domingo, 20 de março de 2011

Sem Juízo, por Marcelo Semer, em 03/03/2011: "... surpresa de Maria José..."

Seus problemas estavam além, muito além do direito penal.

-Amor, tenho uma surpresa para você.

Egídio se arrepiou ao ouvir a voz de sua mulher ao telefone.

Não pelo que ela dizia. Mas a forma como falava. Havia nela uma estranha euforia, que destoava da angústia que a vinha cercando. Mais ainda porque não pôde dissipar nem um pouco que fosse de sua desconfiança. Maria José desligou o telefone logo em seguida, sem que ele tivesse a chance de responder. Ou perguntar.

Ressabiado, Egídio ligou para casa algumas vezes, todas sem sucesso. Sinal de ocupado nos próximos trinta minutos, tempo que levou para voltar à residência e tranquilizar pessoalmente os seus medos. Mas ele não sossegou, porque a resposta à campainha foi exatamente a mesma. Nenhuma.

A porta estava trancada, com o ferrolho que serve de tramela, o que só o faziam de noite, quando todos já estavam reunidos. Suas batidas foram em vão. Os gritos ecoaram no silêncio do corredor. Não ouvia qualquer sinal do outro lado da porta, mesmo pregando nela a orelha e uma mão a seu redor em forma de cone.

Não lhe restando outra alternativa, Egídio chamou a polícia.

Os PMs chegaram em quinze longos minutos, mas não demoraram mais do que dois para arrombar a porta a seu pedido.

Ninguém na sala e o quarto do casal trancado por dentro, o que a essa altura nem era propriamente uma surpresa.

Ao abrir a porta, os policiais se deparam com a cena que, no fundo, Egídiore reproduzira em pensamento desde que desligou o telefone. Maria José está caída ao chão com uma arma em sua mão direita. Sinais de danos no guarda-roupa, um buraco na parede. Uma garrafa de vodka pela metade se equilibra fragilmente na lateral da cama.

Egídio se descontrola e grita, no desespero, sem saber o que fazer ou para onde olhar. Felizmente, os policiais têm mais sangue-frio para situações como essa, que fazem parte de seu tumultuado cotidiano. E os fantasmas mais tenebrosos se vão com o vento: Maria José está apenas desmaiada e não foi nem ferida no que parece ter sido uma tentativa branca de suicídio.

O coração disparado de Egídio aos poucos volta à quase normalidade e o medo da perda se esvai lentamente.

Sufocado o receio do pior, chega a hora do direito penal.

Os dois são levados ao hospital e em sequência à delegacia de polícia. Maria José, recuperada do trauma após ser medicada, é indiciada por posse ilegal de arma de fogo e disparo em local habitado. O bom-senso do delegado impediu ao menos que ela fosse, como os demais nessa situação, presa em flagrante. Mas dispensar o inquérito, ele explica a Egídio, não será possível.

Poucas vezes me deparei com uma mulher tão triste e constrangida, quanto Maria José ao chegar para seu interrogatório no Fórum.

Inapetente para a defesa, não tentou se explicar ou fornecer qualquer tipo de justificativa. De cabeça baixa, com olhos que jamais encontravam os meus, apenas balbuciou:

-Eu não sei, doutor, o que deu em mim. Não sei.

Egídio tampouco entendera. Disse-me que tinha uma arma em casa e que a guardava a sete chaves, inclusive porque Maria José sempre teve medo de mexer nela. Quando o via limpar, ainda que descarregada, se afligia. Mas a arma que Maria José manipula agora é um revólver calibre 38, adquirido sabe-se lá de quem, nas quebradas do bairro onde residem.

Esta era a surpresa que Maria José tinha para ele.

Na ânsia de tomar alguma providência, qualquer que fosse, mas reconhecendo na ré mais o figurino de vítima, fiz questão que ela trouxesse na próxima audiência as receitas de seus medicamentos e comprovasse o acompanhamento médico à depressão. O advogado abriu na frente de todos nós, cada uma das caixas para indicar os remédios já tomados desde a última consulta.

