sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Acesso à Justiça, Direito e Avesso (Marcelo Semer em 23/09/2011)

Acesso a justiça é combinação de responsabilidade pública, compromisso com a igualdade e gestão democrática.

Segue abaixo o texto-base da minha participação no debate “Judiciário e Acesso à Justiça”, dentro do Congresso “Direito e Avesso”, realizado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, em 22 de Setembro, na Sala do Estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Na oportunidade, estava também na mesa o Defensor Público Gustavo Reis, da Escola da Defensoria Pública, do Estado de São Paulo.

Palestra direito/avesso: Judiciário e acesso à justiça

Enorme satisfação em estar neste evento, especialmente nesta sala do Estudante. Quando presidente do C.A. Xi de Agosto, nossa gestão rebatizou a sala, temporariamente, de Sala da Constituinte.

Aqui já eram realizadas as reuniões do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte e marcamos como o local permanente de colheita de assinaturas para as emendas populares quando da instalação da Constituinte em 1988. Nesta mesma mesa, ficavam espalhadas as propostas de emendas que trabalhadores, aposentados e estudantes assinavam.

No fundo, voltando a este evento, continuamos discutindo a mesma coisa: construir mecanismos para que o povo se aproprie do Estado.

 Não me proponho aqui a fazer uma palestra de cunho acadêmica ou teórica –não sou um estudioso da justiça. Pretendo dar um testemunho da minha experiência como juiz e, utilizando dos instrumentos e das preocupações compartilhadas na vivência da Associação Juízes para a Democracia, estabelecer algumas considerações críticas.

Associação Juízes para a Democracia que completa 20 anos neste 2011 e que, por coincidência, também começou com uma reunião nesta casa com 37 juízes paulistas –hoje, felizmente, ampliou-se abarcando colegas de todas as justiças e de todos os Estados.

Mas continuamos firmes no propósito de construir um Judiciário mais justo, mais solidário, instrumento de uma democracia além das formas.

A fotografia mais comum do Judiciário é o gargalo, a lentidão.

O Poder Judiciário incapaz de resolver em tempo razoável com o volume expressivo de suas demandas. A modernização do conhecido ditado já o levou a dizer: a justiça que tarda, falha.

Penso que é preciso estender um pouco a visão.

Se é verdade que o Judiciário está entupido de processos, de outro lado ainda está carente de demandas. Há uma nítida mistura de excesso e escassez, principalmente, neste último caso, persistem estratos da população ainda invisíveis para o Estado.

Penso que a distribuição dos custos do sistema também é desproporcional. Os atrasos e as dificuldades não são sentidos ou suportados da mesma forma por todos. Duas pesquisas recentes do CNJ indicam de forma visível essa desproporção:

45% dos presos são provisórios –com processos que ainda não terminaram;
Entre os 100 maiores litigantes nos tribunais superiores, além dos órgão públicos, só encontram-se bancos.

Em resumo: pobres superlotam cadeias, enquanto ricos entopem tribunais.

Tudo isso serve para que nos convençamos que não existe no Judiciário apenas um problema: a lentidão.

Durante muito tempo, nos concentramos na economia como se existisse apenas o problema da inflação. Mas quando a inflação ficou sob controle, nem por isso se pôde dizer que a desigualdade social (nosso problema mais agudo) havia sumido.

Além de não ter instrumentos para julgar em tempo razoável as demandas que nele ingressam, Judiciário de certa forma reproduz a desigualdade que lhe incumbia debelar.

Durante muito tempo, Judiciário se colocou ao largo do problema de sua lentidão, responsabilizando o Executivo, pela falta de recursos financeiros e o Legislativo, pelo excesso de recursos processuais.

Com a reforma, o Judiciário começa a se convencer de que também é parte do problema e isso é um lado extremamente positivo que se deve à criação do CNJ, que quebrou uma visão cartorial e quase coronelista dos Tribunais.

Instaurou-se a ideia de que Justiça sofre de problemas de e padece de ineficiência. Isso nos faz olhar um pouco para nós mesmos e quebrar um sentido histórico de arrogância e só por isso vale a pena.

Mas é preciso ter em conta que uma gestão com postulados de administração privada nem sempre esgota a solução de todos os problemas e ainda cria alguns efeitos colaterais.

