Crônica de Darcilene Pereira, Defensora Pública da Comarca de Barbacena/MG.
Eu é que quase chorei um rio.
***
Minha cliente era casada há mais de quarenta anos. O marido se envolveu com uma pessoa bem mais jovem e acabou por deixá-la. Depois de uma vida dedicada ao esposo ela se viu só. Não tinha pais vivos, irmãos, filhos. Ninguém. Era extremamente humilde.
Todas as vezes que ia à Defensoria Pública saber sobre o andamento de seu processo levava um largo sorriso no rosto. Gostava de abraçar a gente e abraçava apertado. O marido, por um período, parou de lhe pagar pensão alimentícia, que por sinal era uma ínfima importância. Dita senhora vivia na miséria. Não tinha água em casa, mas achou uma saída: tomava banho na casa de uma vizinha; não tinha luz em casa e passou a assistir TV num bar; não tinha comida... e nós tínhamos a obrigação moral de ajudá-la.
Pestanejei com medo da resposta, mas uma vez perguntei se ela estava passando fome. Com os olhos marejados ela balançou a cabeça – segurando o choro - dizendo ‘tô não, minha filha’, mas era óbvio que estava. Consegui a doação de uma cesta básica para ela, que ficou felicíssima. Mesmo diante de tanta necessidade ela não perdia o sorriso. Relatava sua desgraça como quem contava um caso, apenas. Os cabelos eram indecisos entre o louro e o alaranjado. Precisavam de uma boa camada de tinta, mas isso não importava. As unhas estavam sempre pintadas de um vermelho incandescente. Creio que até o grau dos óculos estava ultrapassado, mas nada importava. Ia me procurar sempre alegre. Nas bochechas, usava duas bolas vermelhas de blush.
Ficamos todos profundamente abalados com o caso. Pedir ao Juiz para prender o marido, por si só, não resolveria a questão. A cesta básica em breve chegaria ao fim. Ela tinha perdido praticamente tudo do nada que possuía. Como esta senhora já era idosa, orientamos no sentido de pleitear junto ao INSS um benefício para garantir o mínimo indispensável para sua sobrevivência. Providenciamos a papelada e ela passou a receber um dinheiro, com o qual pagava as contas de água, luz e comprava comida. Chorou um rio quando soube. Religiosamente ia me ver.
Um belo dia, aproximando-se do Natal, ela retornou. ‘Minha filha, eu trouxe um presente para você e para o seu estagiário’, me disse. Eu, por questões óbvias, não podia aceitar. Além do mais, para nos presentear, ela deve ter tirado água da pedra, literalmente. Só que a insistência era tanta que a idéia inicial de rejeitar não vingou. Sinceramente, não aceitar seria até uma desfeita!
Ela pegou um taxi e foi levar o tal presente no Fórum. Quando o motorista abriu o porta-malas eu e meu estagiário ficamos surpresos. Tudo o que vi, misturado ao intenso calor da tarde, foi uma enorme bacia de plástico com um saco dentro. O cheiro era fortíssimo e havia bastante sangue. Fiz força pra limpar a vista e enxerguei lá dentro um porco, morto, dividido em duas metades, milimetricamente cortado. Uma era pra mim e a outra, para o meu estagiário. Enquanto ela mais uma vez me abraçava forte, disfarcei o meu desespero. O que fazer com metade de um porco em plena tarde, no meu local de trabalho?! A resposta não era tão simples assim. E houve um agravante.
Meu estagiário, muito discretamente, me disse que renunciava sua quota em meu favor; então, de metade de um porco, passei a ter um porco inteiro. Só conseguia lembrar que eu estava em pleno dia de audiências e a qualquer momento seria chamada ( e ainda eram duas horas da tarde)...
Com muito jeito pedi a ela que levasse o porco de volta, porque ele não tinha como ficar ali. Ela, graças a Deus, compreendeu, informando-me seu endereço, onde fui bem mais tarde buscar o meu presente. Não consigo aqui escrever a comoção desta senhora ao me ver em sua humílima casa. E lá estava ela, nas sombras da noite, feliz como sempre.