Nesta segunda audiência, o clima era de consternação, mais do que constrangimento.
Os filhos crescidos se mostravam culpados pela contínua ausência. Egídio buscava a explicação na solidão, enquanto todos saíam para trabalhar. Parece que finalmente, depois do choque, a família reconhecia a importância de acompanhar Maria José e não a reduzia ao mau-humor de uma dona de casa estressada.

Ela comprara uma arma de forma ilegal e disparara por três vezes no interior de seu apartamento, em um prédio habitado. Que pena seria justa para tutelar a paz pública, como exige a lei, sem aprofundar sua desgraça íntima?

A acusação se bateu pela condenação, com unhas e dentes.

Ela é um perigo para a sociedade e mais ainda para si mesma, me dizia inflamada a promotora. Deve ser condenada para que tenha noção do erro que cometeu. Se deixar passar em branco, vai se achar no direito de sair por aí comprando armas e disparando onde bem entender. Se você não quer prender, obrigue-a a trabalhos comunitários, ou faça um exame, constate a doença mental e a interne.

Diversamente de tantos outros processos, neste não tive qualquer dúvida. Não fui visitado pela sombra da hesitação nem dei espaço para pensar nas alternativas da promotoria.

Concluí que o susto e a vergonha haviam sido suficientes como punição. Segui o espírito da própria lei, considerando que punir a tentativa de suicídio não é uma política hábil para evitar sua repetição.

Eu a absolvi, enfim.

E os desembargadores que julgaram o apelo da promotoria também.

Seus problemas estavam além, muito além do direito penal.

É dolorido, mas necessário reconhecer em certas situações, a impotência da Justiça.

Eu torci desesperadamente para estar certo e que Maria José conseguisse, por si só, reconstruir os fios esgarçados de sua vida.

Mas a punição para o juiz é jamais saber se isso aconteceu. 

Continue Lendo...

Sem Juízo, por Marcelo Semer, em 04/12/2010: "...o choro e o choro de Kátia..."

Não sei se o choro era de indignação ou de medo. Se era de raiva ou de abandono.

Kátia chegou chorando.

Com as mãos algemadas, tentava em vão esconder o rosto abaixando a cabeça. Mas era impossível não vê-la nem ouvi-la aos berros.

Antes mesmo de entrar na apertada sala de audiências, já chamava a atenção de todos. O choro ininterrupto e incontrolável que vinha de fora, quando ainda conversava com a defensora na beira da sala.

As paredes têm ouvidos, mais ainda com as portas abertas. E para um choro desse tamanho, então, sobram ouvidos para todos os lados.

Vivíamos momentos de tensão, na expectativa de que ela entrasse e na certeza que traria consigo uma emoção que sempre rompe com a sisudez de uma audiência criminal.

Kátia tinha bons motivos para chorar.

Não bastasse o fato de estar presa, quando o processo ainda engatinhava, recebera contra si uma acusação de grande calibre. Quinze quilos de cocaína, armas, dinheiro, embalagens e balanças de precisão para a pesagem do entorpecente. Um estoque de drogas digno de um complexo do alemão. E Kátia, parda, pobre e triste, atônita pela acusação de ser a dona de tudo aquilo.

Ela não tinha dinheiro para contratar um advogado. Não tinha testemunhas a seu favor. Não tinha parentes ou amigos que pedissem ou zelassem por ela. E não tinha, sobretudo, cara de quem fosse responsável por aquela quantidade toda de droga.

Droga, deve ter pensado, enquanto chorava e chorava ao ouvir os policiais narrando as condições em que fora presa. Um adolescente dizia que acabara de comprar droga dela, e os PMs ouvindo a indicação de onde ela encontrara o entorpecente.

Mas não houve quem confirmasse que ela tinha droga em seu poder quando foi presa. Ou que admitira que aquela droga, escondida em um barraco duas quadras adiante, era de fato dela.

As provas foram se fragilizando a vista de todos, mas ela não entendia o suficiente para parar de chorar.

Na segunda audiência, mais choro ao adentrar à sala. Ninguém mais para ser ouvido, o adolescente não foi encontrado, pois forneceu endereço falso. Era só Kátia. Quando chegou a sua vez de falar, ela simplesmente chorou. Chorou e chorou. Um choro tão sincero e comovido que quase lhe serviu de defesa.

