Ao
final de cada sessão do tribunal do júri que presido, ao agradecer aos jurados,
sempre destaco, visto que sempre fazem uma cara de desagrado quando são
sorteados e aceitos pela defesa e promotor de justiça, que participar de uma
sessão do júri é um grande aprendizado, pois é uma oportunidade única para
conhecer uma história de vida e morte. Além disso, é a oportunidade de também
julgar, de manifestar um entendimento sobre uma ação que resultou na morte de
uma pessoa. De fato, isto é um privilégio.
Em
mais de 20 anos de magistratura, já perdi a conta de quantos crimes julguei
como juiz singular e quantas sessões do tribunal do júri já presidi em todas as
comarcas que trabalhei. Já absolvi e já condenei e evidente que cada caso é um
caso, mas julgar crimes é sempre um desafio especial. Maior ainda quando se
julga homicídios, ou seja, quando uma pessoa mata outra pessoa.
Na
verdade, as ações é que são julgadas, os crimes praticados pelos réus. Aqui
entra aquela velha discussão entre o Direito Penal do Fato ou Direito Penal do
Autor, ou seja, julga-se uma conduta ou o autor daquela conduta? Evidente que
se deve julgar a conduta, mas é impossível ao julgador, por também ser humano, desconsiderar
absolutamente a pessoa que está sendo julgada. O problema consiste na visão do
julgador sobre esta, ou seja, trata-se de uma pessoa humana ou um bandido? Isto
é determinante. Esta inevitabilidade, a meu ver, da consideração da pessoa no momento
do julgamento pelo julgador, revela sua própria humanidade, suas paixões, seu
lugar no mundo, seu horizonte histórico e, sobretudo, sua sensibilidade e compreensão
do humano. Cai por terra, neste exato momento, a meu ver, o mito da
neutralidade/imparcialidade. Por fim, embora custemos a admitir, é o
subjetivismo do julgador que irá definir entre o mínimo e o máximo da pena, por
exemplo.
Um
dos casos que mais me marcou, contraditoriamente, foi o que não julguei. O
representante do Ministério Público, embora comprovada a materialidade,
requereu o arquivamento do Inquérito Policial. Está estranho? Então, vamos
começar do começo.
Dois
jovens amigos, domingo pela manhã, depois de trabalharem pesado toda a semana
na roça, resolveram beber em um boteco que ficava na praça do povoado. Receberam
o pagamento na mesma manhã e, sendo solteiros e descompromissados, não tinham
qualquer preocupação com o dia seguinte. Apenas o prazer da bebida, da
embriaguez pura e simples. Falaram de tudo naquela manhã. Da semana de
trabalho, do tempo, das pessoas da comunidade... Beberam apenas um tipo de bebida
que naquela região chamava de “rabo de
galo”, uma mistura de pinga com “jurubeba
leão do norte” - Vinho tinto seco de uvas, macerado
de frutas de Jurubeba, extratos de cravo, canela, quássia, boldo e genciana,
xarope de açúcar, álcool etílico potável e caramelo de milho. A Graduação
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Beberam uma, duas, três garrafas de jurubeba “batizadas” com pinga. O sol subiu e
passou do meio dia quando resolveram sair do boteco para sentarem em um banco de
madeira embaixo de um “pé de algaroba”
em frente ao mesmo boteco. O vento era pouco e o calor seco e sufocante. Nada
comeram desde a manhã e, na verdade, comeram pouco e mal durante toda a semana.
Agora importava beber e se embriagar. A vida naquele fim de mundo, para dois
jovens analfabetos e trabalhadores de roça, resumia-se neste prazer fugaz,
apesar da terrível ressaca no dia seguinte.
