à parte de todos os argumentos acima, o fato é que a correta identificação do suspeito é obrigação do Estado, mas especificamente da Polícia durante o Inquérito Policial.

Neste sentido, diz o CPP (art. 6º, VIII) que, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policia deverá ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes.

Haja vista o que determina a Constituição Federal (art. 5º LVII, CF)[2], deve-se evitar a identificação criminal (fotográfica e datiloscópica) sempre que possível a civil. Assim, deve a autoridade policial diligenciar em busca de cumprir sua obrigação legal. E deve fazer isso assim que tiver conhecimento da infração penal. Trata-se de providência primeira, inicial.

Se a identificação civil se mostrar impossível ou insuficiente para sanar as dúvidas, deve o flagranteado ser encaminhado à identificação criminal, que é regulada pela Lei 12.037/2009. A norma não estabelece prazo para a realização da identificação criminal. No entanto, como o CPP diz se tratar de providência primeira, presume-se que o suspeito deve estar apropriadamente identificado antes do envio do Inquérito Policial ao Poder Judiciário, ou, caso haja justificativa plausível para a não realização da diligência, em prazo razoável.

Se não identificado pela autoridade policial, estamos diante de hipótese de relaxamento de prisão. Assim, como justificar a conversão do flagrante em preventiva? Inadmissível, ilegal, inconstitucional.

Solução interessante foi a encontrada pela magistrada Marlúcia de Araújo Bezerra em decisão publicada no site da Associação de Juízes para a Democracia. A julgadora determinou a soltura do acusado e determinou que a autoridade policial cumprisse sua função e o identificasse corretamente[3].

Por fim, o CPP diz ser inadmissível a decretação da prisão se o juiz verificar que existem provas demonstrando haver o suspeito agido com base em exculpante (art. 314)[4].

Etapa 03: Existência dos Pressupostos da Preventiva.

Para haver a decretação da preventiva, necessária a prova da materialidade delitiva, bem como de indícios críveis da autoria.

Neste sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues são contundentes: “para a decretação da preventiva é fundamental a demonstração de prova da existência do crime, revelando a veemência da materialidade, e indícios suficientes de autoria ou de participação na infração (art. 312, caput, in fine, CPP)”.

Não há sentido em se manter uma prisão cautelar, por exemplo, se o fato é atípico pela aplicação do princípio da insignificância, ou se não houve a apreensão da arma de fogo no crime de porte. Detectadas estas situações incorrigíveis, a preventiva não só não se justifica, como é recomendado o trancamento da ação penal.

Mas o que a parte final do art. 312 deseja é que a prisão preventiva não seja decretada se não existir nos autos conteúdo probatório mínimo que justifica a persecução penal e a medida cautelar. Este conteúdo probatório mínimo nada mais é que a condição da ação penal denominada justa causa. Claro que, no caso de flagrante, aqui estaremos no início da investigação e mais provas poderão ser compiladas. Não sendo corrigida a situação de insuficiência de provas, o certo é que eventual denúncia não deverá ser aceita.

Etapa 04: Enquadramento nas hipóteses da Preventiva.

Ultrapassadas as etapas anteriores, necessário observar se o caso se enquadra nas hipóteses em que a lei recomenda a medida: (a) como garantia da ordem pública ou da ordem econômica; (b) por conveniência da instrução criminal, caso a liberdade do acusado cause concreto obstáculo à elucidação dos fatos; ou (c) para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver dúvida sobre a identidade do acusado ou fundado risco de fuga (Art. 312 do CPP).

Nesta etapa, necessário se ter bastante cuidado para não cair nas armadilhas da construção genérica da norma. Não existe acordo na doutrina ou jurisprudência quanto ao que seria a tal “ordem pública”, por exemplo.

Para Nestor Távora e Rosmar Rodrigues[5], “em havendo risco demonstrado de que o infrator, se solto permanecer, continuará delinquindo, é sinal de que a prisão cautelar se faz necessária, pois não se pode esperar o trânsito em julgado da sentença condenatória”. No entanto, como ressaltado pelos autores, “é necessário que se comprove este risco”.

