quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ad referendum em 18/10/2010: "CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA: Imperativo Ético do Estado Democrático de Direito-1"

MARCELO MALIZIA CABRAL
Juiz de Direito/TJRS

RESUMO

Concretização do direito humano de acesso à justiça. Esse é o tema central do estudo. Constitui preocupação de todos os povos, em todos os tempos.

Inicialmente, tratado apenas no plano formal, como a possibilidade universal de acesso à justiça. Após, com a consagração do princípio da igualdade material, o tema passou a ser investigado sob o prisma da possibilidade concreta de as populações terem acesso à justiça. Insere-se o acesso à justiça no rol dos direitos humanos prestacionais. Examina-se e define-se seu conteúdo de modo bem mais abrangente que o simples acesso à jurisdição formal, integrando-lhe, também, mecanismos consensuais de resolução de conflitos, tais como a conciliação, a mediação e a arbitragem. Em decorrência de sua caracterização como direito social, defende-se a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas de parte do Estado e da sociedade, à garantia do acesso material da humanidade a mecanismos de pacificação social. Examinam-se os obstáculos à sua realização – de ordem econômica, cultural, social e legal – e, por fim, apresentam-se propostas de ações para a concretização do direito humano de acesso à justiça. Apregoa-se, então, a valorização das ferramentas consensuais de resolução de conflitos, com a utilização dos recursos humanos e materiais existentes nas comunidades, reservando-se a jurisdição formal como instrumento subsidiário e complementar à realização da justiça.

Palavras-Chave
Acesso à justiça; direitos humanos; políticas públicas; conciliação; mediação; arbitragem. INTRODUÇÃO

O acesso à justiça constitui um dos temas que maior atenção tem despertado nas sociedades contemporâneas.
 
A evolução dos povos tem apontado para um gradativo crescimento das atribuições dos poderes estatais.
 
A insegurança e a incompreensão ocasionadas por uma produção legislativa sem precedentes, aliadas a uma exigência crescente de ações negativas e positivas do Poder Executivo no respeito às liberdades públicas e na concretização de um extenso rol de direitos sociais, culturais e econômicos, têm provocado um crescimento vertiginoso da demanda do Poder Judiciário.
 
Sobre esta hipertrofia do Poder Judiciário, com peculiar clareza manifestou-se o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mário da Silva Velloso:
 
Eu ouvi, e já mencionei isto por mais de uma vez, de um magistrado carioca radicado em São Paulo, o eminente juiz Américo Lacombe, no seu discurso de posse na Presidência do Tribunal Federal da 3ª Região, afirmativa que achei muito interessante. Disse ele que, se os séculos XVIII, este a partir da segunda metade, e XIX, foram os séculos do Poder Legislativo e, se o século XX tem sido o século do Poder Executivo, o século XXI haverá de ser o século do Poder Judiciário. [...] Vejam os Senhores porque eu penso que isso vai acontecer. As reformas constitucionais que se fazem contemporaneamente, conferem à cidadania um novo sentido. As novas Constituições querem o exercício consciente da cidadania, que se traduz na obrigação de o cidadão fiscalizar, cada vez mais, o Poder. O cidadão é o grande fiscal do Poder, mesmo porque o Poder existe em razão dele e para satisfazer as suas necessidades. Acontece que essa fiscalização se exerce mediante a ação do Poder Judiciário, vale dizer, mediante medidas judiciais. As reformas constitucionais que se fazem contemporaneamente visam a viabilizar esse desiderato.(1)

Além dessa novel participação popular na coordenação e na fiscalização dos atos do Estado, esse tem prometido efetivar uma série de direitos à consagração da cidadania, confiando-se a garantia de sua concretização, também, ao Judiciário.
 
É a emergência mundial do Estado social, o welfare state, a expandir os poderes e as competências dos órgãos legislativo e executivo, reclamando o pronto controle judiciário da atividade do Estado.(2)
 
Ao lado das exigências decorrentes do crescimento da atividade do Estado, o mundo contemporâneo inaugurou a massificação da economia, dos negócios, da informação e, conseqüentemente, das relações sociais.
 
Com esse fenômeno, como adverte Cappelletti, “sempre mais freqüentemente, até uma só ação humana pode ser prejudicial a vastos grupos ou categorias de pessoas, com a conseqüência de mostrar-se totalmente inadequado o esquema tradicional do processo judiciário, como litígio entre duas partes.”(3)
 
Demonstração do crescimento da procura da sociedade pelo Poder Judiciário consta de criterioso estudo coordenado por Maria Tereza Sadek (4), dando conta do aumento da dedução de pretensões perante a justiça brasileira no período de 1990 a 1998, na ordem de 106,44%, enquanto a população, no mesmo período, aumentou em apenas 11,33%.
 
