terça-feira, 20 de setembro de 2011

Inconstitucionalidade do preceito secundário dos §§ 1º e 2º do art. 184 do Código Penal (e o cabimento da suspenção condicional do processo) - Da Série Seis teses sobre a violação de direitos autorais (Parte II)

Inconstitucionalidade do preceito secundário dos §§ 1º e 2º do art. 184 do Código Penal (e o cabimento da suspenção condicional do processo)

Os argumentos apresentados neste capítulo são de uma sentença do magistrado carioca Marcos Augusto Ramos Peixoto, membro da Associação de JUízes para a Democracia (conheça a sentença aqui).

O artigo 184 do Código Penal – de crucial relevância para corporações de grande influência e, diga-se, ativo lobby junto ao Congresso Nacional – já foi, desde a edição do Código Penal, alterado diversas vezes, seja para ampliar a dicção legal quanto às ações típicas ali previstas, seja para aumentar as reprimendas contidas no preceito secundário da norma; assim se deu pelas Leis nº 6.895/1980, 8.635/1993 e, mais recentemente, pela Lei nº 10.695/2003 que, na parte que mais nos importa, majorou a pena mínima do delito contido no parágrafo 1º (e consequentemente a do parágrafo 2º) do artigo 184 do Código Penal de um ano de reclusão para dois anos, mantendo a pena máxima no patamar anterior, isto é, de quatro anos de reclusão, além da multa, entrando o novo texto em vigor aos 02 de agosto de 2003.

Ocorre que a Lei nº 9.609/1998, ao dispor “sobre a proteção da propriedade intelectual de programas de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências”, estatui: “Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador: Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa. § 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente: Pena - Reclusão de um a quatro anos e multa. § 2º Na mesma pena do parágrafo anterior incorre quem vende, expõe à venda, introduz no País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio, original ou cópia de programa de computador, produzido com violação de direito autoral”.

Logo se vê o absurdo da situação: se violar direito autoral atinente a programa de computador, o autor do fato poderá ser apenado com um a quatro anos de reclusão e multa; se violar obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma poderá receber reprimenda que vai de dois a quatro anos de reclusão, além da multa – o mesmo se aplicando a quem vende, expõe à venda, introduz no País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio aqueles bens produzidos com violação de direito autoral.
Qual a lógica? Nenhuma...

As duas normas tutelam penalmente a mesma objetividade jurídica, qual seja, o direito autoral, ou mais amplamente a propriedade intelectual; ambas têm como sujeito passivo o autor ou outro titular do direito imaterial; as duas dispõem de redações praticamente idênticas. Diferem somente em uma coisa: no preceito secundário, na pena, vulnerando drasticamente, assim, primeiramente o princípio da igualdade, ao tratar desigualmente criminosos em situações totalmente isonômicas, ou seja, que pratiquem condutas que dispõem do mesmo desvalor intrínseco, isto com graves consequências de ordem penal e processual penal, dentre as quais aquelas atinentes ao benefício do sursis processual.

Como assevera Mariângela Gama de Magalhães Gomes “o princípio da igualdade significa a proibição, para o legislador ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe que a situações iguais corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado. Isto se dá uma vez que o princípio da igualdade não se refere, apenas, a direitos e deveres políticos, mas ordena ao legislador que preveja com as mesmas consequências jurídicas os atos que, em linha de princípio, sejam comparáveis, e lhe permita realizar diferenciações apenas para as hipóteses em que exista uma causa objetiva – pois caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá distinções arbitrárias”.[1]

É totalmente ilógico supor que a criação intelectual pertinente ao software disponha de valor inferior ao de outras criações intelectuais e, portanto, que o desvalor da conduta que a vulnere mereça reprimenda mais amena. Por outro lado, saliente-se que o princípio da especialidade não pode servir de desculpa ou pretexto para a quebra da isonomia do sistema.

Ora, à toda evidência, uma norma que tutela penalmente direito autoral, ou seja, direito exclusivamente patrimonial (que deveria, inclusive, ressalte-se, ser objeto exclusivamente de ação penal de iniciativa privada), não pode dispor da mesma pena mínima que, por exemplo, um homicídio simples tentado, uma indução a suicídio que se consuma, um infanticídio, uma lesão corporal gravíssima, ou um abandono de recém nascido com resultado morte; mais, não pode dispor de pena superior a um homicídio culposo, um aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, uma lesão corporal grave, ou um abandono de incapaz de que resulte lesão grave.

Fere completamente o senso de razoabilidade admitir-se tamanha disparidade. Quebra toda a lógica do sistema. Vejamos mais uma vez as precisas palavras de Mariângela Gomes: “Deve a atividade legislativa, desta forma, ser orientada pela racionalidade, uma vez que cabe ao legislador valorar racionalmente as diferenças e semelhanças entre os fatos a serem disciplinados, de modo que os resultados desta ponderação mostrem-se coerentes”.
Nos ensina Norberto Bobbio: “É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma e de outra... são violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existam duas normas antinômicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria”.[2]
Assim, necessária a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 10.695/2003, na parte em que amplia a pena mínima contida no preceito secundário do parágrafo 1º do artigo 184 do Código Penal, entendendo como vigorante a pena prevista para tal dispositivo pela Lei nº 8.635/1993, ou seja, reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de CR$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros) a Cr$ 50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros), marcando-se audiência para a apresentação de proposta de suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei nº 9.099/95).




[1] Magalhães Gomes, Mariângela Gama; O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal, Ed. Re-vista dos Tribunais, 1ª edição, 2003, pág. 67; 2 Idem; op.cit., pág. 67;

[2] Bobbio, Norberto; Teoria do Ordenamento Jurídico, Ed. Universidade de Brasília, 1ª edição, 1989, pág. 113


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