Indicadores, metas, resultados são importantes instrumentos para a política da eficiência (obtenção do resultado a menor custo).

Mas sempre é bom ter em conta que Judiciário também deve ter uma dimensão ética (resultado não pode ser alcançado a qualquer custo).

Não é porque custa trazer presos para o Fórum, que vamos negar direito de estar presente à audiência.

E também uma função emancipatória (não é qualquer resultado que nos interessa). Não é porque os tribunais estão abarrotados, que devemos limitar abrangência de Habeas Corpus: Justiça deve ser instrumento de fruição dos direitos constitucionais.
Efeito colateral é a síndrome da planilha e a produção da máquina de julgar, o que, no limite, esvazia o caráter de julgamento (que não é o mesmo que decidir).

Mas a maior crítica ao CNJ é imaginar ser possível modernizar a justiça sem ao mesmo tempo democratizá-la.

Poucas foram as iniciativas do CNJ para ampliar os espaços de democratização interna no Judiciário –espaço em que ainda os ares da redemocratização simplesmente não alcançaram.

Ao revés, quando entrou em questão uma das poucas medidas tímidas de democratização interna, a eleição de metade dos integrantes do órgão especial, o papel do CNJ foi de primeiro obstar eleição por liminar e depois reduzir sua abrangência ao mínimo possível (garantindo o assento a quem lá já estava, tratando cargo de representação como inamovível).

Uma ingenuidade acreditar que é possível modernizar sem democratizar –sem eliminar o caráter ainda oligárquico dos tribunais.

Um exemplo de como o exercício do poder interfere na administração pode ser visto em SP. Durante décadas, desembargadores ficaram protegidos dos crescimentos de demandas. Faziam um represamento estipulando um número máximo de processos que eram distribuídos a cada membro do Tribunal. Se um juiz da primeira instância tentasse fazer o mesmo –dizer a seu escrivão quantos processos lhe enviar à conclusão por semana, seria punido. Assim fazendo, criou-se uma enormidade de processos represados, sem a sensação de ver as mesas superlotadas de processos quando o movimento crescia. Um estoque de quase meio milhão de processos foi assim criado no TJ.

E quando a reforma do Judiciário determinou a distribuição imediata de todos os processos, qual foi a primeira medida do órgão especial? Seus membros decidiram ficar fora da distribuição ordinária, sob o argumento de que havia muitas questões administrativas a discutir quando a junção dos tribunais.

E a segunda? Acertar a criação de um grupo de juízes de primeira instância para baixar o estoque que os próprios tribunais haviam criado.

É uma pena o total desprestígio da democratização interna.

Até o STF, que distribui ativismo para todos os lados, quando olhou para dentro da Justiça, fez valer uma regra draconiana do entulho autoritário para decidir que apenas os mais antigos entre os mais antigos dos desembargadores podiam ser candidatos aos cargos diretivos.

Em SP, por exemplo, as gestões de dois anos se reduziram a no máximo um: os desembargadores que as ganhavam eram tão antigos que não conseguiam cumprir a gestão antes de aposentar.

A última medida da primeira gestão deste retorno à gerontocracia tomou uma medida administrativa de muita importância: garantiu direito à segurança aos ex-dirigentes do Judiciário, em moldes similares ao que tem um ex-governador.

E nem é preciso dizer, porque já se tornou público, pelo pior motivo possível, como os tribunal decidem a segurança para os juízes...

Ingressando no tema de acesso à justiça.

Nenhuma política de acesso à Justiça é mais importante do que uma educação pública de qualidade –quem não conhece, não exige, não se defende, não pressiona.

É fato que a distribuição de renda no Brasil é abissal; e a distribuição de educação é ainda mais profunda, o que termina por condenar grandes parcelas da população a subempregos e subsalários.

Mesmo no que respeita à Justiça, a compreensão dos direitos é extremamente fragilizada –há um nítido desconforto e insegurança de parcelas expressivas da população quanto a sua própria posição de credor de políticas; um enorme desconhecimento de situações que acabam por ensejar, muitas vezes, prática de ilícitos ou vitimizações.

