sábado, 16 de outubro de 2010

Conjur em 16/10/2010: "Código Penal não pode invadir a esfera da moralidade"

Artigo de Renato Marcão, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico, professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós). É também autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva, 2004), e, Curso de Execução Penal (Saraiva, 2004).

A prostituição, como é voz corrente, talvez seja a mais antiga das profissões.[1]

Prestar favores sexuais; mercadejar o corpo e distribuir os prazeres da carne pode constituir opção para alguns e destino para outros.

Manter estabelecimento em que ocorra exploração sexual, conforme a lei penal vigente, constitui crime que está previsto no artigo 229 do Código Penal, grafado nos seguintes termos: “Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena — reclusão, de dois a cinco anos, e multa.   

Antes da vigência da Lei 12.015/2009, o artigo 229 se referia de forma expressa à conduta consistente em “manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso (...)”, havendo perfeita correlação com o nomem juris emprestado à tipificação em testilha pelo Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal).

Hoje, mesmo se referindo o dispositivo a “estabelecimento em que ocorra exploração sexual”, quer nos parecer que a denominação jurídica do tipo, que persiste, não exigia mesmo ser alterada.

Muito embora o legislador tenha optado por uma linguagem mais atualizada para compor o preceito primário, em verdade e em última análise está a se referir, ainda, aos locais em que exercitada a prostituição ou outra forma de exploração sexual, daí não ser de todo desajustada a manutenção do nomem juris — casa de prostituição —, como designativo do tipo, pois assim se revelam os “estabelecimentos” que à prática proscrita se destinam/dedicam.

A prostituição, a seu turno, acompanha a história da humanidade e é citada até mesmo em passagens bíblicas, como dão mostras, por exemplo, escritos do Novo Testamento a respeito de Maria Madalena, sobre “Sodoma e Gomorra” etc.

Não se trata de, ao contrário do que disse Nelson Hungria,[2] até certo ponto, constituir um mal necessário, por revelar uma função preventiva na entrosagem da máquina social.

Vencido o tempo das reflexões lançadas pelo admirável penalista, já não podemos concordar com suas afirmações no sentido de que — “sem querer fazer-lhe elogio” —, ressalvava cautelosamente, constitui a prostituição “uma válvula de escapamento à pressão de irrecusável instinto, que jamais se apaziguou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação antes mesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais”.[3]

O modelo social dos dias que correm não mais se ajusta ao pensamento exposto, que em verdade buscava salvaguardar a família e a sociedade dos malefícios que a ausência de opção para os reclamos que a satisfação da libido exige, por vezes arriscam e até insistem em proporcionar.

Os sistemas parciais[4] que integram a sociedade contemporânea prescindem de tais favores para seu fortalecimento.

A realidade atual tornou superada a visão poética e por vezes romântica que enxergava nos prostíbulos o primeiro acesso para a prática da masculinidade sexual; para a iniciação da virilidade explícita melhor protagonizada por célebres e prometidas mercadoras do amor.

As sessões de iniciação tantas vezes patrocinadas por algum familiar próximo, que com alguma satisfação se dispunha a levar o jovem de escassa penugem para o congresso carnal com prostitutas experimentadas já não encontra correspondência no presente. Tais entrevistas de amor, que de amor nada tinham, se tornaram estampa fora de moda para o tecido social hodierno.

Onde remanescem, as denominadas “zona de meretrício” se tornaram opção de abrigo para criminosos e ponto de freqüência para alguns poucos, não mais desfrutando das conotações e do colorido de que no passado se impregnara.

Mas a prostituição, livre pelas ruas ou confinada em estabelecimentos luxuosos, jamais deixou de existir. Ao contrário, aproveitando-se do desejo atávico de desafogo da sexualidade, se expande como “negócio lucrativo” e se moderniza com oferta qualificada de “peças e serviços”, como se faz explícito em todos os meios de informação.

Ignorada, tolerada, regulamentada ou proibida, também disse Nelson Hungria,[5] a prostituição “sempre existiu e há de existir sempre”.

Conformemo-nos.

Em si considerada, contudo, a prostituição não configura ilícito penal. E nem poderia, por recair tal conduta dentro de limites amparados pelo livre arbítrio.

Não bastasse a real impossibilidade de se punir criminalmente a livre disposição dos impulsos sexuais na forma acima preconizada; de se tentar frear no campo penal a assegurada possibilidade de se distribuir favores sexuais a quem desejar e na forma que se pretender, mediante consenso, há ainda que se ressaltar a inviabilidade de se pretender a moralização do homem pela via coercitiva do jus puniendi.

