sábado, 16 de outubro de 2010

Blog Mari Fuxico em 06/10/2010: "Defensoria Pública e Direitos Humanos"

Artigo de Dr. Fernando Enéas de Souza, Defensor Público da Paraíba

A Defensoria Pública - ao conquistar, depois de renhido histórico de lutas - o poder de manejar a tutela coletiva - até então prerrogativa apenas do Ministério Público, como mecanismo efetivo de ação de massas, atinge uma dimensão subjetiva e objetiva extraordinária, histórica, célere, habilitando-se às grandes questões referentes às macro lesões sociais.

E não poderia ser diferente. Eis que na atual conjuntura nacional, se constatam que 95% dos processos penais e 85% dos processos cíveis estão afetos diretamente aos Defensores Públicos.

Com a histórica conquista, a DP se insere na dimensão dos interesses em litígio e ultrapassa o tradicional e clássico individualismo ora vigente.

E não acaba aqui.
O novo Código de Processo Civil brasileiro está a caminho.

Vem para substituir o ultrapassado, autoritário e limitado CPC de 1973.

Lembremos que àquela época, o regime de exceção de 64, convidou o Ministério Público a ter assento neste Códex da Ditadura Militar:

O Novo CPC deve atender às aspirações e necessidades instrumentais dessa nova Defensoria Pública brasileira.

Acabando-se definitivamente com esse modelo de piedade e dó, de redução do Defensor Público àquela desconfortável condição de submisso à vontade de juízes e serventuários, para transformá-lo, sim, definitivamente, em um padrão de respeito e consideração, sem sobressaltos de preclusões ou fórmulas processuais ortodoxas inaceitáveis para um defensor de massas.

E prosseguem as conquistas - de âmbito coletivo da DP, com o advento da Lei 11.448/07 – igualmente, até então, uma prerrogativa apenas do MP - a Defensoria Pública agora passará a poder defender os interesses coletivos dos preso.

Configura-se com as monumentais conquistas, a afirmação da DP, como instrumento de substancia essencial, no combate a exclusão da grande maioria da população brasileira, privada de direitos sociais básicos essenciais à sua cidadania.

Entenda-se que a dimensão de grupo, categoria e classe evidenciam o ser humano coletivamente identificado na sociedade de massa para a conquista de mais direitos relacionados à saúde, trabalho, educação, consumo, segurança, transporte, alimentação, controle da poluição, dentre muitos outros, agora ao alcance da tutela dos nossos Defensores Públicos.

Os conflitos já não envolvem mais as pretensões isoladas de um indivíduo versus o outro indivíduo.

Surgem, em nosso horizonte, os interesses meta-individuais, também denominados de trans-individuais, já que transcendem a esfera individual do ser humano, atendendo aos anseios e interesses de toda uma coletividade.

A conquista da DP ganha foros de marco dimensional, uma vez que a crescente marcha da sociedade moderna provoca a busca de novos instrumentos processuais para fomentar o acesso à justiça e a garantia efetiva de direitos da pessoa humana.

Histórica e sociologicamente, o direito coletivo em sentido amplo é verdadeiro instrumento de efetivação do direito material; é o pilar de sustentação da ordem jurídica justa, promovendo, assim, o acesso universal à Justiça, com celeridade, economia e sempre buscando a efetividade das decisões tomadas.


Segundo Carlos Weis:

“O surgimento da teoria dos interesses transindividuais advém da preocupação com a “questão social”, decorrente do surgimento da “sociedade de massa”, em que a maioria das relações econômicas e políticas é marcada pelo desaparecimento da individualidade do ser humano, diante da padronização dos comportamentos e das regras correspondentes. Na realidade, a relação não mais se estabelece com o indivíduo, mas com grupos mais ou menos imprecisos de pessoas, todas unidas por se encontrarem na mesma situação, jurídica ou fática.”.

O doutrinador Raimundo Simão de Melo enfatiza:

“São chamados de transindividuais ou metaindividuais certos interesses ou direitos pelo fato de que os mesmos transcendem a esfera privada e pessoal do indivíduo porque não pertencem a uma só pessoa. São direitos de todos os cidadãos dispersamente considerados na coletividade; a lesão de um constitui a ofensa a toda a coletividade, assim como a satisfação de um também implica a satisfação de todos, daí a sua indivisibilidade como marca principal norteadora do procedimento de tutela dos mesmos.”

A definição dos direitos e interesses meta individuais apareceu com o artigo 81 da Lei n. 8.078 de 1990, conhecida como o Código de Defesa do Consumidor, assim disciplinando-os:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.