Lembro de questões que vejo cotidianamente na Justiça Criminal. A aquisição por parte das pessoas de menor instrução de bens sem qualquer documentação ou segurança.
Algumas vezes elas são processadas por receptação, porque juízes avaliam que não tomaram medidas de cautela que um comprador normal (com mais instrução, provavelmente) teria tomado; em outras, são vítimas freqüentes de estelionatários, como acontece em loteamentos irregulares.

Há, sem dúvida, um enorme estranhamento diante da Justiça, seja pela desconfiança, seja pelo medo.

E não se pode dizer que o Judiciário de alguma forma auxilie a quebrar essa barreira.

O poder ainda é construído de forma imperial, seus edifícios são Palácios, seus tribunais são Cortes, e as vestes tradicionais intimidam e em muitos casos afastam.

Não é desconhecido, por exemplo, caso do juiz trabalhista que não permitiu que operário acompanhasse audiência de seu processo trabalhista de chinelos. Depois da grande repercussão do caso, solidário o magistrado comprou um par de sapatos ao autor da causa.

Mas não compreendeu que não são as partes que devem se vestir de gala para ir ao Fórum, mas os juízes que devem se despir de seus mantos para atingir o povo –ele é nosso patrão, por mais difícil que isso possa parecer. É para ele que trabalhamos e a consecução de seus direitos é que justifica nossos salários.

Eu diria, mais, que há desconhecimentos de parte a parte e que os juízes, em grande medida tampouco conhecem a realidade de nossos habitantes mais humildes.

Evocando aqui Roberto Lyra (que o nome Direito e Avesso evoca) pode-se dizer que nosso direito ainda é encontrado nos livros, não é achado nas ruas

A formação do operador do direito é uma formação positivista, para a qual as regras são muito mais importantes que os princípios, conceitos abstratos de pouca valia.
Costumo lembrar o caso do direito ao silêncio, garantido em 1988. Durante muitos anos, juízes continuaram advertindo os réus que o silêncio era um direito, mas podia ser interpretado a ser desfavor, como estava consignado no Código de Processo Penal até a poucos anos. E muitos réus foram condenados a custo de um suposto “silêncio na lavratura da prisão em flagrante”, sob o fundamento de que: um inocente jamais se cala.

Só quando a lei infraconstitucional mudou, isso de certa forma atenuou-se. A mudança da lei teve um efeito mais decisivo do que a mudança da Constituição.
Pode-se anotar, ainda, a dificuldade que os tribunais superiores tem para disseminar uma jurisprudência mais garantista, que não é seguida pelos TJs, por exemplo, nem mesmo quando se tornam súmulas –embora os tribunais costumem valorizar suas próprias jurisprudências como orientação aos juízes de primeira instância.

Nas escolas da magistratura, organizam-se visitas a laboratórios, bolsa de valores, academia da polícia. Mas que contato temos com as comunidades carentes?

Juízes sofrem quando tem contato com movimentos sociais ou a assentamentos, mas nem o Código de Ética do CNJ reprova a participação em congressos patrocinados por instituições financeiras.

Na hora de criar soluções, estas acabam por atender basicamente aos reclamos da classe média e as demandas ampliadas pelas revistas semanais, como os juizados nos aeroportos, quando o problema do transporte público é muito mais grave, há muito mais tempo.

O acesso à justiça é, sobretudo, acesso a ordem jurídica justa.

Falar em acesso à justiça, portanto, pressupõe igualdade, mas é preciso convir que o universo legal conspira todo ele pela desigualdade.

As regras são distintas para grandes e pequenos e os exemplos são fartos.
Para a cobrança bancária, a legislação chegou a criar até o mecanismo de prisão (hoje sepultado pelo STF), na chamada alienação fiduciária. Agora, para ações contra os bancos, já é enorme dificuldade considerar incluídas no direito do consumidor.

A tutela penal, então, é predominante da propriedade privada –não é a toa que a população presa é a mais destituída de patrimônio.

O direito à propriedade se sobrepõe à moradia; frustrar direito à moradia não é punível, frustrar direito à propriedade é crime.

A alteração da lei de falências para a recuperação judicial, deu uma mostra por onde se ancora o legislador: incumbe aos trabalhadores o sacrifício da recuperação de uma empresa, como se viu na trágica situação dos funcionários da Varig. O objetivo é beneficiar os credores, instituições financeiras, para uma suposta diminuição dos juros que nunca chega ao consumidor.

