POR SABRINA DURIGON MARQUES
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingênuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo?
José Saramago
Na semana em que se comemora o Dia Nacional da Defensoria Pública tem início em São Paulo o III Ciclo de Conferências dessa instituição.
A Lei Complementar nº 988/2006, prevê a realização das Conferências, e seu artigo 31 dispõe sobre a ampla participação da sociedade nesses espaços para a aprovação do Plano Anual de Atuação da Defensoria Pública pelo Conselho Superior.
São muitos os avanços trazidos por esses espaços públicos de debates. As Conferências, que são realizadas a cada dois anos, permitem que a população apresente propostas em cada área de interesse. Aprovadas essas resoluções, estarão estabelecidas as prioridades na construção da instituição que, assim, vão sendo paulatinamente incorporadas por ela.
Conceber uma instituição de acordo com esse novo paradigma, que se faz com a “substituição da antiga concepção que visualizava o cidadão apenas como cliente para uma acepção híbrida que destaca a concepção política do cidadão”(1), traz um nítido avanço social.
E esses avanços podem ter, ao menos, quatro dimensões: a coerência da instituição, inaugurada e construída de forma democrática; a legitimidade das decisões tomadas de forma coletiva e participativa; a eficácia do serviço público, que considera a participação dos usuários para direcionamento de suas prioridades; e a emancipação e a formação política dos agentes envolvidos no processo participativo.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que foi criada muitos anos após estar prevista na Constituição Federal de 1988, teve apoio de organizações populares, e em muitos Estados sua criação somente ocorreu pela mobilização da população que buscava construir mais uma forma de acesso à justiça.
Caminhar permitindo que essa mesma população interfira nessa gestão é uma demonstração de coerência, o que solidifica as bases da instituição, ao passo em que trabalha no sentido de superar as contradições internas e externas a ela.
A importância dessas escolhas, feitas com a participação da população diretamente envolvida e interessada é fator importante para lhes conferir legitimidade. ”A participação do cidadão qualifica os processos decisórios, tornando-os mais legítimos e, principalmente, aumenta a eficiência administrativa do próprio Estado.” (2)
E a Defensoria vem cumprindo esse papel de interface entre a Sociedade e o Estado. José Eduardo Faria, ao tratar do Judiciário nas sociedades em mudança, aborda a construção da legitimidade por essas instituições (3):
“(...) em contextos nos quais os atores políticos emergentes, valorizando ações e condutas que ate então não alcançavam expressão institucionalizada ao nível das relações de poder articuladas em torno do Estado, empenham-se por alternativas frente àquelas oferecidas pelas instituições representativas comuns à concepção liberal-burguesa de Estado e direito, procurando: (a) elaborar seus próprios códigos de identidade e auto-reconhecimento; (b) construir seus paradigmas de legitimidade; e (c) concretizar nas práticas da luta cotidiana a “utopia” em favor de uma sociedade “livre” e “justa”. Postulando-se que: (a) na redefinição das relações do Estado com a sociedade esta aparece construída no interior de uma nova representação social e do político, por meio da qual adquire sentido enquanto espaço de experiências originais e enquanto espaço de constituição de novos sujeitos; (...)”
O autor esclarece que é preciso implodir a ideia de confiança idealista na racionalidade das leis para adotar um conceito operativo de direito, que, utilizando o conceito de Boaventura Santos, define como processos considerados justificáveis num certo grupo (4).
Luciana Zaffalon (5), ao tratar das Conferências ensina:
A democratização dos processos decisórios existentes na DPESP potencialmente implica na legitimação do exercício de sua função de garantidora da cidadania dentro do Poder Judiciário à medida que, através da participação social, passa a ser possível a compreensão do exato quadro de exclusão da ordem jurídica que precisa ser superado, do que precisa ser priorizado. Consideramos, assim, a participação como instrumento para que as desigualdades aflorem na forma de questões prioritárias e possíveis soluções coletivas.
E a participação social é tema transversal à solução dos conflitos coletivos, demanda que a Defensoria tem especial habilidade e expertise para tratar por meio de seus núcleos especializados, que são divididos tematicamente. Dessa forma é possível visualizar os sujeitos coletivos, o que permite que os encaminhamentos dessas demandas sejam feitos de forma diferenciada, já que apontam para questões estruturantes da sociedade.