Não sei se o choro era de indignação ou de medo. Se era de raiva ou de abandono. Mas enquanto ela chorava e a promotora e a defensora se entreolhavam, duvidando que aquela mulher frágil fosse responsável pela droga apreendida, as peças do quebra-cabeça iam lentamente se formando. Verdade seja dita: não mostravam imagem alguma.

Ao final, ela conseguiu me dizer algumas poucas palavras desconexas que significavam mais do que pareciam: “macaca nóia, você vai segurar tudo, você vai segurar tudo, macaca. E eu estou aqui, doutor. Segurando tudo.”

Segurou tudo, menos o choro, que se rompeu com mais força depois do desabafo.

Quando as fumaças foram lentamente se dissipando, quando todos naquela sala chegavam a conclusão que considerar Kátia a dona da droga era de uma improbabilidade atroz, quando o consenso de que ela dizia algo próximo a verdade foi se criando entre nós, em meio a sussurros e olhares compartilhados, eu encarei Kátia uma vez mais, antes de ditar a sentença.

Fiz com uma ponta de culpa, por três meses de prisão sem sentido.

Fiz com uma ponta de orgulho. Vai saber o que podia acontecer a ela em outro lugar, com outra defensora, outra promotora, outro juiz.

Fiz com a sensação de um dever a ser cumprido. E com a ansiedade de dizer logo a ela que aquela história acabava por aqui.

Eu a absolvi e mandei que ela fosse solta. Nem a acusação discordou.

Mas Kátia não respondeu a meus olhares, nem fez cara de agradecimento. Não sorriu, nem conseguiu dizer palavra alguma. Ao saber que seria solta, saiu da sala chorando compulsivamente da mesma forma como nela tinha entrado.

Passados os dias, eu não me recordo mais da cara, nem da voz de Kátia. Mas não tenho como esquecer o som do seu choro.

Seu choro nos tirou uma pesada cruz das costas. Mas o silêncio que deixou atrás de si era ainda mais incômodo.

Quem é que não teve vontade de chorar depois que ela saiu? 

Continue Lendo...

quarta-feira, 16 de março de 2011

Algumas Decisões - STJ

Abaixo trazemos algumas recentes decisões do STJ (Informativo 465).

ACP. LEGITIMIDADE. CENTRO ACADÊMICO.

Trata-se de REsp em que se discute a legitimidade dos centros acadêmicos universitários, no caso, centro acadêmico de Direito, para propor ação civil pública (ACP) em defesa de interesse dos estudantes do respectivo curso. Inicialmente, ressaltou o Min. Relator que os centros acadêmicos universitários se inserem na categoria de associação civil, pessoa jurídica criada a partir da união de pessoas cujos objetivos comuns de natureza não econômica convergem. Assim, entendeu que o centro acadêmico de Direito, ora recorrente, na condição de associação civil, possui legitimidade para ajuizar ACP na defesa dos interesses dos estudantes do respectivo curso. Consignou que, na hipótese em questão, ao contrário do que foi assentado nas instâncias ordinárias, os direitos postos em juízo, por dizerem respeito a interesses individuais dos estudantes de Direito frente à instituição, são direitos individuais homogêneos, pois derivam de uma origem comum, qual seja, o regulamento da faculdade/universidade e os contratos de adesão celebrados entre a instituição de ensino e cada aluno. Desse modo, mostra-se viável a defesa coletiva de direitos pela referida entidade mediante ACP, mercê do que dispõe o art. 81, parágrafo único, III, do CDC. Registrou, ainda, que tanto o STF quanto o STJ entendem que, em se tratando de substituição processual, como no caso, não é de exigir-se autorização ad hoc dos associados para que a associação, regularmente constituída, ajuíze a ACP cabível. Ademais, na espécie, houve assembleia especificamente convocada para o ajuizamento das ações previstas na Lei n. 9.870/1999, sendo colhidas as respectivas assinaturas dos alunos, circunstância em si suficiente para afastar a ilegitimidade aventada pelo acórdão recorrido. Diante desses fundamentos, entre outros, a Turma deu provimento ao recurso. Precedentes citados do STF: RE 436.047-PR, DJ 13/5/2005; AI 650.404-SP, DJe 13/3/2008; AI 566.805-SP, DJ 19/12/2007; do STJ: AgRg nos EREsp 497.600-RS, DJ 16/4/2007; REsp 991.154-RS, DJe 15/12/2008; REsp 805.277-RS, DJe 8/10/2008; AgRg no Ag 1.153.516-GO, DJe 26/4/2010; REsp 132.906-MG, DJ 25/8/2003; REsp 880.385-SP, DJe 16/9/2008, e REsp 281.434-PR, DJ 29/4/2002. STJ. 4a T. REsp 1.189.273-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 1º/3/2011.
 