Esse extraordinário crescimento da procura dos povos pelo Judiciário, verificado no Brasil e em todo o mundo, neste último século, levou os atores da cena judiciária à perplexidade, ocasionando, igualmente, um importante congestionamento desse poder estatal. Despertou, assim, a sociedade, para a necessidade de se criarem mecanismos ao acolhimento e ao pronto processamento dessa demanda.
 
Identifica-se, então, uma das faces do tema acesso à justiça, aquela concernente à eficiência da prestação do serviço ofertado à sociedade pelo Judiciário, qual seja, a solução dos litígios que lhe são apresentados individual ou coletivamente, em tempo razoável, com qualidade e eficiência.
 
A incapacidade do Judiciário brasileiro em administrar esse crescimento da procura por seus serviços tem levado a sociedade ao descrédito e à insatisfação, especialmente em razão da necessidade de longa espera entre o ajuizamento dos pedidos e seu julgamento.(5)
 
Realizar-se-á, deste modo, ainda que brevemente, um mapeamento dos fatores que ocasionam a morosidade do Judiciário, em especial diante do incremento de sua demanda, apontando-se algumas medidas para reduzir o tempo de tramitação dos processos, acenando-se, assim, para a possibilidade da oferta de uma solução mais célere aos litígios, o que resultaria no aumento da eficiência do Poder Judiciário e na conseqüente qualificação do acesso à justiça.
 
Importa ressaltar, nessas palavras iniciais, que o crescimento da procura pelo Judiciário em proporção superior ao aumento populacional, verificado nas últimas décadas, não significa a ampliação do acesso à justiça ou, ainda, que a sociedade tenha alcance materialmente igual a esse serviço público.
 
Interessante apresentar, nesse ponto, outro elemento investigado por Sadek, que demonstra ser o crescimento da procura pelo Judiciário reflexo da desigualdade da sociedade brasileira quanto à acessibilidade a bens e serviços:
 
Os IDHs no decorrer do período revelam que o país experimentou alguma melhoria entre 1990 e 1998, no que se refere à esperança de vida, à educação e à renda. O índice apresentou um crescimento de 0,7804 em 1990 para 0,8345 em 1998. A evolução positiva foi constante, não se verificando em nenhum ano sequer a estagnação, quer pioras em relação ao ano anterior. No que se refere aos efeitos do IDH na procura pelo Judiciário, é possível afirmar que melhoras nesse índice possuem correlação positiva com o aumento no número de processos entrados na Justiça (correlação de Spearman de 0,7333). Isto é, aumentos nos níveis de escolaridade, de renda e na longevidade contribuem para o crescimento na demanda por serviços judiciais. No que se refere às regiões, o IDH permite-nos afirmar que o Nordeste e o Norte reúnem os mais baixos indicadores socioeconômicos do país,durante todo o período. Em contraste, o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste apresentam as melhores condições no que diz respeito às dimensões captadas pelo IDH. É notável como quanto mais alto é o IDH,melhor é a relação entre processos entrados e população. Ou seja, é acentuadamente maior a utilização do Judiciário nas regiões que apresentam índices mais altos de desenvolvimento humano.(6)

O que se constata, assim, é que as populações que estão demandando cada vez mais o Judiciário são aquelas situadas em posições privilegiadas do extrato social, quedando-se a esmagadora maioria da sociedade brasileira ao longe da possibilidade de resolver seus conflitos individuais ou coletivos por intermédio dos mecanismos de pacificação social disponíveis ao grupo social, dentre os quais, o Poder Judiciário.
 
Justamente nesse sentido apontou a conclusão da investigação científica há pouco apresentada(7), advertindo-se, ao fim, para o risco ocasionado à manutenção do Estado de Direito pela não-asseguração do efetivo acesso à justiça a expressivo número de brasileiros:
 
O que poucos ousam sustentar, completando a primeira afirmação, é que, muitas vezes, é necessário que se qualifique de que acesso se fala. Pois a excessiva facilidade para um certo tipo de litigante ou o estímulo à litigiosidade podem transformar a Justiça em uma Justiça não apenas seletiva, mas sobretudo inchada. Isto é, repleta de demandas que pouco têm a ver com a garantia de direitos – esta sim uma condição indispensável ao Estado Democrático de Direito e às liberdades individuais. Desse ponto de vista, qualquer proposta de reforma do Judiciário deve levar em conta que temos hoje uma Justiça muito receptiva a um certo tipo de demandas, mas pouco atenta aos pleitos da cidadania.(8)

Esta situação decorre do contentamento das sociedades, durante séculos, com a simples igualdade formal da população relativamente ao acesso à justiça.
 