Como bem ressaltado por Faria ao abordar os conflitos coletivos, a Defensoria, ao instituir essa forma participativa, reconhece a possibilidade de um distanciamento crítico e tem a consciência das implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades sócio-econômicas (6).
Essa participação permite também elevar o grau de eficácia do serviço público, uma vez que o destinatário final do serviço participa do processo de construção da instituição. Fernandez (7) confirma: “(...) a participação já não é observada como um custo em detrimento da eficiência administrativa, mas como um custo necessário para alcançar a eficiência.”
O II Relatório de Monitoramento das Conferências (8), documento que sintetiza as propostas aprovadas e seus respectivos encaminhamentos na instituição, aponta que das 349 propostas aprovadas no I e II Ciclos, apenas 30 delas apresentavam conteúdos que não fazem parte da atribuição institucional da Defensoria Pública, sendo 19 referentes ao I Ciclo e 11 referentes ao II Ciclo. Essa redução de cerca de 50% (cinquenta por cento) no espaço de dois anos é um dado importante, que pode apontar para um afinamento entre a população e as atribuições da Defensoria.
Nesse aspecto merecem destaque projetos desenvolvidos com foco em Educação em Direitos, voltados ao público atendido pela Defensoria, como o Curso de Defensores Populares que, contando com apoio de diversas organizações, propicia a troca de conhecimentos entre assessores, Defensores Públicos e população, contribuindo para a emancipação dos agentes envolvidos, mais uma porta de entrada à instituição.
A metodologia utilizada nas Pré Conferências e também na Conferência permite que a esfera da problemática individual seja superada, partindo a discussão do interesse geral, e fortalecendo o espaço público.
O resultado dessa abertura por meio das Conferências é a formação de cidadãos com habilidades que permitam a apreensão e compreensão da gestão pública, e também a formação dos Defensores Públicos, que precisam adequar seu conhecimento técnico à linguagem leiga, permitindo um fluxo constante de informações entre as partes.
E nesse aspecto, a edição desses Relatórios de Monitoramento é um dos incentivos para que a participação social tenha continuidade na instituição, já que ele proporciona ao cidadão que acompanhe o trajeto e implantação das resoluções aprovadas.
Ainda no âmbito dos Relatórios, foi feito um diagnóstico acerca das propostas aprovadas, apontando quais foram implementadas, quais delas estão em fase de implantação e indicando aquelas que ainda não foram, e quais são as dificuldades que estão sendo enfrentadas para isso. Essa resposta à sociedade é fundamental para que esse ciclo seja permanente.
Segundo Zaffalon (9),
“O Ciclo de Conferências da DPESP, por sua vez, configura-se como um espaço educativo que busca incluir as diversas vozes que compõem o público alvo da Defensoria, potencializando os debates sobre a promoção do acesso à justiça, vinculando-se ao modelo de minipúblicos considerados fóruns educativos. (...)
A democratização dos processos decisórios existentes na DPESP implica à legitimação do exercício de sua função garantidora da cidadania dentro do Poder Judiciário na medida em que, através da participação social, passa a ser possível a reversão do quadro de exclusão característico da ordem jurídica que precisa ser superado tendo em vista o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Considera-se, à luz de nosso referencial teórico, a “participação” como instrumento para que as desigualdades possam ser enfrentadas na forma de questões prioritárias e possíveis soluções coletivas. Embora a participação não seja garantia de resultados, implica a abertura de espaços e ativação da cidadania, o que, por si só, altera o quadro histórico das lutas sociais no Brasil, notadamente quando o foco é o Sistema de Justiça.”
No caminho do aperfeiçoamento, a Defensoria cresce junto com os seus mecanismos de gestão democrática. A criação desse espaço público de participação em que se exercita a vida política e a cidadania, prima por uma instituição justa e democrática, que abre suas portas aos anseios populares.
O caminhar da instituição lado a lado com a população atribui legitimidade às suas ações e garante que o público a quem a instituição se destina esteja sempre representado e sua voz seja a voz da Defensoria. Vida longa à Defensoria Pública que tem como combustível o apoio da luta popular!
*Sabrina Durigon Marques é Advogada, trabalhando atualmente na Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça.