INSIGNIFICÂNCIA. VALOR MÁXIMO. AFASTAMENTO.

A Turma afastou o critério adotado pela jurisprudência que considerava o valor de R$ 100,00 como limite para a aplicação do princípio da insignificância e deu provimento ao recurso especial para absolver o réu condenado pela tentativa de furto de duas garrafas de bebida alcoólica (avaliadas em R$ 108,00) em um supermercado. Segundo o Min. Relator, a simples adoção de um critério objetivo para fins de incidência do referido princípio pode levar a conclusões iníquas quando dissociada da análise do contexto fático em que o delito foi praticado – importância do objeto subtraído, condição econômica da vítima, circunstâncias e resultado do crime – e das características pessoais do agente. No caso, ressaltou não ter ocorrido repercussão social ou econômica com a tentativa de subtração, tendo em vista a importância reduzida do bem e a sua devolução à vítima (pessoa jurídica). Precedentes citados: REsp 778.795-RS, DJ 5/6/2006; HC 170.260-SP, DJe 20/9/2010, e HC 153.673-MG, DJe 8/3/2010. STJ. 5a T. REsp 1.218.765-MG, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 1º/3/2011.


MP. CUSTOS LEGIS. CONTRADITÓRIO.


A Turma denegou a ordem de habeas corpus por entender que o MP, quando oferta parecer em segundo grau de jurisdição, atua como custos legis, e não como parte, razão pela qual a ausência de oportunidade à defesa para se manifestar sobre essa opinião não consubstancia violação dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da paridade de armas. Precedentes citados: HC 127.630-SP, DJe 28/9/2009, e RHC 15.738-SP, DJ 28/3/2005. STJ. 5a T.
HC 167.910-MG, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 1º/3/2011.

PRINCÍPIO. INSIGNIFICÂNCIA. ARROMBAMENTO.


Cuida-se de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo: o paciente arrombou as duas portas do veículo da vítima para subtrair apenas algumas moedas. Assim, apesar do valor ínfimo subtraído (R$ 14,20), a vítima sofreu prejuízo de R$ 300,00 decorrente do arrombamento, o que demonstra não ser ínfima a afetação do bem jurídico a ponto de aplicar o princípio da insignificância, quanto mais se considerado o desvalor da conduta, tal qual determina a jurisprudência do STJ. Anote-se não se tratar de furto simples, mas de crime qualificado sujeito a um plus de reprovabilidade por suas peculiaridades. Precedentes citados do STF: HC 84.412-SP, DJ 19/11/2004; do STJ: HC 103.618-SP, DJe 4/8/2008; HC 160.916-SP, DJe 11/10/2010, e HC 164.993-RJ, DJe 14/6/2010. STJ. 6a T. HC 122.347-DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 3/3/2011.

DETRAÇÃO. CÔMPUTO. PERÍODO ANTERIOR.


A Turma reiterou o entendimento de que se admite a detração por prisão ocorrida em outro processo, desde que o crime pelo qual o sentenciado cumpre pena tenha sido praticado anteriormente à prisão cautelar proferida no processo do qual não resultou condenação. Contudo, nega-se a detração do tempo de recolhimento quando o crime é praticado posteriormente à prisão provisória, para que o criminoso não se encoraje a praticar novos delitos, como se tivesse a seu favor um crédito de pena cumprida. Precedentes citados: RHC 61.195-SP, DJ 23/9/1983; do STJ: REsp 878.574-RS, DJ 29/6/2007; REsp 711.054-RS, DJ 14/5/2007, e REsp 687.428-RS, DJ 5/3/2007. STJ. 6a T. HC 155.049-RS, Rel. Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 1º/3/2011.

Continue Lendo...