Eu é que quase chorei um rio.
***
Minha cliente era casada há mais de quarenta anos. O marido se envolveu com uma pessoa bem mais jovem e acabou por deixá-la. Depois de uma vida dedicada ao esposo ela se viu só. Não tinha pais vivos, irmãos, filhos. Ninguém. Era extremamente humilde.
Todas as vezes que ia à Defensoria Pública saber sobre o andamento de seu processo levava um largo sorriso no rosto. Gostava de abraçar a gente e abraçava apertado. O marido, por um período, parou de lhe pagar pensão alimentícia, que por sinal era uma ínfima importância. Dita senhora vivia na miséria. Não tinha água em casa, mas achou uma saída: tomava banho na casa de uma vizinha; não tinha luz em casa e passou a assistir TV num bar; não tinha comida... e nós tínhamos a obrigação moral de ajudá-la.
Pestanejei com medo da resposta, mas uma vez perguntei se ela estava passando fome. Com os olhos marejados ela balançou a cabeça – segurando o choro - dizendo ‘tô não, minha filha’, mas era óbvio que estava. Consegui a doação de uma cesta básica para ela, que ficou felicíssima. Mesmo diante de tanta necessidade ela não perdia o sorriso. Relatava sua desgraça como quem contava um caso, apenas. Os cabelos eram indecisos entre o louro e o alaranjado. Precisavam de uma boa camada de tinta, mas isso não importava. As unhas estavam sempre pintadas de um vermelho incandescente. Creio que até o grau dos óculos estava ultrapassado, mas nada importava. Ia me procurar sempre alegre. Nas bochechas, usava duas bolas vermelhas de blush.
Ficamos todos profundamente abalados com o caso. Pedir ao Juiz para prender o marido, por si só, não resolveria a questão. A cesta básica em breve chegaria ao fim. Ela tinha perdido praticamente tudo do nada que possuía. Como esta senhora já era idosa, orientamos no sentido de pleitear junto ao INSS um benefício para garantir o mínimo indispensável para sua sobrevivência. Providenciamos a papelada e ela passou a receber um dinheiro, com o qual pagava as contas de água, luz e comprava comida. Chorou um rio quando soube. Religiosamente ia me ver.
Um belo dia, aproximando-se do Natal, ela retornou. ‘Minha filha, eu trouxe um presente para você e para o seu estagiário’, me disse. Eu, por questões óbvias, não podia aceitar. Além do mais, para nos presentear, ela deve ter tirado água da pedra, literalmente. Só que a insistência era tanta que a idéia inicial de rejeitar não vingou. Sinceramente, não aceitar seria até uma desfeita!
Ela pegou um taxi e foi levar o tal presente no Fórum. Quando o motorista abriu o porta-malas eu e meu estagiário ficamos surpresos. Tudo o que vi, misturado ao intenso calor da tarde, foi uma enorme bacia de plástico com um saco dentro. O cheiro era fortíssimo e havia bastante sangue. Fiz força pra limpar a vista e enxerguei lá dentro um porco, morto, dividido em duas metades, milimetricamente cortado. Uma era pra mim e a outra, para o meu estagiário. Enquanto ela mais uma vez me abraçava forte, disfarcei o meu desespero. O que fazer com metade de um porco em plena tarde, no meu local de trabalho?! A resposta não era tão simples assim. E houve um agravante.
Meu estagiário, muito discretamente, me disse que renunciava sua quota em meu favor; então, de metade de um porco, passei a ter um porco inteiro. Só conseguia lembrar que eu estava em pleno dia de audiências e a qualquer momento seria chamada ( e ainda eram duas horas da tarde)...
Com muito jeito pedi a ela que levasse o porco de volta, porque ele não tinha como ficar ali. Ela, graças a Deus, compreendeu, informando-me seu endereço, onde fui bem mais tarde buscar o meu presente. Não consigo aqui escrever a comoção desta senhora ao me ver em sua humílima casa. E lá estava ela, nas sombras da noite, feliz como sempre.
Fonte: Barbabena On Line
Nenhum comentário:
Postar um comentário