Não havia a preocupação com a repercussão das desigualdades sociais no acesso a direitos, realidade modificada no último século, quando os povos passaram a proclamar a necessidade de se garantir a igualdade material da população no acesso aos direitos de que são titulares.
Inaugura-se, então, a valorização do princípio da igualdade material, fazendo surgir a necessidade de políticas públicas e de ações afirmativas a que as comunidades hipossuficientes tenham, materialmente, acesso aos direitos consagrados pela ordem jurídica, dentre os quais, à justiça.
 
Então, o acesso à justiça passa a ser encarado como direito humano prestacional, e sua concretização assume posição de desafio às sociedades contemporâneas, fazendo com que se examinem os obstáculos à sua oferta igualitária e universal. Catalogam-se, assim, as circunstâncias limitadoras do acesso à justiça, classificando-as como de ordem econômica, cultural, social e legal.
 
Desvendam-se, igualmente, as diversas formas de realização de justiça, que ultrapassam em muito a concepção de prestação formal de jurisdição, apresentando-se ferramentas informais, rápidas e de baixo custo para a pacificação de conflitos, dentre as quais a conciliação, a mediação e a arbitragem. Registra-se, ainda, nesse ponto, a importância do envolvimento da comunidade nas atividades de pacificação social.
 
Realizado esse diagnóstico e definidos o conteúdo e a extensão do direito humano de acesso à justiça, apresenta-se uma série de ações tendentes à superação desta realidade de limitação do acesso à justiça, para se garantir a utilização rápida e desburocratizada a toda a população das mais diversas formas de solução de conflitos e de pacificação social. Somente dessa forma se estará promovendo a cidadania e a dignidade da pessoa humana, princípios da República Federativa do Brasil.
 
Com a concretização do direito humano de acesso à justiça, também se alcançará a redução das desigualdades sociais, a promoção do bem de todos, a construção de uma sociedade livre e justa, bem como o desenvolvimento nacional, objetivos fundamentais da República, consoante proclamam os artigos 1.º e 3.º da Constituição Federal.

1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ACESSO À JUSTIÇA

1.1 A preocupação com o acesso à justiça no mundo
 
O prestígio ao valor justiça e a busca pela garantia de sua concretização acompanham a evolução do homem. Desde os primórdios, a humanidade consagrou a justiça como valor necessário à dignidade e ao desenvolvimento dos povos.
 
Multiplicam-se as teorias para sua conceituação, cuidando-se de tema investigado pelas mais diversas ciências, desde a Antropologia e a Filosofia, passando pela Sociologia, até chegar ao Direito.
 
Sempre, todavia, há um concertamento intuitivo de que as pessoas devem lutar incessantemente para a materialização da justiça, variando seu conteúdo e extensão de acordo com fatores econômicos, religiosos, sociais e culturais de cada época.
 
Uma das reflexões mais completas sobre o tema foi desenvolvida por Chaïm Perelman, que teve a oportunidade de discutir as concepções abstrata e concreta de justiça:
 
A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. Desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás, até os juristas, moralistas e filósofos contemporâneos, todos estão de acordo sobre este ponto. A idéia de justiça consiste numa certa aplicação da idéia de igualdade. [...] É ilusório querer enumerar todos os sentidos possíveis da noção de justiça. Vamos dar, porém, alguns exemplos deles, que constituem concepções mais correntes da justiça, cujo caráter inconciliável veremos imediatamente: 1 - A cada qual a mesma coisa. – 2- A cada qual segundo seus méritos. 3– A cada qual segundo suas obras. 4-A cada qual segundo suas necessidades. 5 – A cada qual segundo suas posições. 6- A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.(9)

A regulamentação da busca pela realização do valor justiça encontra os primeiros registros no Código de Hamurabi, onde se previa a proteção às viúvas, aos órfãos e aos oprimidos:
 
Em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão. Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar nas minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz e possa ele compreender o seu caso.(10)
 
Igualmente, em Atenas, eram nomeados dez advogados anualmente para atender aos pobres, havendo o Digesto, em Roma, determinando a oferta de advogado, de ofício, pelo juízo, às mulheres, aos pupilos, aos débeis e àqueles que não conseguissem tal patrocínio em razão do poder de seu adversário.(11)
 
No período medieval, o cristianismo, com forte influência, conduziu ao predomínio de concepções religiosas sobre o direito, tempo em que os ordálios, ou juízos de Deus, constituíam fonte primária de julgamentos, quando as partes participavam diretamente dos atos, sendo esta a concepção de acesso à justiça então vigente. Foi nesse período, também, que surgiu o direito canônico.
 
