sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Audiência de Apresentação: do rabisco ao desenho.



Em abril deste ano, representando o Conselho Penitenciário e acompanhado do amigo Fábio Ataíde, grande magistrado e criminólogo, entrei em uma reunião na Secretaria de Cidadania e Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Na mente fervilhavam ideias. No coração carregava a esperança de contribuir para a melhoria de nosso desumano Sistema Penitenciário. Nas mãos, trazia um esboço de projeto para a implantação das audiências de apresentação ou custódia em nosso Estado.

A receptividade do Secretário, o grande mestre Edílson França, foi imediata. Mais que isso: sua empolgação com a ideia era evidente. Embora consciente de que aquela não seria a solução para nosso caótico Sistema Penitenciário, ele me disse com brilho adolescente no olhar: “todo esse esforço vai valer à pena se pelo menos uma injustiça nós evitarmos!”.

A Presidente do Conselho Penitenciário, Cibele Benevides, Procuradora da República, articulou junto com a Sejuc várias reuniões sobre o tema, removendo habilmente cada impasse apresentado. O Conselho, juntamente com a Pastoral Carcerária, a Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Norte e o Conselho Estadual de Direitos Humanos emitiram uma nota técnica conjunta apontando a legalidade e a importância das audiências de apresentação, tese posteriormente confirmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

O Presidente do Tribunal de Justiça, Claudio Santos, abraçou a ideia e, apesar de algumas resistências já esperadas por parte dos que temem mudanças, empenhou sua palavra na concretização do projeto.

Finalmente, hoje, no dia 09 de outubro de 2015, o projeto saiu do papel. Embora designado pela Defensora Pública Geral para atuar na primeira audiência de custódia, logo cedo descobri que o caso selecionado era de um preso que já tinha advogado. Consegui o telefone de familiares e avisei que a audiência se realizaria no Tribunal de Justiça, garantindo a presença do causídico. Soube depois que preso foi solto, embora submetido a medidas cautelares.

Ao invés de ir para a cerimônia, dirigi-me para o novo centro de triagem, onde já haviam três presos que seriam apresentados à tarde. Conversei com os presos, anotei seus dados, preenchi um perfil sócio-econômico, gravei suas declarações em vídeo. Tudo será enviado para os defensores que farão suas defesas. Somente isso já deve ser uma consequência virtuosa das audiências de apresentação: a melhoria da qualidade da defesa técnica.

Já no primeiro atendimento, a primeira emoção do dia. O preso havia tentado furtar um par de chinelas de um supermercado. Vi que era primário e de bons antecedentes, que cometeu o ato por desespero já que desempregado e sozinho no mundo após a morte de sua genitora. Temi que ficasse preso por não portar ou ter como conseguir qualquer documento. O rapaz me olhou com os olhos cheios de lágrimas e inocentemente me perguntou: “então nunca mais serei solto, doutor?”. Argumentei que o preso havia se submetido a identificação criminal e que o STF havia decidido que sequer o morador de rua poderia ficar preso apenas por não ter comprovante de residência. O Ministério Público concordou e o juiz restituiu a liberdade do preso.

Em seguida, foram realizadas mais cinco apresentações. Em nenhum dos casos havia a imputação de crime com violência real ou indício de periculosidade. O Ministério Público opinou pela liberdade em três casos. O magistrado manteve preso apenas um dos apresentados que, embora suspeito de crime de menor lesividade, tinha contra si dois outros mandados de prisão em aberto. Não seria solto de qualquer maneira.

Na última audiência de apresentação, o suspeito de um furto de pequeno valor, aparentemente com problemas mentais, contou que, após sua prisão, foi levado ao ITEP e submetido a exame de lesões corporais, sendo atestada a inexistência de marcas em seu corpo. Após, disse ele ter sido levado a um local onde cobriram sua cabeça com um saco e o submeteram a cerca de 30 minutos de espancamento utilizando barras de ferro e até uma cadeira. O preso levantou a camisa e revelou diversas marcas em seu braço, suas costas e até mesmo nas nádegas. As marcas realmente pareciam consistentes com o relato do preso. Pedi a submissão do preso a novo exame no ITEP, o que foi deferido. O caso será encaminhado ao Ministério Público para investigação. Pedi também sua liberdade, até por temer pela integridade do rapaz após a denúncia, mas foi decretada sua preventiva.

No final do dia, das oito apresentações, apenas duas preventivas (25%). Na minha avaliação, foram evitadas algumas prisões desnecessárias que, suspeito, seriam decretadas. Pessoas que, mesmo se condenadas, acabarão sendo submetidas a penas restritivas de direitos. Em alguns outros casos, poderia até ser concedida a liberdade, mas apenas após alguns meses de prisão. Saldo positivo para o erário e para a Justiça.

Desde seu primeiro dia, portanto, a audiência de apresentação já começa a concretizar seus principais fins: evitar prisões desnecessárias, melhorar a qualidade da defesa técnica e combater a tortura. Um primeiro dia exaustivo, já que acabamos os trabalhos após as dezenove horas. Mas empolgante e gratificante

Manuel Sabino Pontes, Defensor Público e membro do Conselho Penitenciário.

Nenhum comentário: