Não sei se o choro era de indignação ou de medo. Se era de raiva ou de abandono.
Kátia chegou chorando.
Com as mãos algemadas, tentava em vão esconder o rosto abaixando a cabeça. Mas era impossível não vê-la nem ouvi-la aos berros.
Antes mesmo de entrar na apertada sala de audiências, já chamava a atenção de todos. O choro ininterrupto e incontrolável que vinha de fora, quando ainda conversava com a defensora na beira da sala.
As paredes têm ouvidos, mais ainda com as portas abertas. E para um choro desse tamanho, então, sobram ouvidos para todos os lados.
Vivíamos momentos de tensão, na expectativa de que ela entrasse e na certeza que traria consigo uma emoção que sempre rompe com a sisudez de uma audiência criminal.
Kátia tinha bons motivos para chorar.
Não bastasse o fato de estar presa, quando o processo ainda engatinhava, recebera contra si uma acusação de grande calibre. Quinze quilos de cocaína, armas, dinheiro, embalagens e balanças de precisão para a pesagem do entorpecente. Um estoque de drogas digno de um complexo do alemão. E Kátia, parda, pobre e triste, atônita pela acusação de ser a dona de tudo aquilo.
Ela não tinha dinheiro para contratar um advogado. Não tinha testemunhas a seu favor. Não tinha parentes ou amigos que pedissem ou zelassem por ela. E não tinha, sobretudo, cara de quem fosse responsável por aquela quantidade toda de droga.
Droga, deve ter pensado, enquanto chorava e chorava ao ouvir os policiais narrando as condições em que fora presa. Um adolescente dizia que acabara de comprar droga dela, e os PMs ouvindo a indicação de onde ela encontrara o entorpecente.
Mas não houve quem confirmasse que ela tinha droga em seu poder quando foi presa. Ou que admitira que aquela droga, escondida em um barraco duas quadras adiante, era de fato dela.
As provas foram se fragilizando a vista de todos, mas ela não entendia o suficiente para parar de chorar.
Na segunda audiência, mais choro ao adentrar à sala. Ninguém mais para ser ouvido, o adolescente não foi encontrado, pois forneceu endereço falso. Era só Kátia. Quando chegou a sua vez de falar, ela simplesmente chorou. Chorou e chorou. Um choro tão sincero e comovido que quase lhe serviu de defesa.
Não sei se o choro era de indignação ou de medo. Se era de raiva ou de abandono. Mas enquanto ela chorava e a promotora e a defensora se entreolhavam, duvidando que aquela mulher frágil fosse responsável pela droga apreendida, as peças do quebra-cabeça iam lentamente se formando. Verdade seja dita: não mostravam imagem alguma.
Ao final, ela conseguiu me dizer algumas poucas palavras desconexas que significavam mais do que pareciam: “macaca nóia, você vai segurar tudo, você vai segurar tudo, macaca. E eu estou aqui, doutor. Segurando tudo.”
Segurou tudo, menos o choro, que se rompeu com mais força depois do desabafo.
Quando as fumaças foram lentamente se dissipando, quando todos naquela sala chegavam a conclusão que considerar Kátia a dona da droga era de uma improbabilidade atroz, quando o consenso de que ela dizia algo próximo a verdade foi se criando entre nós, em meio a sussurros e olhares compartilhados, eu encarei Kátia uma vez mais, antes de ditar a sentença.
Fiz com uma ponta de culpa, por três meses de prisão sem sentido.
Fiz com uma ponta de orgulho. Vai saber o que podia acontecer a ela em outro lugar, com outra defensora, outra promotora, outro juiz.
Fiz com a sensação de um dever a ser cumprido. E com a ansiedade de dizer logo a ela que aquela história acabava por aqui.
Eu a absolvi e mandei que ela fosse solta. Nem a acusação discordou.
Mas Kátia não respondeu a meus olhares, nem fez cara de agradecimento. Não sorriu, nem conseguiu dizer palavra alguma. Ao saber que seria solta, saiu da sala chorando compulsivamente da mesma forma como nela tinha entrado.
Passados os dias, eu não me recordo mais da cara, nem da voz de Kátia. Mas não tenho como esquecer o som do seu choro.
Seu choro nos tirou uma pesada cruz das costas. Mas o silêncio que deixou atrás de si era ainda mais incômodo.
Quem é que não teve vontade de chorar depois que ela saiu?
Ela não tinha dinheiro para contratar um advogado. Não tinha testemunhas a seu favor. Não tinha parentes ou amigos que pedissem ou zelassem por ela. E não tinha, sobretudo, cara de quem fosse responsável por aquela quantidade toda de droga.
Droga, deve ter pensado, enquanto chorava e chorava ao ouvir os policiais narrando as condições em que fora presa. Um adolescente dizia que acabara de comprar droga dela, e os PMs ouvindo a indicação de onde ela encontrara o entorpecente.
Mas não houve quem confirmasse que ela tinha droga em seu poder quando foi presa. Ou que admitira que aquela droga, escondida em um barraco duas quadras adiante, era de fato dela.
As provas foram se fragilizando a vista de todos, mas ela não entendia o suficiente para parar de chorar.
Na segunda audiência, mais choro ao adentrar à sala. Ninguém mais para ser ouvido, o adolescente não foi encontrado, pois forneceu endereço falso. Era só Kátia. Quando chegou a sua vez de falar, ela simplesmente chorou. Chorou e chorou. Um choro tão sincero e comovido que quase lhe serviu de defesa.
Não sei se o choro era de indignação ou de medo. Se era de raiva ou de abandono. Mas enquanto ela chorava e a promotora e a defensora se entreolhavam, duvidando que aquela mulher frágil fosse responsável pela droga apreendida, as peças do quebra-cabeça iam lentamente se formando. Verdade seja dita: não mostravam imagem alguma.
Ao final, ela conseguiu me dizer algumas poucas palavras desconexas que significavam mais do que pareciam: “macaca nóia, você vai segurar tudo, você vai segurar tudo, macaca. E eu estou aqui, doutor. Segurando tudo.”
Segurou tudo, menos o choro, que se rompeu com mais força depois do desabafo.
Quando as fumaças foram lentamente se dissipando, quando todos naquela sala chegavam a conclusão que considerar Kátia a dona da droga era de uma improbabilidade atroz, quando o consenso de que ela dizia algo próximo a verdade foi se criando entre nós, em meio a sussurros e olhares compartilhados, eu encarei Kátia uma vez mais, antes de ditar a sentença.
Fiz com uma ponta de culpa, por três meses de prisão sem sentido.
Fiz com uma ponta de orgulho. Vai saber o que podia acontecer a ela em outro lugar, com outra defensora, outra promotora, outro juiz.
Fiz com a sensação de um dever a ser cumprido. E com a ansiedade de dizer logo a ela que aquela história acabava por aqui.
Eu a absolvi e mandei que ela fosse solta. Nem a acusação discordou.
Mas Kátia não respondeu a meus olhares, nem fez cara de agradecimento. Não sorriu, nem conseguiu dizer palavra alguma. Ao saber que seria solta, saiu da sala chorando compulsivamente da mesma forma como nela tinha entrado.
Passados os dias, eu não me recordo mais da cara, nem da voz de Kátia. Mas não tenho como esquecer o som do seu choro.
Seu choro nos tirou uma pesada cruz das costas. Mas o silêncio que deixou atrás de si era ainda mais incômodo.
Quem é que não teve vontade de chorar depois que ela saiu?
Fonte: Sem Juízo, por Marcelo Semer.
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