Perto das três horas da tarde, quando já tinham perdido o que
chamamos de sobriedade, pediram ao dono do boteco uma lata de sardinhas em
conserva e uma cumbuca de farinha seca. Misturaram tudo em um prato esmaltado
de branco e depois de poucas colheradas, a irmã de um deles, moça virgem de
pouco mais de 15 anos de idade, cruzou a praça do povoado, de sua casa para a
casa de uma amiga, sob olhar atento dos dois amigos. Com o calor, a moça usava
uma blusa que praticamente só lhe cobria os seios arredondados e firmes. O short que usava era pequeno e justo. Os
pés descalços pisavam rápido na terra quente, quase saltitando. Um quase rebolado
ao mesmo tempo ingênuo e sensual. Por isso, mesmo sem vento algum, seus cabelos
pretos faziam um movimento harmônico e gracioso.
O amigo tomou mais uma dose de “rabo de galo” e agora estava também embriagado com a beleza da
moça e seu caminhar. Preparou uma colherada de farinha com sardinha e parou com
a colher a pouca distância da boca. Olhou mais uma vez para a moça e, sem olhar
para o amigo, disse naturalmente: “sua
irmã tá muito gostosa”! Terminou de levar a colher à boca e a reação do amigo,
irmão da moça, enquanto fazia descer goela abaixo a farinha com outra dose de “rabo de galo”, foi imediata: “respeite minha irmã, cabra”! Depois
disso, trocaram mais alguns insultos e cada um se armou das facas que tinham
deixado antes em um banco de madeira, ainda nas bainhas, no interior do boteco.
Alguns correram para longe e outros para perto. Formou-se uma roda. Uns pediam
para pararem e outros para brigarem.
O
laudo cadavérico apontou que um tinha quatro perfurações e o outro cinco
perfurações. Foram sepultados no dia seguinte, em covas próximas, no mesmo
cemitério do povoado. As famílias mal se olharam e os moradores do local
encararam quase com naturalidade. Morria e matava-se muito por aquelas bandas.
O normal ali, entre os jovens, era morrer de morte matada.
O
Delegado instaurou o Inquérito Policial e sugeriu que algumas pessoas incitaram
a briga. O promotor de justiça, então, requereu o arquivamento do Inquérito,
com o que concordei. Nas fotografias do Inquérito, dois corpos caídos, ensanguentados,
uma faca ao lado de cada corpo, em uma praça deserta, sem qualquer atrativo...
Ao fundo, uma pequena igreja.
Voltando,
agora, ao começo da conversa, pensei vários dias sobre o ocorrido e ainda hoje
busco explicações para o fato de dois jovens, colegas de trabalho e de bebida,
por motivo de um deles ter chamado a irmã do outro de “gostosa”, terem se esfaqueado até a morte. De início, como todos
os ouvidos no Inquérito, demonizei e culpei a bebida: só aconteceu porque beberam e estavam bêbados... Depois, passei a
questionar se a bebida e a embriaguez, de fato, teriam sido a causa ou também a
consequência, como a briga, de outros fatores que ainda não domino. De outro
lado, qual o papel do ciúme – se é que houve de fato e de quem em relação a
quem – no caso? Ainda não tenho essas respostas, mas continuo entendendo que elas
são fundamentais, em tantos outros para crimes, para compreensão da alma humana
e para a busca de um julgamento mais próximo da justiça.
Nesta
mesma Comarca, em outro processo, tempos depois, terminada a audiência de outro
caso, puxei conversa com um morador do mesmo povoado, testemunha no processo, senhor
de mais de 70 anos, e jamais esqueci do que ele me disse: “s’incomode não, dotô, eles beberam o dia todo, tavam bebos e acho que
ainda nem sabem que já estão mortos”. Saber-se vivou ou morto, por fim, é
uma questão que desde então me intriga. Da mesma forma, embora me esforce para
julgar crimes com imparcialidade, não consigo deixar de encontrar pessoas vivas
e pessoas mortas por trás dos crimes que julgo.
* Juiz de
Direito, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), em 15.09.2011
Fonte: Blog de Gerivaldo Neiva.
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