Os argumentos
apresentados neste capítulo, em sua quase totalidade, são de mérito do Defensor público Fernando Calmon
(clique aqui para conhecer seu artigo).
1. Necessidade da iniciativa privada para a ação penal pública pelo crime de violação de direitos autorais.
1.1.
Peculiaridade dos crimes patrimoniais sem violência[1].
1.1.1. Introdução do problema.
Embora
o sistema jurídico deva ser um todo único, infelizmente não é pouco comum o
surgimento de normas que guardam contradição e/ou desproporcionalidade.
Embora
a Constituição Federal garanta o direito de propriedade (art. 5º, XXII), bem
como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), o
legislador penal tipifica inúmeros crimes e decide, de forma discricionária e
desarrazoada, a quem caberá a iniciativa da ação penal, o que pode constituir,
em determinadas situações, em uma afronta aos direitos da própria vítima.
1.1.2. Dos Direitos Disponíveis.
Numa
concepção civilista, bem jurídico também pode ser conceituado como coisa
material ou imaterial apropriável, útil à pessoa humana e revestida de valor
econômico que pode ser objeto de uma relação jurídica. Paulo Nader sustenta uma
diferenciação entre bem e coisa, sendo aquele considerado gênero, porquanto
pode comportar objetos sem valor econômico, enquanto,
este, espécie, uma vez que se refere somente a objetos
corpóreos[2].
Welzel doutrina que “o bem jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao
seu significado social, é juridicamente protegido”[3].
Nas palavras de Toledo, “é tudo que nos apresenta como
útil, necessário, valioso”[4].
Por
outro lado, em uma concepção pura do Direito Penal, lecionam Zaffaroni e
Pirangeli, que “bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade
de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse
mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”[5].
Portanto, o bem jurídico que se protege “não é a propriedade, e sim o direito
de dispor dos próprios direitos patrimoniais”.
A
Constituição Federal assegura o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e a lei
civil dispõe que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da
coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou a detenha (art. 1228). Tal propriedade se presume
plena e exclusiva, até prova em contrário (art. 1231).
A
propriedade é um fato absoluto, erga omnes, pleno,
conferindo ao titular o “poder de decidir se deve usar a coisa, abandoná-la,
aliená-la, destruí-la e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo, por
desmembramento, outros direitos
reais em favor de terceiros”[6].
Limitando-nos a tratar de coisas apropriáveis, úteis e de valor
econômico, que podem ser de alguma forma objeto de subtração, usurpação,
destruição, dentre outras condutas dos tipos elencados nos
crimes contra o patrimônio, podemos
concluir, com segurança, que uma característica qualificada do poder inerente à
propriedade e a posse é a disposição.
Pode-se
dispor da propriedade por diversas formas e, dentre elas, pela renúncia (art.
1275, II). Ou seja, na melhor descrição de Orlando Gomes, “ato pelo qual o
proprietário declara explicitamente o propósito de despojar-se do seu direito.
Independe do abandono material da coisa. Para valer, não necessita de aceitação
de quem quer que seja. É nimiamente um ato unilateral. Mas para produzir efeitos, mister se faz, em nosso
direito, que o ato renunciativo seja transcrito no Registro de Imóveis. A
renúncia da propriedade dos bens móveis não está
subordinada a qualquer exigência para a sua eficácia”[7].
Assim,
se constitucionalmente temos a garantia do direito de
propriedade, na mesma gradação temos o direito de
renunciar à propriedade, constituindo-se, também e por derivação, em uma
garantia de concepção constitucional, porquanto inerente à própria natureza da
disponibilidade do instituto da propriedade. O exercício do direito de ter ou
não ter (direito subjetivo), desde que não viole comando normativo, não pode
sofrer qualquer limitação, sendo da mesma forma absoluto, não guardando, por
consequência, qualquer dependência de autorização ou aceitação de terceiros.
1.1.3. Dos crimes contra o patrimônio.
Os
crimes contra o patrimônio estão organizados no Título II do Código Penal, em
sete capítulos (furto, o roubo e a extorsão, a usurpação, o dano, a apropriação
indébita, o estelionato e outras fraudes e a receptação) comportando trinta e
quatro tipos penais. Este título trata da subtração de bens físicos, corpóreos.
