O texto abaixo é a primeira parte de um Habeas Corpus com o qual ingressei hoje, a última peça de meu segundo dia de plantão. Uma história interessante que me fez refletir muito. O Irmão Márcio estará em minhas orações hoje.
Deixando a boa técnica de lado, para ser mais fiel ao que sinto e dar à pena mais coração, é em primeira pessoa que relato como conheci Márcio Daniel de Souza Bezerra.
Peço também
licença aos mais formalistas para não utilizar, pelo menos neste capítulo,
termos como “acusado”, “apenado”, “reeducando”, “paciente” ou coisa que o
valha. Chamo Márcio Daniel pelo seu nome ou pela forma como o chamam as pessoas
próximas: Irmão Márcio.
Estava eu na
sala da Defensoria Pública no Fórum Varella Barca, na Zona Norte de Natal/RN.
Era quarta-feira dia 14/12/2011, um dos últimos dias antes do início do recesso
forense. Uma pilha enorme de processos exigia minha atenção. Meus três colegas
da Zona Norte estavam de férias ou de licença. O relógio corria inclemente e
até o almoço havia sido dispensado para tentar conseguir dar conta de tudo o
que tinha que fazer.
Eis que entra
na sala Márcio Daniel. Um rapaz bem-apessoado, de fala mansa e postura
tranquila, um pouco tímido, mas com um brilho diferente no olhar. Percebi que
Márcio Daniel usava a camisa de botões ensacada e quase completamente abotoada,
inclusive os punhos. Nas mãos ele trazia uma bíblia. Na cabeça ele trazia
dúvidas. No coração convicção.
“Olá, eu sou
Márcio. Aqui é a Defensoria Pública? O Doutor pode me ajudar?”
Apresentei-me,
pedi que sentasse e que me contasse sua história.
Márcio me
explicou que, há alguns anos, envolveu-se com péssimas amizades e ingressou no
inclemente e devastador mundo das drogas. Disse-me que, como um “favor” ao seu
fornecedor de drogas, permitiu que ele guardasse alguns bens em sua casa.
Observe-se que “favor” não é exatamente o termo correto, já que a negativa
seria um risco à integridade física de Márcio. Ele me explicou que, algum tempo
depois, a polícia bateu à sua porta e lhe informou que aqueles bens eram
roubados. Com medo de morrer, Márcio assumiu, na Delegacia, o roubo que não
cometera.
Márcio me
contou que, após “conseguir seu alvará”, mudou-se para outro Estado, abandonou
as drogas, fez um curso e passou a ser garçom. Mais importante, Márcio se
converteu e passou a ser conhecido como Irmão Márcio.
Há alguns
meses, a esposa de Márcio teve um acidente e ele voltou a morar em Natal/RN.
Fez novas e melhores amizades, passou a frequentar uma igreja local, contou sua
história ao pastor. Todos apostaram na mudança do agora Irmão Márcio. Ele agora
possui carteira de trabalho assinada. E, mais importante que tudo, Márcio vai
ser pai. Sua esposa está grávida de cinco meses.
No dia
anterior, Márcio havia sido procurado por um oficial de justiça e informado que
deveria comparecer na Secretaria da 4ª Vara Criminal da Zona Norte, “para se
defender”. Ele disse que, embora com medo de morrer, queria agora contar a
verdade.
Ouvi toda
aquela história com alguma incredulidade e um pouco ansioso para voltar ao
trabalho. Mas dei a Márcio a atenção que acredito ser meu dever em virtude de
minha função. Expliquei que ele precisaria de testemunhas para provar tudo que
me disse e que, em todo caso, ele ainda estava admitindo um crime – receptação,
embora menos grave que o roubo.
Resolvi
pesquisar o processo de Márcio no e-Saj. Praticamente não haviam documentos
lançados no sistema, mas o processo constava como julgado! Encontrei uma
certidão. Márcio havia sido condenado à revelia, a uma pena de seis anos, dois
meses e sete dias. Não havia informação quanto ao regime.
Com certa
dureza, informei a Márcio o que descobri. Disse, de forma contundente, que, se
ele comparecesse no dia determinado, seria preso. Ele já fora condenado e da
sentença já não mais cabia recurso. Observei que ele deveria vir munido de
produtos de higiene básica e alimentação. Expliquei que, em algumas prisões, o
Estado do Rio Grande do Norte sequer fornece papel higiênico aos presos.
Olhei o brilho
em seus olhos se ofuscar por alguns segundos. Márcio olhou para baixo, apertou
os lábios e parecia desnorteado. Seus olhos pareceram encontrar sua bíblia e,
de alguma forma, aquele brilho subitamente voltou.
Márcio olhou
para mim, sem chorar ou se lamentar e disse:
“Um homem que
renasce em Cristo não pode dever nada. Amanhã estarei aqui. Vou pagar o que devo.
Vou trazer tudo o que o senhor me recomendou. Vou trazer minha bíblia e vou
fazer a obra do senhor aonde me mandarem!”
Não esperava
aquela reação. Olhei para meus processos e olhei para aquela pessoa em minha
frente. Quantos daqueles encontrariam a redenção como Márcio parecia ter
conseguido? Poucos, certamente. Praticamente nenhum em virtude exclusivamente
da pena, já que nossa execução penal é bárbara e cruel.
Márcio me pediu
que explicasse a situação ao seu pastor. Ele mais ouviu que falou. Parecia mais
perturbado que Márcio.
No dia
seguinte, estava eu fazendo minhas audiências, absorto na defesa de outras
pessoas, quando avisto Márcio do outro lado do Fórum, com a bíblia debaixo do
braço, ladeado pelo pastor e pela esposa grávida. Ele sorriu e acenou para mim.
