Seus problemas estavam além, muito além do direito penal.
-Amor, tenho uma surpresa para você.
Egídio se arrepiou ao ouvir a voz de sua mulher ao telefone.
Não pelo que ela dizia. Mas a forma como falava. Havia nela uma estranha euforia, que destoava da angústia que a vinha cercando. Mais ainda porque não pôde dissipar nem um pouco que fosse de sua desconfiança. Maria José desligou o telefone logo em seguida, sem que ele tivesse a chance de responder. Ou perguntar.
Ressabiado, Egídio ligou para casa algumas vezes, todas sem sucesso. Sinal de ocupado nos próximos trinta minutos, tempo que levou para voltar à residência e tranquilizar pessoalmente os seus medos. Mas ele não sossegou, porque a resposta à campainha foi exatamente a mesma. Nenhuma.
A porta estava trancada, com o ferrolho que serve de tramela, o que só o faziam de noite, quando todos já estavam reunidos. Suas batidas foram em vão. Os gritos ecoaram no silêncio do corredor. Não ouvia qualquer sinal do outro lado da porta, mesmo pregando nela a orelha e uma mão a seu redor em forma de cone.
Não lhe restando outra alternativa, Egídio chamou a polícia.
Os PMs chegaram em quinze longos minutos, mas não demoraram mais do que dois para arrombar a porta a seu pedido.
Ninguém na sala e o quarto do casal trancado por dentro, o que a essa altura nem era propriamente uma surpresa.
Ao abrir a porta, os policiais se deparam com a cena que, no fundo, Egídiore reproduzira em pensamento desde que desligou o telefone. Maria José está caída ao chão com uma arma em sua mão direita. Sinais de danos no guarda-roupa, um buraco na parede. Uma garrafa de vodka pela metade se equilibra fragilmente na lateral da cama.
Egídio se descontrola e grita, no desespero, sem saber o que fazer ou para onde olhar. Felizmente, os policiais têm mais sangue-frio para situações como essa, que fazem parte de seu tumultuado cotidiano. E os fantasmas mais tenebrosos se vão com o vento: Maria José está apenas desmaiada e não foi nem ferida no que parece ter sido uma tentativa branca de suicídio.
O coração disparado de Egídio aos poucos volta à quase normalidade e o medo da perda se esvai lentamente.
Sufocado o receio do pior, chega a hora do direito penal.
Os dois são levados ao hospital e em sequência à delegacia de polícia. Maria José, recuperada do trauma após ser medicada, é indiciada por posse ilegal de arma de fogo e disparo em local habitado. O bom-senso do delegado impediu ao menos que ela fosse, como os demais nessa situação, presa em flagrante. Mas dispensar o inquérito, ele explica a Egídio, não será possível.
Poucas vezes me deparei com uma mulher tão triste e constrangida, quanto Maria José ao chegar para seu interrogatório no Fórum.
Inapetente para a defesa, não tentou se explicar ou fornecer qualquer tipo de justificativa. De cabeça baixa, com olhos que jamais encontravam os meus, apenas balbuciou:
-Eu não sei, doutor, o que deu em mim. Não sei.
Egídio tampouco entendera. Disse-me que tinha uma arma em casa e que a guardava a sete chaves, inclusive porque Maria José sempre teve medo de mexer nela. Quando o via limpar, ainda que descarregada, se afligia. Mas a arma que Maria José manipula agora é um revólver calibre 38, adquirido sabe-se lá de quem, nas quebradas do bairro onde residem.
Esta era a surpresa que Maria José tinha para ele.
Na ânsia de tomar alguma providência, qualquer que fosse, mas reconhecendo na ré mais o figurino de vítima, fiz questão que ela trouxesse na próxima audiência as receitas de seus medicamentos e comprovasse o acompanhamento médico à depressão. O advogado abriu na frente de todos nós, cada uma das caixas para indicar os remédios já tomados desde a última consulta.
Nesta segunda audiência, o clima era de consternação, mais do que constrangimento.
Os filhos crescidos se mostravam culpados pela contínua ausência. Egídio buscava a explicação na solidão, enquanto todos saíam para trabalhar. Parece que finalmente, depois do choque, a família reconhecia a importância de acompanhar Maria José e não a reduzia ao mau-humor de uma dona de casa estressada.
Ela comprara uma arma de forma ilegal e disparara por três vezes no interior de seu apartamento, em um prédio habitado. Que pena seria justa para tutelar a paz pública, como exige a lei, sem aprofundar sua desgraça íntima?
A acusação se bateu pela condenação, com unhas e dentes.
Ela é um perigo para a sociedade e mais ainda para si mesma, me dizia inflamada a promotora. Deve ser condenada para que tenha noção do erro que cometeu. Se deixar passar em branco, vai se achar no direito de sair por aí comprando armas e disparando onde bem entender. Se você não quer prender, obrigue-a a trabalhos comunitários, ou faça um exame, constate a doença mental e a interne.
Diversamente de tantos outros processos, neste não tive qualquer dúvida. Não fui visitado pela sombra da hesitação nem dei espaço para pensar nas alternativas da promotoria.