No
universo dos crimes contra o patrimônio, encontramos penas que variam o seu
mínimo de 15 dias, no caso do crime de outras fraudes, previsto pelo art. 176,
para o mínimo de 24 anos, quando ocorre a extorsão
mediante sequestro seguido de morte, disposto na
segunda parte do §3º do art. 159. Podemos encontrar
também crimes de ação penal pública, pública condicionada e privada.
A
mais enfática das inúmeras incoerências deste Título do Código Penal, dentre
tantos tipos penais, é o
furto. Trata-se de uma conduta tão antiga quanto o próprio direito de
propriedade, de grande repercussão histórica, moral e religiosa,
porquanto sua proibição já constava nos dez mandamentos e no Código de Hamurabi (datado de por volta de 1.700 a.C.).
No
entanto, tal conduta, em comparação com alguns outros crimes contra o patrimônio, demonstra uma reprovabilidade
exacerbada e sem nenhuma explicação aparentemente jurídica. Talvez sociológica
ou cultural, mas não jurídica.
Com
se não bastasse a desproporcionalidade da pena entre, por exemplo, o furto (01
a 04 anos) e a alteração de limites (01 a 06 meses), saliente-se que este é
crime de menor potencial ofensivo, e o furto não. A pena daquele é de detenção
e deste de reclusão. A prescrição em abstrato do crime de furto é de oito anos (art. 109, IV) e da alteração de limites de apenas dois
anos (art. 109, VI).
Percebe-se,
em uma escala de valores, que o Código Penal empresta maior reprovabilidade à
conduta do furto do que a de alteração de limites, apesar de ambas serem uma
forma de subtração/apropriação de coisa alheia. No entanto, observe-se que o
crime de alteração de limites, normalmente, é mais danoso à vítima, além de
implicar conflito entre vizinhos, com potencial para gerar graves
consequências.
Por
sua vez, o crime de esbulho possessório (art. 161,
II), que se revela com a invasão, mediante violência ou grave ameaça ou
concurso de mais de duas pessoas, a terreno ou edifício alheio (bem imóvel),
também é reprimido com a mesma pena da alteração de limites. O Código Penal
decreta que a subtração simples de coisa móvel é definitivamente mais grave que
a invasão a imóvel com o fim de usurpar, mesmo se cometido com violência ou
grave ameaça. Contra essa patente ausência de lógica, não há argumentos.
Seria
determinante, então, o fato de que o sujeito ativo do furto normalmente se atém
aos elementos marginalizados, sem importância social, e que, em regra, não são
proprietários de imóveis? É possível.
Apesar de existir furto de obras de artes de grande valor econômico, obviamente
o imaginário social conecta a figura do ladrão a algo biltre, reles, vil. Por
outro lado, para se apropriar de um bem imóvel, alterando limites, pressupõe-se
que o autor do fato não é marginal, mas proprietário de terra e o mais grave,
vizinho do lesionado.
O
furto também é marginalizado com relação ao crime de dano, ou seja, destruir,
inutilizar ou deteriorar coisa alheia (art. 163), que na sua forma simples
prevê a pena de detenção de 01 a 06 meses, idêntica à alteração de limites.
Desse modo, se alguém subtrair coisa alheia que posteriormente
for encontrada e restituída ao proprietário, configurando, no entanto, a
consumação do crime de furto, será apenado com reclusão de 01 a 04 anos. Se, no entanto, em vez da subtração, o agente resolver
destruir o mesmo objeto, que nunca mais terá utilidade para o seu dono, que
perderá, assim, a possibilidade de usar, gozar ou
dispor do seu bem (ofensa real ao direito de propriedade constitucionalmente
assegurado), a pena mínima é será de 1/12 e a máxima de 1/8 da pena do crime de
furto.
É
interessante, também, destacar que o objeto material do crime de dano tanto
pode ser a propriedade móvel como imóvel, diferentemente do furto. Além do mais
se o dano for cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; com emprego de
substância inflamável ou explosiva; contra o
patrimônio público, de concessionária de serviço público ou sociedade de
economia mista, ou, ainda, por motivo egoístico com prejuízo considerável para
a vítima (art. 163, parágrafo único), a pena mínima continua sendo somente a
metade (seis meses) do crime de furto simples ou ¼ da pena mínima do furto
qualificado (art. 155, §4º). Trata-se de uma desproporção igualmente
inexplicável.