O sistema de justiça acaba, assim, por reproduzir a desigualdade que lhe incumbia resolver ou minorar.

Infelizmente, a desigualdade legal normalmente se opera em favor do forte.

É o que vemos na preservação da “síndrome dos desiguais”: foro privilegiado para autoridades, a prisão especial aos diplomados, a imunidade parlamentar a políticos.

Importante é entender que existe essa realidade (ou seja, que a lei não é neutra) e compreender o papel do juiz (que também não é neutro): garantidor dos direitos -embora ainda às vezes tenham se colocado como censores da liberdade.

Por excelência a principal porta de acesso à justiça é a Defensoria Pública.

A “assistência jurídica” prevista na Constituição hoje é maior do que a antiga “assistência judiciária”.

Inclui orientação prévia, bem ainda educação jurídica, de cidadania, destinada a propagar o conhecimento dos direitos.

A Defensoria é capaz de atacar os dois pontos do problema: educação e desigualdade.
Política pública de assistência jurídica passa necessariamente pela criação, instalação e estruturação da Defensoria Pública –nosso “Sistema único de Assistência Jurídica”.

A Defensoria Pública foi instituída pela Constituição Federal de 1988 e, em vários Estados, tem tido inequívocas dificuldades de se instalar efetivamente.

Em São Paulo, por exemplo, demorou 18 anos para ser criada e mesmo assim, com um número de profissionais muito inferior ao necessário para o atendimento à população carente –são apenas 500 advogados para mais de quarenta milhões de habitantes.

Outros Estados ainda não a instalaram e Santa Catarina, por exemplo, nem a criou.
Para tratar a Defensoria como verdadeira política pública é essencial criar uma instituição forte, autônoma e independente.

É preciso dotar a defensoria dos mesmos instrumentos que tornaram forte a instituição do Ministério Público.

O crescimento do Ministério Público, em especial depois da Constituição de 1988, foi extremamente positivo para o Estado Democrático de Direito. Não há porque imaginar que o crescimento da DP também não o seja.

Se é certo que o Ministério Público é o advogado da sociedade, a Defensoria Pública é a advogada de quem quer fazer parte da sociedade, de uma população ainda marginalizada, inclusive na Justiça.

A Defensoria Pública tem o DNA da inclusão no sangue e pode se revelar um instrumento eficaz na luta da redução das desigualdades, que é um objetivo fundamental da República.

Outra questão essencial para o acesso à justiça parece-me ser o fortalecimento das ações coletivas, hoje uma absoluta exceção no movimento forense.
Infelizmente o dogmatismo sempre apostou no julgamento de ações individuais, inclusive para evitar disputas de classe.

Isso é que Boaventura Santos denominava trivialização de conflitos. A legislação sempre foi tímida quanto à possibilidade de conflitos coletivos (onde muitos discutem o mesmo direito numa só ação) e a reposta dos tribunais, negativa.

Toda sorte de obstáculos processuais foi criada para as causas coletivas. De modo que o STF é especialmente responsável pela imensidão de “pedidos idênticos” do qual hoje se queixa.

Lembro-me de uma demanda de estudantes de seis anos que estavam saindo das escolas municipais e impedidos de começar estudos nas estaduais. O MP ingressou com ação civil pública, que foi barrada pelo TJ. Ao final, foram dezenas de milhares de mandados de segurança que acabaram nem sendo julgados, porque, no meio do caminho, as crianças completaram sete anos.

E hoje, ao invés de fortalecer os institutos das ações coletivas, a reforma do judiciário preferiu concentrar a jurisdição para dar valor coletivo a decisões individuais (ou cercear a independência do juiz com as súmulas vinculantes)
Se pensarmos em políticas públicas no Judiciário, por exemplo, as ações coletivas são ainda mais necessárias, para evitar que as políticas aplicadas deixem de ser públicas pelo fato de que apenas alguns ingressam no Judiciário.

E se as ações coletivas são essenciais para a promoção das políticas públicas, e são via de regra propostas contra o Estado (que é quem está no débito das ações sociais), mais uma razão para o fortalecimento da Defensoria Pública.

Nem todos concordam: associação do Ministério Público foi ao STF contestar a legitimidade da Defensoria Pública para promover ações civis públicas, em busca da “exclusividade”.

