Não tenho nome, nem sobrenome ou endereço. Sou identificado pelo número 3527 na placa de um túmulo no cemitério da Vila Formosa, zona leste de São Paulo. Finalmente consegui os sete palmos de terra e o caixão! Cheguei aqui como um desconhecido, melhor, um indigente, após ter meu corpo virado, revirado e dissecado pelos peritos do Instituto Médico Legal (IML). Também não tenho idade nem família. Em vida, insistiam em me chamar de Menor ou Menor Abandonado. Fazia parte de uma galera de uns trinta, entre meninos e meninas, e nos escondíamos pelos becos escuros e pelos porões da cidade. Nosso negócio era o crack. De manhã à noite era uma luta para conseguir uma pedra, por pequena que fosse. Não custava tanto como a cocaína, mas sem dinheiro não se podia comprar.
Pela necessidade da droga tive que entrar no crime. De primeiro, bastavam pequenos furtos: carteiras, bolsas, tênis, jaquetas... Depois, o corpo exigia mais droga e, esta, mais dinheiro; passei a servir a rede do Primeiro Comando da Capital (PCC): assaltos a pessoas, carros, bancos, cheguei a trocar alguns tiros. Mas aquela coisa dentro de mim apertava cada vez mais, parecia devorar tudo e todos. O corpo precisava de crack e o crack de grana.
Foi aí que o dono do pedaço, um tal de Pezão, me chamou e confiou para assaltos mais ousados e perigosos. Até que chegou o dia em que fui obrigado a atirar no segurança de um banco. Não tinha alternativa, ou ele ou eu! Disparei, vi ele retorcer-se e fugi. Só mais tarde, pela TV, fiquei sabendo que o tinha matado. Eu me convertera num assassino. A ordem do Pezão era para me esconder por um tempo, “até a poeira baixar e o sangue secar”!
Pouco adiantou, a polícia descobriu logo o esconderijo. E aí entrei num túnel frio e escuro: gritos, murros, pontapés, cacetadas, coronhadas, interrogatórios e mais interrogatórios... Medo, fome, sede, ódio, abandono... Até cair numa cela em que a gente mal podia se mexer de tão lotada. Tinha que fazer rodízio para dormir um pouco. Não sei como o pessoal da pesada me tirou de lá. Só sei que de novo estava na rua, de novo na rede do PCC como um inseto na teia de aranha.
Tive pouco tempo para pagar o preço de minha soltura. Numa batida da polícia, tentei escapar, mas levei a pior: dois tiros pelas costas. Entrei num outro túnel, igualmente frio e escuro, só que desta vez sem volta. E aqui estou, a sete palmos abaixo do chão. No enterro, nenhuma alma sequer; nenhuma flor sobre a terra fofa. Reza? Apenas uma praga de um dos coveiros!
Agora tenho toda a eternidade, tanto para o passado quanto como para o futuro. Lembro, por exemplo, o dia triste em que saímos de Catolé do Rocha, sertão da Paraíba. Pai, mãe, quatro irmãos, deixamos para trás um casebre de pau a pique, sem uma palavra, sem uma pessoa para dizer adeus. Rumamos para a rodoviária; de lá, para Campina grande; depois, para São Paulo. Eu devia ter uns três ou quatro anos e, na época, me chamavam de Toninho.
Na capital paulista, tudo correu às avessas. Compadre Sebastião, que havia prometido a papai nos acolher por um tempo, nos enfiou num “puchado” de seu barraco sem janela nem banheiro. Pior ainda, o velho demorou a arrumar trabalho. Mainha tentava fazer faxina em algumas casas. Mas o mês era longo e o dinheiro curto. Sem o que fazer, o velho deu para beber, brigar e quebrar as coisas lá em casa.
Quando chegou o tempo da escola, aproveitei para escapar daquele inferno. Senti por Mainha e por Lucinda, mas não podia continuar. Logo topei com outros moleques da minha idade, e assim começou a vida de rua. Sempre havia alguém para nos oferecer um lanche e um buraco para nos esconder á noite. O mais difícil era o frio, um lugar para as necessidades e para tomar banho quente.