1 Eleonora Schettini Martins Cunha e Eduardo Moreira da Silva, p. 13 in Experiências internacionais de participação
2 Op. Cit., p. 17
3 Justiça e Conflito. Os juízes em face dos novos movimentos sociais, p. 39
4 Op. Cit., p. 41
5 Uma fenda na justiça, p. 127
6 Justiça e Conflito. Os juízes em face dos novos movimentos sociais, p. 43
7 Novos Instrumentos de Participação: entre a participação e a deliberação, p. 23, in Experiências internacionais de participação
8 http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/II_relatorio_monitoramento.pdf>, acesso em 15 de maio de 2011, p. 10.
9 Uma fenda na Justiça, p.166-168
E esses avanços podem ter, ao menos, quatro dimensões: a coerência da instituição, inaugurada e construída de forma democrática; a legitimidade das decisões tomadas de forma coletiva e participativa; a eficácia do serviço público, que considera a participação dos usuários para direcionamento de suas prioridades; e a emancipação e a formação política dos agentes envolvidos no processo participativo.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que foi criada muitos anos após estar prevista na Constituição Federal de 1988, teve apoio de organizações populares, e em muitos Estados sua criação somente ocorreu pela mobilização da população que buscava construir mais uma forma de acesso à justiça.
Caminhar permitindo que essa mesma população interfira nessa gestão é uma demonstração de coerência, o que solidifica as bases da instituição, ao passo em que trabalha no sentido de superar as contradições internas e externas a ela.
A importância dessas escolhas, feitas com a participação da população diretamente envolvida e interessada é fator importante para lhes conferir legitimidade. ”A participação do cidadão qualifica os processos decisórios, tornando-os mais legítimos e, principalmente, aumenta a eficiência administrativa do próprio Estado.” (2)
E a Defensoria vem cumprindo esse papel de interface entre a Sociedade e o Estado. José Eduardo Faria, ao tratar do Judiciário nas sociedades em mudança, aborda a construção da legitimidade por essas instituições (3):
“(...) em contextos nos quais os atores políticos emergentes, valorizando ações e condutas que ate então não alcançavam expressão institucionalizada ao nível das relações de poder articuladas em torno do Estado, empenham-se por alternativas frente àquelas oferecidas pelas instituições representativas comuns à concepção liberal-burguesa de Estado e direito, procurando: (a) elaborar seus próprios códigos de identidade e auto-reconhecimento; (b) construir seus paradigmas de legitimidade; e (c) concretizar nas práticas da luta cotidiana a “utopia” em favor de uma sociedade “livre” e “justa”. Postulando-se que: (a) na redefinição das relações do Estado com a sociedade esta aparece construída no interior de uma nova representação social e do político, por meio da qual adquire sentido enquanto espaço de experiências originais e enquanto espaço de constituição de novos sujeitos; (...)”
O autor esclarece que é preciso implodir a ideia de confiança idealista na racionalidade das leis para adotar um conceito operativo de direito, que, utilizando o conceito de Boaventura Santos, define como processos considerados justificáveis num certo grupo (4).
Luciana Zaffalon (5), ao tratar das Conferências ensina:
A democratização dos processos decisórios existentes na DPESP potencialmente implica na legitimação do exercício de sua função de garantidora da cidadania dentro do Poder Judiciário à medida que, através da participação social, passa a ser possível a compreensão do exato quadro de exclusão da ordem jurídica que precisa ser superado, do que precisa ser priorizado. Consideramos, assim, a participação como instrumento para que as desigualdades aflorem na forma de questões prioritárias e possíveis soluções coletivas.
E a participação social é tema transversal à solução dos conflitos coletivos, demanda que a Defensoria tem especial habilidade e expertise para tratar por meio de seus núcleos especializados, que são divididos tematicamente. Dessa forma é possível visualizar os sujeitos coletivos, o que permite que os encaminhamentos dessas demandas sejam feitos de forma diferenciada, já que apontam para questões estruturantes da sociedade.
Como bem ressaltado por Faria ao abordar os conflitos coletivos, a Defensoria, ao instituir essa forma participativa, reconhece a possibilidade de um distanciamento crítico e tem a consciência das implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades sócio-econômicas (6).
Essa participação permite também elevar o grau de eficácia do serviço público, uma vez que o destinatário final do serviço participa do processo de construção da instituição. Fernandez (7) confirma: “(...) a participação já não é observada como um custo em detrimento da eficiência administrativa, mas como um custo necessário para alcançar a eficiência.”