A partir do século XIV inicia-se o processo de questionamento do poder da igreja e dos reis, assim como a busca de determinados direitos em face dos ilimitados poderes exercidos por esses.
 
Principia, assim, a luta por afirmação e igualdade que redundou na consagração dos direitos do homem, quando também se proclamou a necessidade de o Estado garantir o acesso universal à justiça.

Contudo, foram a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia (EEUU), de 12 de junho de 1776, o primeiro diploma escrito de direitos do homem na história da civilização, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, crismada pelo prestígio universalizante da Revolução Francesa, que cristalizaram o princípio de Direto Natural de que todos são iguais perante a lei, fundamento daassistência jurídica pública, concebida como dever do Estado.(12)

Coube à França, todavia, editar, em 22 de janeiro de 1851, “o Code de L’Assistence Judiciaire, diploma que legou ao instituto a denominação originária de assistência judiciária, substituída, hodiernamente, pelo predicamento de assistência jurídica, termo mais abrangente e apropriado [...].”(13)
 
A partir de então, até o século XX, os mais diversos Estados, por todo o continente, passaram a reconhecer, de alguma forma, a direito universal de acesso à justiça.
Deste modo, na Espanha, La justicia será gratuita cuando asi lo disponga la ley e, em todo caso, respecto de quienes acrediten insuficiência de recursos para litigar (Constituição Espanhola de 31.10.1978, art. 119); nos Estados Unidos da América, Los Angeles abriga a mais antiga Defensoria Pública do país, instalada em 1914; a Constituição do Uruguai, de 24 de agosto de 1966, dispõe que La justicia será gratuita para los declarados pobres com arreglo a la ley (art. 254); no continente africano, a Constituição de Cabo Verde, de 1981, estatui que todo o cidadão 'tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a Justiça ser negada por insuficiência de meios econômicos.' (14)

É no período contemporâneo, destarte, que cresce em importância a questão do acesso à justiça, havendo, assim, a preocupação com a garantia de igualdade material e não apenas formal, buscando-se a possibilidade de real acesso da população aos mecanismos de pacificação de conflitos.
 
Em outras palavras, pode-se afirmar que foi no século XX que se inaugurou, verdadeiramente, o movimento de acesso à justiça.
 
Com efeito,

As reivindicações do movimento marxista, especialmente no campo trabalhista, serviram de marco histórico em muitos países para a discussão do significado do acesso à justiça, enquanto proteção ao trabalhador. Podemos afirmar que o Direito do Trabalho foi o ponto de partida do verdadeiro acesso à justiça – o seu significado, no que se refere aos direitos individuais, pela facilidade do acesso, pela prevalência da mediação e da conciliação, pela índole protetiva, em especial no que diz respeito ao ônus da prova, do trabalhador, e mais do que isso, a visão coletiva da massa trabalhadora. A necessidade dessa intervenção do Estado no decorrer do período liberal para assegurar direitos, principalmente no campo social, que o livre jogo do mercado não permitia, caracteriza uma nova fase, a histórica dos Estados desenvolvidos. Estamos no Estado social, o Estado intervém visando a assegurar não mais aquela igualdade puramente formal, utópica, concebida pelo Liberalismo, mas a procura de uma igualdade material, permitindo que os mais desfavorecidos tivessem acesso à escola, à cultura, à saúde, à participação, àquilo que já se sustentava no passado, à felicidade. A nova ordem resgata a dimensão social do Estado, com mais intensidade no que concerne à ordem jurídica. O Estado Administrador assume feição cada vez mais intensa, notadamente protetiva. [...] Em curto espaço de tempo, o Judiciário converte-se, realmente, em instância de solução de conflitos de toda a espécie. Passa a haver uma demanda muito grande por justiça. [...] Cresce de importância, portanto, neste momento, a concepção do real significado de acesso à justiça. É preciso que ela sirva, e bem, a todos, desde os mais carentes aos mais privilegiados, desde o indivíduo isoladamente considerado até o grupo, a coletividade, globalmente considerada. Surge, assim, primeiramente nos países desenvolvidos, a partir das reivindicações sociais de que se vem a falar, a demanda por formas céleres e efetivas de justiça para a população em geral.(15)