A droga foi chegando devagar. Cigarro, maconha, cocaína... Uma traga aqui, outra ali, até o encontro com o crack. Ficava uma sensação boa de esquecimento, e a coisa foi pegando, tomando a cabeça e o corpo. Quando me dei conta não tinha mais como voltar atrás. Aí mudei para a cracolândia, ante-sala do lugar em que estou. Se ao menos pudesse receber uma visita, uma flor e uma reza de Mainha!
Pe. Alfredo J. Golçaves - Assessor das Pastorais Sociais
Pela necessidade da droga tive que entrar no crime. De primeiro, bastavam pequenos furtos: carteiras, bolsas, tênis, jaquetas... Depois, o corpo exigia mais droga e, esta, mais dinheiro; passei a servir a rede do Primeiro Comando da Capital (PCC): assaltos a pessoas, carros, bancos, cheguei a trocar alguns tiros. Mas aquela coisa dentro de mim apertava cada vez mais, parecia devorar tudo e todos. O corpo precisava de crack e o crack de grana.
Foi aí que o dono do pedaço, um tal de Pezão, me chamou e confiou para assaltos mais ousados e perigosos. Até que chegou o dia em que fui obrigado a atirar no segurança de um banco. Não tinha alternativa, ou ele ou eu! Disparei, vi ele retorcer-se e fugi. Só mais tarde, pela TV, fiquei sabendo que o tinha matado. Eu me convertera num assassino. A ordem do Pezão era para me esconder por um tempo, “até a poeira baixar e o sangue secar”!
Pouco adiantou, a polícia descobriu logo o esconderijo. E aí entrei num túnel frio e escuro: gritos, murros, pontapés, cacetadas, coronhadas, interrogatórios e mais interrogatórios... Medo, fome, sede, ódio, abandono... Até cair numa cela em que a gente mal podia se mexer de tão lotada. Tinha que fazer rodízio para dormir um pouco. Não sei como o pessoal da pesada me tirou de lá. Só sei que de novo estava na rua, de novo na rede do PCC como um inseto na teia de aranha.
Tive pouco tempo para pagar o preço de minha soltura. Numa batida da polícia, tentei escapar, mas levei a pior: dois tiros pelas costas. Entrei num outro túnel, igualmente frio e escuro, só que desta vez sem volta. E aqui estou, a sete palmos abaixo do chão. No enterro, nenhuma alma sequer; nenhuma flor sobre a terra fofa. Reza? Apenas uma praga de um dos coveiros!
Agora tenho toda a eternidade, tanto para o passado quanto como para o futuro. Lembro, por exemplo, o dia triste em que saímos de Catolé do Rocha, sertão da Paraíba. Pai, mãe, quatro irmãos, deixamos para trás um casebre de pau a pique, sem uma palavra, sem uma pessoa para dizer adeus. Rumamos para a rodoviária; de lá, para Campina grande; depois, para São Paulo. Eu devia ter uns três ou quatro anos e, na época, me chamavam de Toninho.
Na capital paulista, tudo correu às avessas. Compadre Sebastião, que havia prometido a papai nos acolher por um tempo, nos enfiou num “puchado” de seu barraco sem janela nem banheiro. Pior ainda, o velho demorou a arrumar trabalho. Mainha tentava fazer faxina em algumas casas. Mas o mês era longo e o dinheiro curto. Sem o que fazer, o velho deu para beber, brigar e quebrar as coisas lá em casa.
Quando chegou o tempo da escola, aproveitei para escapar daquele inferno. Senti por Mainha e por Lucinda, mas não podia continuar. Logo topei com outros moleques da minha idade, e assim começou a vida de rua. Sempre havia alguém para nos oferecer um lanche e um buraco para nos esconder á noite. O mais difícil era o frio, um lugar para as necessidades e para tomar banho quente.
A droga foi chegando devagar. Cigarro, maconha, cocaína... Uma traga aqui, outra ali, até o encontro com o crack. Ficava uma sensação boa de esquecimento, e a coisa foi pegando, tomando a cabeça e o corpo. Quando me dei conta não tinha mais como voltar atrás. Aí mudei para a cracolândia, ante-sala do lugar em que estou. Se ao menos pudesse receber uma visita, uma flor e uma reza de Mainha!
Pe. Alfredo J. Golçaves - Assessor das Pastorais Sociais
Nenhum comentário:
Postar um comentário