A simples possibilidade de decretação da preventiva como garantia da ordem pública é criticada. Aury Lopes Jr.[6] salienta, inclusive, a expressão “futurologia perigosista” utilizada em decisão proferida no HC 70006140693, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que foi relacionada à questão. Também Antônio Magalhães Gomes Filho[7] tece críticas a essa hipótese de decretação da prisão preventiva, afirmando que a aferição periculosidade do réu ocorre com base em um “juízo de probabilidade”, bem como que antecedentes criminais e gravidade do delito “mais revelam uma impressão pessoal do magistrado do que uma realidade assentada em fatos concretos”.

Tourinho Filho[8] também rechaça esta modalidade de preventiva, entendendo-a um rematado abuso de autoridade:

“‘Perigosidade do réu’, ‘os espalhafatos da mídia’, ‘reiteradas divulgações no rádio e televisão’, tudo, absolutamente tudo, ajusta-se àquela expressão genérica ‘ordem pública’. E a prisão preventiva, nesses casos, não passa de uma execução sumária. O réu é condenado antes de ser julgado, uma vez que tais situações nada têm de cautelar”.

“Quando se decreta a prisão preventiva como ‘garantia de ordem pública’ o encarceramento provisório não tem o menor caráter cautelar. É um rematado abuso de autoridade e uma indisfarçável ofensa à nossa Lei Magna, mesmo porque a expressão ‘ordem pública’ diz tudo e não diz nada’”.

Também não há sentido na prisão para assegurar a “credibilidade da Justiça”. O argumento, saliente-se, serviria para manter presa toda e qualquer pessoa acusada de crimes, mas suspeita-se que a medida dificilmente serviria para melhorar a imagem do Poder Judiciário. Nestor Távora e Rosmar Rodrigues[9] criticam este tipo de argumento:

“Nem se diga que a liberdade do infrator durante a persecução poderia afetar a imagem da Justiça. Ora, o sentimento popular não pode pautar a atuação judicial com repercussão tão gravosa na vida do agente. A política de ‘boa vizinhança’ com a opinião pública ou com a imprensa não pode levar ao descalabro de colocarmos em tábula rasa as garantias constitucionais, em prol da falaciosa sensação de segurança que o encarceramento imprimiria. A imagem do Judiciário deve ser preservada com a condução justa do processo, não cabendo ao réu suportar este ônus com a sua liberdade”.

O fato é que o enquadramento em qualquer das hipóteses deve ser fundamentada em fatos concretos e é inadmissível que o magistrado utilize esta etapa para manifestar seu repúdio pessoal a qualquer tipo de crime.

Observe-se, ainda, que o CPP (art. 312, parágrafo único)[10] prevê que, em sendo descumprida a medida cautelar, o magistrado poderá decretar a prisão preventiva.

Etapa 05: Insuficiência de Medida Cautelar ou Desnecessidade de Prisão Domiciliar.

Caso o flagrante seja lícito e, na situação concreta, além de ser admitida a preventiva, estejam presentes os seus pressupostos e haja o enquadramento nas hipóteses legais em que a medida é recomendada, a conversão em prisão preventiva é possível.

No entanto, antes de converter a prisão em flagrante em preventiva, o julgador deve verificar se não é suficiente a substituição por uma medida cautelar ou se não é caso de aplicação da prisão domiciliar.

Poderá ser decretada medida cautelar em sua substituição observando-se a: (a) necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; e (b) adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282 do CPP).

Eis as espécies de medidas cautelares:

"Art. 319 do CPP. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica". 

O juiz deverá substituir a preventiva por prisão domiciliar quando o agente for: (a) maior de 80 (oitenta) anos; (b) extremamente debilitado por motivo de doença grave; (c) imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; ou (d) gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco (art. 318 do CPP).

A conversão da prisão em flagrante em preventiva só deve ocorrer se não for aplicável prisão domiciliar ou se não for suficiente a medida cautelar.

Conclusão

Concluímos com Roger de Melo Rodrigues que, em seu A Cultura da Prisão, pontua:


"A eficiência e a celeridade da Justiça criminal não se medem por número de presos, mas sim por adequado número de funcionários, de Juízes, de Promotores, de Delegados e de Defensores Públicos, todos qualificados, fator este que deve ser aliado ao fornecimento pelo Estado de condições satisfatórias para o funcionamento e aprimoramento do aparelho estatal preventivo e repressivo ao crime".