O II Relatório de Monitoramento das Conferências (8), documento que sintetiza as propostas aprovadas e seus respectivos encaminhamentos na instituição, aponta que das 349 propostas aprovadas no I e II Ciclos, apenas 30 delas apresentavam conteúdos que não fazem parte da atribuição institucional da Defensoria Pública, sendo 19 referentes ao I Ciclo e 11 referentes ao II Ciclo. Essa redução de cerca de 50% (cinquenta por cento) no espaço de dois anos é um dado importante, que pode apontar para um afinamento entre a população e as atribuições da Defensoria.
Nesse aspecto merecem destaque projetos desenvolvidos com foco em Educação em Direitos, voltados ao público atendido pela Defensoria, como o Curso de Defensores Populares que, contando com apoio de diversas organizações, propicia a troca de conhecimentos entre assessores, Defensores Públicos e população, contribuindo para a emancipação dos agentes envolvidos, mais uma porta de entrada à instituição.
A metodologia utilizada nas Pré Conferências e também na Conferência permite que a esfera da problemática individual seja superada, partindo a discussão do interesse geral, e fortalecendo o espaço público.
O resultado dessa abertura por meio das Conferências é a formação de cidadãos com habilidades que permitam a apreensão e compreensão da gestão pública, e também a formação dos Defensores Públicos, que precisam adequar seu conhecimento técnico à linguagem leiga, permitindo um fluxo constante de informações entre as partes.
E nesse aspecto, a edição desses Relatórios de Monitoramento é um dos incentivos para que a participação social tenha continuidade na instituição, já que ele proporciona ao cidadão que acompanhe o trajeto e implantação das resoluções aprovadas.
Ainda no âmbito dos Relatórios, foi feito um diagnóstico acerca das propostas aprovadas, apontando quais foram implementadas, quais delas estão em fase de implantação e indicando aquelas que ainda não foram, e quais são as dificuldades que estão sendo enfrentadas para isso. Essa resposta à sociedade é fundamental para que esse ciclo seja permanente.
Segundo Zaffalon (9),
“O Ciclo de Conferências da DPESP, por sua vez, configura-se como um espaço educativo que busca incluir as diversas vozes que compõem o público alvo da Defensoria, potencializando os debates sobre a promoção do acesso à justiça, vinculando-se ao modelo de minipúblicos considerados fóruns educativos. (...)
A democratização dos processos decisórios existentes na DPESP implica à legitimação do exercício de sua função garantidora da cidadania dentro do Poder Judiciário na medida em que, através da participação social, passa a ser possível a reversão do quadro de exclusão característico da ordem jurídica que precisa ser superado tendo em vista o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Considera-se, à luz de nosso referencial teórico, a “participação” como instrumento para que as desigualdades possam ser enfrentadas na forma de questões prioritárias e possíveis soluções coletivas. Embora a participação não seja garantia de resultados, implica a abertura de espaços e ativação da cidadania, o que, por si só, altera o quadro histórico das lutas sociais no Brasil, notadamente quando o foco é o Sistema de Justiça.”
No caminho do aperfeiçoamento, a Defensoria cresce junto com os seus mecanismos de gestão democrática. A criação desse espaço público de participação em que se exercita a vida política e a cidadania, prima por uma instituição justa e democrática, que abre suas portas aos anseios populares.
O caminhar da instituição lado a lado com a população atribui legitimidade às suas ações e garante que o público a quem a instituição se destina esteja sempre representado e sua voz seja a voz da Defensoria. Vida longa à Defensoria Pública que tem como combustível o apoio da luta popular!
*Sabrina Durigon Marques é Advogada, trabalhando atualmente na Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça.
1 Eleonora Schettini Martins Cunha e Eduardo Moreira da Silva, p. 13 in Experiências internacionais de participação
2 Op. Cit., p. 17
3 Justiça e Conflito. Os juízes em face dos novos movimentos sociais, p. 39
4 Op. Cit., p. 41
5 Uma fenda na justiça, p. 127
6 Justiça e Conflito. Os juízes em face dos novos movimentos sociais, p. 43
7 Novos Instrumentos de Participação: entre a participação e a deliberação, p. 23, in Experiências internacionais de participação
8 http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/II_relatorio_monitoramento.pdf>, acesso em 15 de maio de 2011, p. 10.
9 Uma fenda na Justiça, p.166-168
Fonte: Sem juízo, por Marcelo Semer.
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