Se o ativismo judiciário admite discutir políticas públicas; portanto acesso à justiça hoje tb é acesso a políticas públicas.

E quem mais é carente de políticas públicas do que a população mais pobre.

A autonomia da DP é indispensável para, por exemplo, exigir criação de vagas em escolas públicas ou um transporte coletivo de qualidade, desnudando a falta de políticas sociais.

Em caso contrário, o que acontece é que, também pela via da Justiça, os pobres serão os que menos atingirão as políticas públicas (já acontece hoje na questão dos remédios, só quem tem acesso a médicos particulares busca remédios de alto custo na justiça).

Tudo o que devemos fugir é privilegiar quem menos precisa.

Juizados Especiais foram criados para simplificar e baratear a justiça. No início, eram feitas apenas sessões à noite, justamente para possibilitar que os trabalhadores tivessem acesso, após o serviço.

Os Juizados acabaram despertando uma enorme demanda reprimida (daqueles que queriam entrar em juízo sem pagar advogados).

Mas é certo que hoje, predominantemente, tem-se um Juizado afeto a questões de classe média, quase um juizado do consumidor: aumento de planos de saúde, mensalidades escolares, assinatura telefônica, acidentes de veículo, atrasos e cancelamentos de viagens aéreas. ,

As classes populares ainda não têm sido convidadas a participar desta experiência, ou talvez não se sintam à vontade na casa da Justiça, ou não tenham o conhecimento suficiente para transformar suas necessidades, que não são poucas, em ações.

Espera-se profundamente que esse quadro mude com o fortalecimento da Defensoria.

Mas nos preocupamos pouco com uma questão que a mim parece essencial: o excesso de demanda.

O volume de ações é de tal forma incontrolável que as medidas paliativas para um processamento mais ágil não serão suficientes para conferir eficiência ao Judiciário.

É bom que a sociedade seja estimulada a litigar, em busca de sua cidadania.

É importante que, depois de décadas de demandas reprimidas, sobretudo em face do autoritarismo que norteou as relações públicas e privadas, os agentes se sintam em condições de reclamar os seus direitos.

Mas é preciso ter em conta que este excesso de demandas acaba, via de regra, prejudicando aqueles que são mais necessitados. Nem sempre garantir o “acesso ao Judiciário” é o caminho mais curto em direção à Justiça.

Hoje, quem escolhe ir à Justiça é o réu.

O Estado prefere pagar seus compromissos na Justiça, pois pode fazer seus credores aguardarem anos nas filas do precatório. Até o INSS recorre à Justiça para atrasar pagamentos obrigatórios.

O empregador deixa o cumprimento de obrigações trabalhistas para uma eventual ação. Poucos empregados ajuízam contra a empresa e a maioria vai aceitar acordos com bons deságios.

Exemplo recente tem mostrado como se pode anular a eficiência de instrumentos criados para conferir agilidade.

É o caso das privatizações de serviços públicos, como o da telefonia.

Os serviços se ampliaram estrondosamente, mas não as plataformas de atendimento. Há milhares de ações tramitando por juizados referentes a reclamações triviais contra empresas de telefonia, que estão optando por resolver os problemas nos fóruns, com estrutura e pessoal fornecido pelo Estado.

É salutar que os órgãos públicos estejam tentando dar tramitação rápida a estas pequenas lides, em especial pela conciliação. No entanto, uma parte expressiva destas ações nem mesmo precisaria de solução judicial, se as empresas tratassem de receber reclamações contra seus serviços e se houvesse seriedade na fiscalização do Estado.

O poder de polícia, ou seja, a competência administrativa de fiscalização, praticamente se esgarçou no Brasil. As propostas modernas de esvaziamento do Estado acabaram desaguando na omissão ou quando não em agências reguladoras formadas por gestores que se mantêm mais independentes do poder público do que das empresas que devem fiscalizar. O resultado é visível: o Estado abriu mão do controle, as agências pouco regulam e as reclamações contra as empresas superlotam o Judiciário.

Acesso a justiça é uma combinação de responsabilidade pública, compromisso com a igualdade e gestão democrática.

Mas não nos enganemos, nada que diz respeito ao povo vai ser conquistado sem dor, sofrimento e pressão. 


Fonte: Sem juízo, por Marcelo Semer

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