Inconstitucionalidade
do preceito secundário dos §§ 1º e 2º do art. 184 do Código Penal (e o cabimento da suspenção condicional do processo)
Os argumentos
apresentados neste capítulo são de uma sentença do magistrado carioca Marcos Augusto
Ramos Peixoto, membro da Associação de JUízes para a Democracia (conheça a sentença aqui).
O artigo 184 do
Código Penal – de crucial relevância para corporações de grande influência e,
diga-se, ativo lobby junto ao Congresso Nacional – já foi, desde a
edição do Código Penal, alterado diversas vezes, seja para ampliar a dicção
legal quanto às ações típicas ali previstas, seja para aumentar as reprimendas
contidas no preceito secundário da norma; assim se deu pelas Leis nº
6.895/1980, 8.635/1993 e, mais recentemente, pela Lei nº 10.695/2003 que, na
parte que mais nos importa, majorou a pena mínima do delito contido no
parágrafo 1º (e consequentemente a do parágrafo 2º) do artigo 184 do Código Penal
de um ano de reclusão para dois anos, mantendo a pena máxima no patamar
anterior, isto é, de quatro anos de reclusão, além da multa, entrando o novo
texto em vigor aos 02 de agosto de 2003.
Ocorre que a
Lei nº 9.609/1998, ao dispor “sobre a proteção da propriedade intelectual de
programas de computador, sua comercialização no País, e dá outras
providências”, estatui: “Art. 12. Violar direitos de autor de programa de
computador: Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa. § 1º Se a
violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador,
no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor
ou de quem o represente: Pena - Reclusão de um a quatro anos e multa. § 2º Na
mesma pena do parágrafo anterior incorre quem vende, expõe à venda, introduz no
País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio, original ou
cópia de programa de computador, produzido com violação de direito autoral”.
Logo se vê o
absurdo da situação: se violar direito autoral atinente a programa de
computador, o autor do fato poderá ser apenado com um a quatro anos de reclusão
e multa; se violar obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma
poderá receber reprimenda que vai de dois a quatro anos de reclusão, além da
multa – o mesmo se aplicando a quem vende, expõe à venda, introduz no País,
adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio aqueles bens
produzidos com violação de direito autoral.
Qual a lógica?
Nenhuma...
As duas normas
tutelam penalmente a mesma objetividade jurídica, qual seja, o direito autoral,
ou mais amplamente a propriedade intelectual; ambas têm como sujeito passivo o
autor ou outro titular do direito imaterial; as duas dispõem de redações
praticamente idênticas. Diferem somente em uma coisa: no preceito secundário,
na pena, vulnerando drasticamente, assim, primeiramente o princípio da
igualdade, ao tratar desigualmente criminosos em situações totalmente
isonômicas, ou seja, que pratiquem condutas que dispõem do mesmo desvalor
intrínseco, isto com graves consequências de ordem penal e processual penal,
dentre as quais aquelas atinentes ao benefício do sursis processual.
Como assevera
Mariângela Gama de Magalhães Gomes “o princípio da igualdade significa a
proibição, para o legislador ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe
que a situações iguais corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a
situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado. Isto se dá
uma vez que o princípio da igualdade não se refere, apenas, a direitos e
deveres políticos, mas ordena ao legislador que preveja com as mesmas
consequências jurídicas os atos que, em linha de princípio, sejam comparáveis,
e lhe permita realizar diferenciações apenas para as hipóteses em que exista
uma causa objetiva – pois caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá
distinções arbitrárias”.[1]
É totalmente ilógico supor que a criação intelectual pertinente ao
software disponha de valor inferior ao de outras criações intelectuais e,
portanto, que o desvalor da conduta que a vulnere mereça reprimenda mais amena.
Por outro lado, saliente-se que o princípio da especialidade não pode servir de
desculpa ou pretexto para a quebra da isonomia do sistema.
Ora, à toda
evidência, uma norma que tutela penalmente direito autoral, ou seja, direito
exclusivamente patrimonial (que deveria, inclusive, ressalte-se, ser objeto
exclusivamente de ação penal de iniciativa privada), não pode dispor da mesma
pena mínima que, por exemplo, um homicídio simples tentado, uma indução a suicídio
que se consuma, um infanticídio, uma lesão corporal gravíssima, ou um abandono
de recém nascido com resultado morte; mais, não pode dispor de pena superior a
um homicídio culposo, um aborto provocado pela gestante ou com seu
consentimento, uma lesão corporal grave, ou um abandono de incapaz de que
resulte lesão grave.
Fere
completamente o senso de razoabilidade admitir-se tamanha disparidade. Quebra
toda a lógica do sistema. Vejamos mais uma vez as precisas palavras de
Mariângela Gomes: “Deve a atividade legislativa, desta forma, ser orientada
pela racionalidade, uma vez que cabe ao legislador valorar racionalmente as
diferenças e semelhanças entre os fatos a serem disciplinados, de modo que os
resultados desta ponderação mostrem-se coerentes”.
Nos ensina
Norberto Bobbio: “É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas
válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma e de outra... são
violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a
inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde
ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao
valor da igualdade). Onde existam duas normas antinômicas, ambas válidas, e
portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a
certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com
exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça,
entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria”.[2]
Assim, necessária a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº
10.695/2003, na parte em que amplia a pena mínima contida no preceito
secundário do parágrafo 1º do artigo 184 do Código Penal, entendendo como
vigorante a pena prevista para tal dispositivo pela Lei nº 8.635/1993, ou seja,
reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de CR$ 10.000,00 (dez mil
cruzeiros) a Cr$ 50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros), marcando-se audiência
para a apresentação de proposta de suspensão condicional do processo (artigo 89
da Lei nº 9.099/95).
[1] Magalhães
Gomes, Mariângela Gama; O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal,
Ed. Re-vista dos Tribunais, 1ª edição, 2003, pág. 67; 2 Idem; op.cit., pág. 67;
[2] Bobbio,
Norberto; Teoria do Ordenamento Jurídico, Ed. Universidade de Brasília,
1ª edição, 1989, pág. 113
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