Afinal,
é possível sorver cada palavra pregada por Cesare
Beccaria[8],
desde o século XVIII, incomodado com a demora na reação do Estado a problemas
que com nitidez são identificados, e que até hoje
depende de uma postura mais ativa da sociedade no
sentido de enfrentamento dessas graves questões. Nada do que foi escrito por
Beccaria, é resultado de uma mera coincidência:
"Um roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena
pecuniária. É justo que quem rouba o bem de outrem, seja despojado do seu.
Mas,
se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero, se esse delito
só é cometido por essa classe de homens infortunados,
a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) só
deixou a existência como único bem, as penas pecuniárias contribuirão
simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o número de indigentes, arrancando o
pão a uma família inocente, para dá-lo a um rico talvez criminoso.
(...)
O
roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos
absolutamente diferentes; e a sã política deve admitir, ainda mais do que as
matemáticas, o axioma certo de que entre dois objetos
heterogêneos, há uma distância infinita.
Essas coisas foram ditas, mas é sempre útil repetir
verdades que jamais se puseram em práticas. Os corpos políticos conservam por
muito tempo o movimento recebido; é, porém, moroso, imprimir-lhe
um novo movimento".
1.1.4. Dos crimes contra a propriedade imaterial.
Logo
em seguida aos crimes contra o patrimônio, no Título III, sob o título “Dos
Crimes Contra a Propriedade Imaterial”. Neste título, originalmente composto
por quatro capítulos e dezenove tipos penais, resta apenas o crime de violação
de direito de autor. Os demais crimes foram substituídos por previsões
específicas constantes na Lei 9.279/1996, que regula a propriedade industrial.
Corpóreo
ou imaterial, a objetividade jurídica de todos estres crimes é proteger o
direito de alguém possuir bens. Portanto, são crimes correlatos, distintos
entre si quanto à conduta do agente e quanto à forma como o patrimônio de
alguém é lesado.
Nos
crimes contra a propriedade imaterial previstos na Lei 9.279/1996, as penas
variam de um mínimo de um mês (como no crime contra patente) a três meses (como
no crime contra registro de marca). A pena máxima mais alta é um ano (como nos
crimes de concorrência desleal). Todos os crimes são de competência dos
Juizados Especiais. Todos os crimes são de ação penal privada, com exceção do
crime previsto no art. 191, onde é tipificada a conduta de utilizar sem
autorização símbolos oficiais nacionais, estrangeiros ou internacionais.
Repita-se: o único crime contra a propriedade imaterial previsto na Lei
9.279/1996 que não é de ação penal privada é justamente aquele em que a vítima
não é uma pessoa privada, mas Estados.
Diferente
fenômeno ocorre no crime contra a propriedade imaterial remanescente do Código
Penal, justamente a violação de direito autoral. Em sua forma simples, no caput
do art. 184, a violação de direito autoral é crime de ação penal privada e de
competência dos Juizados Especiais, com pena de 03 meses a 01 ano, totalmente
compatível com os crimes previstos na Lei 9.279/1996. No entanto, se houver
intenção de lucro e se tratar de obra audiovisual, a pena dá um incrível salto
para 02 a 04 anos e o Ministério Público deve proceder a acusação
independentemente até mesmo de representação, esdruxulamente tutelando o
direito patrimonial de artistas famosos e grandes corporações.
Observe-se
que, a rigor, não há diferença significativa entre os crimes da Lei 9.279/1996
e a chamada “pirataria” de obra audiovisual. Nada justifica tratamento tão
diferenciado.
A
Lei 9.279/1996 trata, por exemplo, de: crime contra patente, invenção ou modelo
de utilidade (art. 183), com pena de 03 meses a 01 ano de detenção, ou multa;
crime contra registro de desenho industrial (art. 188), com pena de 01 a 03
meses de detenção, ou multa; entre outros.
Por
outro lado, fenômeno interessante se observa.
Os
crimes contra a propriedade imaterial do Código Penal que foram revogados pela
Lei 9.279/1996 tiveram suas penas abrandadas. Por exemplo, o antigo crime de
violação de privilégio de invenção possuía pena de 06 meses a 01 ano e multa.