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli proferem valiosa lição a respeito quando asseveram: “Sob nenhum ponto de vista a moral em sentido estrito pode ser considerada um bem jurídico. A ‘moral pública’ é um sentimento de pudor, que se supõe ter o direito de tê-la, e que é bom que a população a tenha, mas se alguém carece de tal sentimento, não se pode obrigar a que o tenha, nem que se comporte como se o tivesse, na medida em que não lesionem o sentimento daqueles que o têm”.[6]

Tratando da racionalidade ética na legislação penal, José Luis Díez Ripollés traz importante lição, que seguramente comporta destaque neste ponto das reflexões atuais, e o faz nos seguintes termos: “A identificação daquilo cuja danosidade social afeta de modo grave os pressupostos imprescindíveis à convivência externa precisa de um ponto de referência. Essa referência é obtida através da remição ao interesse público. Com isso se quer dizer que os comportamentos ante os quais deve intervir o Direito Penal devem afetar as necessidades do sistema social em seu conjunto”.[7]

Segundo o escólio de Claus Roxin,[8] “o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas de bens jurídicos”. E segue: “A moral, ainda que amiúde se suponha o contrário, não é nenhum bem jurídico — no sentido em que temos precisado tal conceito, deduzindo-o do fim do direito penal. Se uma acção não afecta o âmbito de liberdade de ninguém, nem tão-pouco pode escandalizar directamente os sentimentos de algum espectador porque é mantida oculta na esfera privada, a sua punição deixa de ter um fim de proteção no sentido atrás exposto. Evitar condutas meramente imorais não constitui tarefa do direito penal”.[9]

Disso decorre afirmarmos ser destoante e ilógica a opção do legislador ao insistir em manter no sistema penal vigente o disposto no art. 229 do Código Penal, quando não se tem por criminosa a prática da prostituição nem assim pode ser considerada toda e qualquer exploração sexual.[10]

A propósito, diz André Estefam: “Com o advento da Constituição Federal e a alteração do valor protegido nos artigos 213 a 234, que passam a ser crimes contra a ‘dignidade sexual’, não mais se justifica a própria subsistência do tipo penal. Num Estado Democrático de Direito, calcado na dignidade da pessoa humana, que pressupõe a liberdade de autodeterminação, não se pode considerar criminosa uma atividade que, em seu bojo, não envolve práticas ilícitas (somente imorais)”.[11]

Bem por isso o acerto das oportunas observações lançadas por Guilherme de Sousa Nucci quando revela sua indignação nos seguintes termos: “Em lugar de descriminalizar o óbvio, eliminando do cenário do Código Penal o artigo 229, altera-se uma expressão por outra análoga, gerando a expectativa de aplicação da norma, o que fatalmente, não ocorrerá. Se a prostituição tanto incomoda, somente para argumentar, crie-se o tipo penal apropriado, criminalizando-a. Somente assim teria sentido buscar a punição por quem a pratica ou quem mantém lugar destinado à prática desse crime. Porém, não constituindo delito, de nada importa existir uma infração penal, pretendendo punir o dono de um lugar onde ocorra ato não criminoso. Se a prostituição é prática imoral, lembremos que a corrupção também é, aliás, além de imoral é crime. E não consta existir tipo penal punindo quem mantenha estabelecimento onde ocorra corrupção”.[12]

Há que se buscar um sistema de regulamentação criminal menos hipócrita possível, onde não exista espaço para a proteção de valores puramente morais,[13] sem que isso traduza qualquer aplauso ou condescendência em relação a condutas marcadas por revelado desprezo à moral vigorante.

Discorrendo sobre aos critérios de legitimação da criminalização, Jorge de Figueiredo Dias e Manoel Costa Andrade ensinam: “Segundo o entendimento unânime, só assumem dignidade penal as condutas que lesem bens jurídicos ou, noutros termos, que sejam socialmente danosas. Segundo, por exemplo, a sugestiva formulação de Morris e Hawkins, ‘a função primordial do direito criminal é proteger as pessoas e os bens (...). Sempre que o direito criminal invade as esferas da moralidade ou do bem-estar social, ultrapassa os seus próprios limites em detrimento das suas tarefas primordiais (...). Pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem diretamente”.[14]

Como se vê, errou o legislador ao manter a tipificação penal em comento.

[1] Renato Marcão e Plínio Gentil, Crimes Contra a Dignidade Sexual, São Paulo, Saraiva, 2011.

[2] Comentários ao Código Penal, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. VIII, p. 268.

[3] Comentários ao Código Penal, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. VIII, p. 268.

[4] Niklas Luhmann, Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro, Biblioteca Tempo Universitário, tradução de Gustavo Bayer, 1983, p. 168.

[5] Comentários ao Código Penal, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. VIII, p. 274.

[6] Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 467.

[7] A racionalidade das leis penais, São Paulo, Revista dos Tribunais, tradução de Luiz Regis Prado, 2005, p. 153.

[8] Problemas fundamentais de Direito Penal, Lisboa, Vega, tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 1986, p. 29/30.

[9] Luiz Flávio Gomes tratou da matéria com profundidade em seus livros: Norma e bem jurídico no Direito Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, Série “As Ciências Criminais no século XXI”, v. 5, 2002; e, Princípio da ofensividade no Direito Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, Série “As Ciências Criminais no século XXI”, v. 6, 2002

[10] No mesmo sentido apreendido por Guilherme de Souza Nucci, in, Crimes contra a dignidade sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 80.

[11] Crimes sexuais, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 118.

[12] Crimes contra a dignidade sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 80.

[13] Sobre a matéria, conferir o excelente livro de Alice Bianchini: Pressupostos materiais mínimos da tutela penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, Série “As Ciências Criminais no século XXI”, v. 7, 2002.

[14] Criminologia – O homem delinqüente e a sociedade criminógena, 2ª reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 405/406.

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