Concluí que o susto e a vergonha haviam sido suficientes como punição. Segui o espírito da própria lei, considerando que punir a tentativa de suicídio não é uma política hábil para evitar sua repetição.
Eu a absolvi, enfim.
E os desembargadores que julgaram o apelo da promotoria também.
Seus problemas estavam além, muito além do direito penal.
É dolorido, mas necessário reconhecer em certas situações, a impotência da Justiça.
Eu torci desesperadamente para estar certo e que Maria José conseguisse, por si só, reconstruir os fios esgarçados de sua vida.
Mas a punição para o juiz é jamais saber se isso aconteceu.
Ninguém na sala e o quarto do casal trancado por dentro, o que a essa altura nem era propriamente uma surpresa.
Ao abrir a porta, os policiais se deparam com a cena que, no fundo, Egídiore reproduzira em pensamento desde que desligou o telefone. Maria José está caída ao chão com uma arma em sua mão direita. Sinais de danos no guarda-roupa, um buraco na parede. Uma garrafa de vodka pela metade se equilibra fragilmente na lateral da cama.
Egídio se descontrola e grita, no desespero, sem saber o que fazer ou para onde olhar. Felizmente, os policiais têm mais sangue-frio para situações como essa, que fazem parte de seu tumultuado cotidiano. E os fantasmas mais tenebrosos se vão com o vento: Maria José está apenas desmaiada e não foi nem ferida no que parece ter sido uma tentativa branca de suicídio.
O coração disparado de Egídio aos poucos volta à quase normalidade e o medo da perda se esvai lentamente.
Sufocado o receio do pior, chega a hora do direito penal.
Os dois são levados ao hospital e em sequência à delegacia de polícia. Maria José, recuperada do trauma após ser medicada, é indiciada por posse ilegal de arma de fogo e disparo em local habitado. O bom-senso do delegado impediu ao menos que ela fosse, como os demais nessa situação, presa em flagrante. Mas dispensar o inquérito, ele explica a Egídio, não será possível.
Poucas vezes me deparei com uma mulher tão triste e constrangida, quanto Maria José ao chegar para seu interrogatório no Fórum.
Inapetente para a defesa, não tentou se explicar ou fornecer qualquer tipo de justificativa. De cabeça baixa, com olhos que jamais encontravam os meus, apenas balbuciou:
-Eu não sei, doutor, o que deu em mim. Não sei.
Egídio tampouco entendera. Disse-me que tinha uma arma em casa e que a guardava a sete chaves, inclusive porque Maria José sempre teve medo de mexer nela. Quando o via limpar, ainda que descarregada, se afligia. Mas a arma que Maria José manipula agora é um revólver calibre 38, adquirido sabe-se lá de quem, nas quebradas do bairro onde residem.
Esta era a surpresa que Maria José tinha para ele.
Na ânsia de tomar alguma providência, qualquer que fosse, mas reconhecendo na ré mais o figurino de vítima, fiz questão que ela trouxesse na próxima audiência as receitas de seus medicamentos e comprovasse o acompanhamento médico à depressão. O advogado abriu na frente de todos nós, cada uma das caixas para indicar os remédios já tomados desde a última consulta.
Nesta segunda audiência, o clima era de consternação, mais do que constrangimento.
Os filhos crescidos se mostravam culpados pela contínua ausência. Egídio buscava a explicação na solidão, enquanto todos saíam para trabalhar. Parece que finalmente, depois do choque, a família reconhecia a importância de acompanhar Maria José e não a reduzia ao mau-humor de uma dona de casa estressada.
Ela comprara uma arma de forma ilegal e disparara por três vezes no interior de seu apartamento, em um prédio habitado. Que pena seria justa para tutelar a paz pública, como exige a lei, sem aprofundar sua desgraça íntima?
A acusação se bateu pela condenação, com unhas e dentes.
Ela é um perigo para a sociedade e mais ainda para si mesma, me dizia inflamada a promotora. Deve ser condenada para que tenha noção do erro que cometeu. Se deixar passar em branco, vai se achar no direito de sair por aí comprando armas e disparando onde bem entender. Se você não quer prender, obrigue-a a trabalhos comunitários, ou faça um exame, constate a doença mental e a interne.
Diversamente de tantos outros processos, neste não tive qualquer dúvida. Não fui visitado pela sombra da hesitação nem dei espaço para pensar nas alternativas da promotoria.
Concluí que o susto e a vergonha haviam sido suficientes como punição. Segui o espírito da própria lei, considerando que punir a tentativa de suicídio não é uma política hábil para evitar sua repetição.
Eu a absolvi, enfim.
E os desembargadores que julgaram o apelo da promotoria também.
Seus problemas estavam além, muito além do direito penal.
É dolorido, mas necessário reconhecer em certas situações, a impotência da Justiça.
Eu torci desesperadamente para estar certo e que Maria José conseguisse, por si só, reconstruir os fios esgarçados de sua vida.
Mas a punição para o juiz é jamais saber se isso aconteceu.
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