Com a nova lei, passou a pena a ser de 03 meses a 01 ano, ou multa.
Por
outro lado, provavelmente em decorrência dos pesados lobbys dos artistas e
grandes corporações ligadas à mídia audiovisual, a pena de violação de direito
do autor que a estes grupos interessava, a pena mínima foi exasperada de um
para dois anos, justamente afastando este tipo de conduta dos juizados
especiais.
Não
se trata aqui de mera inconsistência, mas de ofensa descarada ao princípio da
proporcionalidade e da isonomia. Não é admissível a manutenção destas
disparidades, como também não é admissível que as grandes corporações utilizem
o Ministério Público como seus advogados particulares.
1.2. Da Iniciativa da Ação Penal.
O
direito de agir (subjetivo) para exigir que o Estado aplique o direito
(objetivo), diante de uma transgressão aos limites impostos por uma norma
comportamental, só é possível com o exercício do devido processo legal
(garantia constitucional), consubstanciando-se, ao final, no direito estatal de
punir. Mirabete assegura que “sendo o crime um fato que lesa direitos do
indivíduo e da sociedade, cabe ao Estado reprimi-lo com o exercício do jus
puniendi. O direito subjetivo de punir, que é mais o dever de punir, não é
ilimitado, vinculando-se o Estado ao direito objetivo, tanto na imputação, circunscrita
aos fatos típicos, como nas penas a serem aplicadas. Além disso, para exercitar
o direito de punir é necessário que haja processo e julgamento, já que não pode
o Estado impor, arbitrariamente, a sanção”.[9]
A
legitimidade ativa ad causam para o exercício da ação penal, segundo o
nosso ordenamento, possui três formas: a iniciativa pública incondicionada; a
pública condicionada e a privada. A regra estabelece que a ação penal seja
sempre de iniciativa pública, promovida pelo Ministério Público, salvo quando a
lei a declara privativa do ofendido (art. 100). A lei também deve ser expressa
quando a ação do Ministério Público exige representação do ofendido (art. 100,
§1º).
Nos
crimes patrimoniais, existe a possibilidade de se iniciar uma ação penal de todas
as três formas permitidas. Tomando o direcionamento da regra do artigo 100 do
Código Penal ou do artigo 24 do Código de Processo Penal, ou seja, pela
exceção, se inicia uma ação penal condicionada à representação apenas nos
crimes de furto de coisa comum (§2º do art. 156) e outras fraudes (parágrafo
único do art. 176). Já a iniciativa por ação penal privada é permitida
expressamente nos crimes de alterações de limites, usurpação de águas e esbulho
possessório, quando não forem cometidos com violência (§3º do art. 161); dano
simples, dano qualificado cometido por motivo egoístico ou com prejuízo
considerável para a vítima e a introdução ou abandono de animais em propriedade
particular (art. 167); e, por fim, fraude à execução (parágrafo único do art.
179). Nos demais, para todos os crimes, a iniciativa é sempre pública
incondicionada.
Há
de se indagar qual foi o critério que o legislador elegeu para considerar que
um crime contra o patrimônio possa ter a iniciativa da ação penal
incondicionada, condicionada à representação ou privada. Se a primeira hipótese
é a regra, o que importa na diferenciação das demais? Quais são os argumentos
que embasaram essa determinação?
Certamente
podemos, desde logo, afastar os casos de crimes complexos, onde se protege dois
ou mais bens jurídicos, como, por exemplo, nos casos de roubo (art. 157),
extorsão (art. 158) e extorsão mediante sequestro (art. 159), em que o objeto
jurídico, além do patrimônio (propriedade e posse), alcança a “integridade
física, a vida, a saúde e a liberdade individual”[10].
Por óbvio, nestes casos não se protege unicamente o patrimônio, há direitos
indisponíveis lesionados. Nada mais natural, portanto, que o Estado assuma
sozinho o ônus de iniciar uma ação penal. Os elementos que informam a
culpabilidade no próprio tipo justificam tal iniciativa.