A roborar a ocorrência dessa explosão contemporânea da preocupação com o acesso à justiça, após acentuar cuidar-se de tema que ocupa de há muito as civilizações, Boaventura de Sousa Santos explicita haver a questão angariado destaque nas discussões sociais a partir do pós-guerra:
 
Por um lado, a consagração constitucional dos novos direitos econômicos e sociais e sua expansão paralela à do Estado de bem-estar transformou o direito ao acesso efetivo à justiça num direito charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de todos os demais. Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos direitos sociais e econômicos passariam a meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Daí a constatação de que a organização da justiça civil e em particular a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo investigar-se as funções sociais por elas desempenhadas e em particular o modo como as opções técnicas no seu seio veiculavam ações a favor ou contra interesses socais divergentes ou mesmo antagônicos (interesses de patrões ou de empregados, de senhorios ou de inquilinos, de rendeiros ou de proprietários fundiários, de consumidores ou de produtores, de homens ou de mulheres, de pais ou de filhos, de camponeses ou de citadinos, etc.).(16)

Aliás, esse desafio contemporâneo de se materializar o acesso à justiça, fazendo-o universal, exige a identificação dos fatores que empurram uma considerável parcela da sociedade para a margem dos mecanismos de pacificação social, assim como o estabelecimento de estratégias para a sua superação, desafio que permanece entre os povos até a atualidade e que constitui, exatamente, o objeto desse estudo.


Notas do Autor:
1 JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 14-15.
2 “Daí o fato de que o âmbito do processo cresceu bem além dos limites tradicionais da lide essencialmente ‘privada’, envolvendo esta apenas sujeitos privados; estendendo-se muito seguidamente a lides comprometedoras dos poderes políticos do Estado. Justiça administrativa e Justiça constitucional tornaram-se, assim, componentes sempre mais importantes do fenômeno jurisdicional, freqüentemente confiadas a novas e altamente ‘criativas’ cortes administrativas e constitucionais” (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Traduzido por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 21-22).
3 Ibidem, p. 23.
4 SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 15.
5 “Para que se tenha uma idéia, em pesquisa recentemente realizada pela CNT em conjunto com a Vox Populi, 89% das pessoas entrevistadas consideram a justiça demorada, lenta, enquanto 67% acham que ela só favorece os ricos, e 50% não confiam nela.” (Pesquisa publicada no jornal O Globo, de 07 de abril de 1999, 2. ed., p. 5, apud CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 80).
6 SADEK, Maria Tereza (Org.), op. cit., p. 20-21.
7 “O volume de processos entrados e julgados é o primeiro traço que deve ser destacado. Como interpretar esses números? [...] Desta forma, a explicação deve ser buscada em outra parte. Ou seja, talvez
tenhamos que recolocar o problema salientando que, mais do que a democratização no acesso ao Judiciário, defrontamo-nos com uma situação paradoxal: a simultaneidade da existência de demandas demais e de demandas de menos; ou, dizendo-o de outra forma, poucos procurando muito e muitos procurando pouco. Assim, o extraordinário número de processos pode estar concentrado em uma fatia específica da população, enquanto a maior parte desconhece por completo a existência do Judiciário, a não ser quando é compelida a usá-lo, como acontece em questões criminais.” (Ibidem, p. 40).
8 Ibidem, p. 41.
9 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1 e 9.
10 LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 31-32.
11 “Deverá dar advogado aos que o peçam, ordinariamente às mulheres, ou aos pupilos, ou aos que de outra maneira débeis, ou aos que estejam em juízo, se alguém os pedir; e ainda que não haja nenhum que os peça, deverá dá-lo de ofício. Mas se alguém disser que, pelo grande poder de seu adversário, não encontrou advogado, igualmente providenciará para que lhe dê advogado. Demais, não convém que ninguém seja oprimido pelo poder de seu adversário, pois também redunda em desprestígio do que governa uma província, que alguém se conduza com tanta insolência que todos temam tomar a seu cargo
advogado contra ele.” (ZANON, Artemio. Da Assistência Jurídica Integral e Gratuita. São Paulo: Saraiva,
1990, p. 8-9).
12 JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 336.
13 Ibidem, p. 336.
14 Ibidem, p. 337-344.
15 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 20-27.
16 SANTOS, Boaventura de Sousa. O acesso à justiça. In JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 405-406.


Extraído da Coletânea de trabalhos de conclusão de curso apresentados ao Programa de Capacitação em Poder Judiciário - FGV Direito Rio. – Porto Alegre : Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2009. Coletânea de Administração Judiciária, v. 5 

Fonte: ad referendum.

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