"O criminoso encarcerado, em sistemas penitenciários como o nosso, tende a ocupar-se das mais diversas atividades, exceto da arte de meditar, pois o meio em que se acha lhe propicia tanta dor, humilhação e revolta que seu espírito naturalmente tende a preferir extravasar tais sentimentos por atos de vandalismo, ociosidade ou promiscuidade a dar asas a uma auto-avaliação crítica de sua conduta pretérita, objetivando sua reingresso social."
"Na verdade, a prisão cuida-se de um artifício de origem imemorável, constituindo-se atualmente como um dos diversos meios para punir o criminoso, meio este a ser utilizado de forma restritíssima antes do trânsito em julgado do processo penal, afinal de contas, nossa Constituição Federal adota o princípio da não-culpabilidade, não se olvidando que mesmo após a sentença trânsita em julgado, a prisão deve ser evitada, priorizando-se a aplicação de medidas alternativas".

[1] Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; IV - (revogado). 
[2]  Art. 5º (...) LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;
[3] “O acusado deverá ser apresentado, pela autoridade administrativa responsável pela custódia, ficando esta responsável também pela correta identificação do custodiado, ao Oficial de Justiça encarregado da diligência de cumprimento do alvará de soltura”.
[4] Art. 314.  A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
[5] Curso de Direito Processual Penal, pág. 551.
[6] Direito Processual Penal, p. 204
[7] Presunção de Inocência e Prisão Cautelar, p. 69.
[8] Processo Penal, v III, p. 509/510.
[9] Curso de Direito Processual Penal, pág. 552.
[10] Art. 312.  (...) Parágrafo único.  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).

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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Ceará: Defensores Públicos viram atores para encenar os Direitos da Criança e do Adolescente (DPE/RO em 28/09/2011)






Eles já defendem os direitos das crianças e adolescente em seu dia a dia de trabalho. Agora, os defensores públicos do Ceará sobem ao palco para encenar a peça “Crianças e Adolescentes: chegou a sua vez!”, que destaca os direitos e deveres do público infanto juvenil, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. A primeira apresentação será no próximo dia 30, no teatro do CUCA Barra do Ceará, às 9 horas.


A peça, criada e montada pelos próprios defensores públicos, foi baseada na cartilha "Crianças e Adolescentes - Primeiro! Defensores Públicos pelos direitos da criança e adolescente”, lançada em maio último. A apresentação acontecerá em todo o Estado, em teatros, escolas e instituições públicas. Já estão agendadas mais duas encenações em outubro: dia 3, na sede da Defensoria Pública-Geral, e dia 28, no Teatro José de Alencar.

“O objetivo de encenar o conteúdo da cartilha é levar de uma forma lúdica os ensinamentos sobre os direitos e os deveres da criança e do adolescente, conscientizando a população, sobretudo os pais, sobre a importância da garantia da cidadania deste público”, informa o presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará -Adpec, e um dos atores da peça, Adriano Leitinho, explicando que foi criado o grupo ‘Defensores Públicos em Cena’ exclusivamente para este projeto.

Desrespeito ao ECA

Adriano Leitinho destaca alguns dados de instituições de pesquisa que apontam o não cumprimento dos direitos previstos no ECA. “O Censo do IBGE, de 2010, diz que cerca de 130 mil lares brasileiros são chefiados por crianças e adolescentes, uma prova da existência do trabalho infantil", afirma.

Segundo ele, as evidências de maus tratos estão presentes em outras pesquisas, como a da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), que mostra que cerca de 70% das crianças e adolescentes que dormem na rua foram violentados dentro de casa.

Já o relatório da Fundação Abrinq - Save the Children mostra que 1,8 milhão de crianças e adolescentes, entre 7 e 14 anos, não sabem ler e escrever, e que 51% dos adolescentes de 15 a 17 estão fora do ensino médio.

Um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) revelou que 38% dos adolescentes vivem em situação de pobreza, sendo o grupo etário mais vulnerável ao desemprego e às inúmeras manifestações da violência, principalmente com a integração cada vez maior das drogas em seu cotidiano. Diz ainda que, em 2008, foram registrados mais de 28 mil nascimentos de bebês cujas mães têm entre 10 a 14 anos. A maioria das meninas foi vítima de abuso sexual ou de exploração sexual comercial, o que as leva a abandonar a escola e se afastar do convívio familiar.

Fonte: DPE/RO.

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