Cappeletti:

[...] a summa diviso aparece irreparavelmente superada diante da realidade social de nossa época, que é infinitamente mais complexa, mais articulada, mais ‘sofisticada’ do que aquela simplista dicotomia tradicional [...] o ar que respiramos não é meu, nem seu, é de todos e de ninguém, ao mesmo tempo. Não é do indivíduo, nem do Estado.

Ademais, em nosso país uma das primeiras leis a dispor sobre tutela coletiva foi a n° 1.134/50, que trazia a legitimidade para a representação coletiva ou individual dos associados da classe dos funcionários ou empregados de empresas industriais da União, entre outras; posteriormente o Estatuto da OAB n° 4.215/63 trouxe a legitimidade no artigo 129 para a instituição agir em nome próprio e, em matéria trabalhista, a Lei n° 6.708/79 permitiu aos sindicatos a apresentação de reclamações trabalhistas em nome de grupos de trabalhadores, como substitutos processuais.

Desta forma, o movimento de modernização e ruptura do processo civil tradicional dinamizou o sistema jurídico coletivo com mecanismos significativos para fomentar a democratização do acesso e tornar mais célere o processo, como ocorre atualmente no procedimento da tutela coletiva inibitória, da ação civil pública e coletiva, do mandado de segurança coletivo, da ação popular, da própria antecipação dos efeitos da sentença, com procedimentos mais rápidos e menos burocráticos, além da estruturação dos juizados especiais, estruturação dos Tribunais, entre outras mudanças que ainda necessitam de muitos reparos, mas que iniciam uma nova fase com as Leis n° 4.717/85 (Lei de Ação Popular), n° 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), entre outros.

O meio instrumental coletivo é hoje um importante meio de solução de lesões de massa, tendo por fundamento, por exemplo, a defesa de interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, conforme conceituação supra, vindo expresso no artigo 81, da Lei n. 8.078 de 1990. Tal perspectiva objetiva atingir e garantir a relevância social do bem tutelado e a preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana.

A coletivização da solução judicial surge também como meio de se buscar a esperada celeridade processual, conforme regramento trazido pela Emenda Constitucional 45 de dezembro de 2004, que inseriu o inciso LXXVIII no artigo 5°, da CF/88, potencializando a universalização do acesso, além de se evitar a tomada de decisões conflitantes, o que poderia facilmente causar o desprestígio do Poder Judiciário.

Contudo, a melhora na compreensão sobre a tutela jurisdicional coletiva, partindo do pressuposto de que ela deve ser tratada não como um direito processual tradicional, ou individual, mas como um direito coletivizado e moderno, útil para o deslinde de macro lesões, por isso eminentemente coletivo deve ser o direito processual, deixando as normas do processo individual como um “soldado de reserva”.

Tal dinamização e compreensão no intuito de tornar tal tutela coletivizada mais efetiva auxiliam o acesso à justiça, já que temos um forte instrumento de realização de direitos, mas muitas vezes não possuímos munição compatível para a utilização do meio inserido no sistema ou treinamento suficiente para o seu uso.

Necessário salientar que o dissídio coletivo evita milhares de pessoas litigando num mesmo pólo, mas para isso algumas barreiras devem ser destruídas, como é o caso de discussões cerebrinas sobre a legitimidade para agir, a produção de efeitos subjetivos e objetivos da coisa julgada, a competência para o ajuizamento, a intervenção de terceiros, dentre outros temas que merecem estudos específicos, pois fogem do tema tratado.

Neste sentido, acesso ou acessibilidade também significa pessoas litigarem em juízo sem obstáculos que lhe impeçam meios de efetivarem direitos materialmente garantidos, o que não é muito bem aceito na tutela coletiva, quando, por exemplo, existe a intenção de se tentar aumentar o rol de legitimados para ações coletivas, ou mesmo na adoção da representatividade adequada na sistemática processual coletiva.

A mentalidade, portanto, deve ser alterada para a efetiva transição do tradicional processo ao moderno meio de solução de conflitos de interesse e para tanto a Defensoria Pública se faz presente a tarefa com a sua predestinação natural a cidadania.

Calemos Ovídio na sua máxima “curia pauperibus clausa est”, para abrir as portas da Justiça às mulheres e homens - jovens, velhos, crianças... e todos aqueles que ostentam a condição desigual, nessa cruel sociedade dividida em classes sociais. Sociedade de castas, onde somente uns poucos privilegiados têm assento à mesa farta em detrimento da esmagadora maioria da população.

E que calem os adversários da Defensoria Pública!

A Defensoria veio para calar a voz agourenta dos fariseus e fazer história em defesa dos excluídos.

Uma vê iniciada a marcha da DP, nada poderá obstacular o seu curso histórico-irreversível, em beneficio das mais amplas massas que constituem o laborioso povo brasileiro.

Fonte: Blog Mari Fuxico

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