Devolvi o cumprimento um tanto triste, mas impressionado com a convicção
daquele rapaz.
Fui até a
Secretaria da 4ª Vara e pedi para que fosse registrado em certidão que Márcio
veio se entregar espontaneamente, já sabendo que estava condenado e cumpriria
pena. Encontrei todos emocionados com o rapaz. Lá fiquei sabendo que ele havia
sido condenado ao regime semi-aberto, o que lhe permitiria manter o emprego,
continuar visitando a Igreja e acompanhar a evolução da gestação de sua
filhinha.
Depois de
minhas audiências, fui até a carceragem do fórum visitar Márcio e, antes mesmo
de ver, ouvi sua voz. Ele conversava com dois presos que esperavam suas
audiências. “Deus pode mudar suas vidas. Deem a Ele uma oportunidade”, dizia o
Irmão Márcio.
A história de
redenção e injustiça de Márcio, no entanto, não acabou ali.
No rio Grande
do Norte, os condenados ao regime semi-aberto ficam presos, no regime fechado,
até que o juiz da Execução Penal tenha tempo de o ouvir e encaminhá-lo ao
regime correto. Em meio ao recesso forense, este encaminhamento deve ficar para
o ano que vem e Márcio passará o período festivo encarcerado, longe da Igreja,
da família, dos amigos e da filhinha por vir. Certamente perderá também o
emprego.
É visando corrigir esta
injustiça que decidi ingressar com o presente Habeas Corpus.
Para ler a íntegra do habeas corpus, clique aqui.
ATUALIZAÇÃO (15:10h):
O Habeas Corpus do Irmão Márcio foi distribuído para o Desembargador Amílcar Maia, o plantonista do dia. E ganhou o número 2011.017417-2.
O motorista que levou a petição ao Tribunal de Justiça, o amigo Gilmar Bezerra, evangélico como o Irmão Márcio, prometeu se juntar à corrente de orações.
ATUALIZAÇÃO (20:00h):
A liminar foi parcialmente deferida. A questão agora é ver o cumprimento em pleno recesso. Eis o que consta no site do TJRN:
Decisão do Relator - Deferindo a Liminar
(...) À vista do exposto, defiro, em parte, a medida liminar apenas para determinar que a autoridade coatora diligencie, com a máxima urgência, de modo a assegurar ao paciente o direito de cumprir sua pena em regime semi-aberto, que lhe foi imposto na sentença condenatória, ou, não sendo possível, para permitir que aguarde o paciente o surgimento de vaga em regime aberto, ou, ainda, em prisão domiciliar, na hipótese de inexistência de vaga em casa de albergado, isto até que lhe seja assegurada vaga no estabelecimento prisional adequado ao cumprimento de sua pena. Oficie-se à autoridade impetrada para que faça cumprir a presente decisão e preste informações necessárias, no prazo de 05 dias. Após, remetam-se os autos a PGJ. Oportunamente, proceda a Secretaria deste TJRN à distribuição do feito entre os membros da Câmara Criminal. P. I. C.
ATUALIZAÇÃO DE 28/12/2011:
Dia de peregrinação ontem.
Passei a manhã tentando entender porque a decisão do Desembargador ainda não tinha sido cumprida. Para tanto tive grande ajuda de Iana, do Pauta Zero, a servidora que estava no plantão em Natal/RN e que se dispôs a realizar diversos telefonemas e pesquisar o ocorrido. Chegamos à conclusão que a decisão tinha sido encaminhada por engano ao plantão de uma área diferente.
À tarde fui ao Tribunal de Justiça. Lá foram extremamente prestativos Pericles e Lucas, que imediatamente e sem burocratizar o problema, se dispuseram a encaminhar o ofício novamente. Tivemos uma certa dificuldade para compreender o trâmite durante o plantão, mas, após certo tempo, a decisão do Desembargador foi encaminhada ao Distribuidor Criminal. O cumprimento da decisão foi distribuída para o excelente juiz Rosivaldo Toscano que, ainda ontem, encaminhou a decisão ao Diretor do Raimundo Nonato, presídio onde o Irmão Márcio se encontra.
Aguardamos notícias sobre o cumprimento da decisão a qualquer momento.
5 comentários:
Tocante a história de vida desse rapaz.
Estamos acompanhando o caso do Irmão Márcio confiantes em um desfecho satisfatório. Atestamos a fidelidade das informações postadas pelo Dr. Manuel.
Plenamente Confiantes em Deus e acreditando no entusiamo do nobre defensor publico esperamos a adequação do regime do Irmão Márcio.
acompanhamos de perto eu i minha familia essa historia emocionante de coragem e superação de um joven que tinha apenas certeza de uma coiza, sua liberdade atravez da sua fé en jesus cristo, pois quando servimos a Deus temos que ter uma vida transparente diante de Deus e diante da sociedade. parabens pela vitoria de ambos.
ass: sandoval
Somos amigos do irmão Marcio e sua família. Somos gratos primeiramente a Deus pela vitoria, e ao Dr. Manuel Sabino pela sua atenção ao irmão Marcio, mas sabemos e temos plena convicção que ele foi um canal na mão do senhor. Porque Deus daz assim pra dar vitória, pega as coisas que não são pra confundir as que são.
Muito obrigada Dr. Manuel por entregar o seu coração para que Deus trabalhasse segundo a sua vontade, que o Espírito Santo faça morada no teu coração, deixa Jesus te guiar, que Deus te abençoes e tua familia esteja nos planos de Deus, e que vocês façam parte da familia de Cristo e tenham vida eterna, porque em breve iremos morar no ceu. JESUS ESTAR VOLTANDO. Amém
Infelizmente Márcio foi assassinado. Uma pena. Triste.
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