O
mesmo não se pode assegurar certeza com relação aos demais tipos dos crimes
patrimoniais. Assim, na apropriação indébita acidental de coisa alheia havida
por erro, caso fortuito ou força da natureza, crime previsto no art. 169, caput,
cuja pena é de detenção de apenas um mês a um ano, a iniciativa da ação penal é
publica incondicionada. Ora, o sujeito passivo do delito é o particular que
teve o seu bem apropriado por erro, caso fortuito ou coisa da natureza e o legislador,
assim, não quis saber se há ou não interesse do proprietário ou possuidor em
retomar o seu bem, ou a que ponto isso de fato representa uma lesão ao seu
patrimônio. Como se trata de iniciativa de ofício, mesmo que não haja nenhuma
manifestação do proprietário, se um terceiro noticiar as autoridades, a ação
penal pode ser iniciada com todas as suas consequências. Trata-se de uma
intervenção arbitrária e antiquada.
Tal
fato, a iniciativa incondicionada da ação para o delito de apropriação
acidental de coisa alheia, se torna mais evidente, quando o legislador comina,
como contraponto, para o dano qualificado por motivo egoístico ou para aquele
dano que causou prejuízo considerável à vítima (art. 163, IV) a possibilidade
de se proceder mediante ação penal privada. Ora, aqui o prejuízo é
considerável, de grande monta, ou o crime foi cometido por motivo egoístico,
mas mesmo assim o legislador optou, sem qualquer critério, pela ação penal de
iniciativa privada. O elemento subjetivo do tipo que no dano é de destruir,
inutilizar, enquanto que no crime do artigo 169 é de apropriar-se de coisa
alheia que veio ao seu poder, não justifica, por si, essa diferenciação.
No
mesmo sentido podemos argumentar com relação ao furto (art. 155), cuja
iniciativa é incondicionada, comparando-se com a conduta de fraudar a execução,
alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas –
crime de fraude à execução (art. 179), de iniciativa meramente privada. Qual
seria de fato a conduta mais grave, mais reprovável? Por que qualificar a
simples subtração em detrimento da fraude processual, que sabemos ter muito
mais poder ofensivo, e que comporta não só lesão ao particular como também ao
interesse público, em razão de ofensa à própria administração da Justiça?
Procurando encontrar a lógica, estabelecer uma diferenciação conceitual, nos
deparamos com uma inusitada ausência de explicação.
Ademais,
estamos argumentando sobre bens de origem patrimonial, derivados da propriedade
e da posse, direito absoluto, garantido constitucionalmente. Não é razoável que
qualquer ação penal, nos casos dos crimes contra o patrimônio, salvo os crimes
complexos, se inicie de forma incondicionada, sem a manifestação explícita do
titular do bem que se procura tutelar. No fundo, quando estabelecemos uma linha
de aproximação de todos os tipos penais previstos para os crimes contra o
patrimônio, encontramos um mesmo resultado: a perda patrimonial seja ela
ocorrida pela subtração, usurpação, destruição ou inutilização, apropriação e
alienação ou desvio de um bem móvel ou imóvel. Trata-se, no fim, de perda
patrimonial, nada mais, o que nos remete ao caráter sancionatório do Direito
Penal, no tocante aos delitos patrimoniais, destacado por Heleno Fragoso.
Ao
se estabelecer formas de se iniciar uma ação penal diferenciada, para a
proteção do mesmo bem jurídico (patrimônio), deveria haver uma forma mais
racional adotada pelo legislador e não tão discricionária e sem conteúdo. Os
exemplos se sucedem: o crime de outras fraudes (art. 176) consiste em “tomar
refeições em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de
transporte sem dispor de recurso para o pagamento”. Para tanto, tem a previsão
de uma pena de detenção de quinze dias a dois meses. Trata-se, obviamente, de
um crime patrimonial, que pode ocorrer diante de diversas situações. Nada
melhor do que o legislador transferir ao titular do patrimônio lesado pela
ausência do pagamento da refeição, da diária ou da passagem a decisão de
acionar ou não o Estado através de uma representação, para que esse possa
postular a pena correspondente ao delito praticado. A decisão será sempre do
titular do direito lesionado.
Neste
delito, em particular, o legislador andou muito bem, adotando a representação
(parágrafo único do artigo 176), o que só faz ressaltar a incoerência com
relação aos demais. Por que tantos critérios diferentes se estamos, de fato,
trabalhando sempre com a mesma natureza de resultados na conduta lesiva?
Diversos
doutrinadores oferecem uma razoável explicação para a ocorrência das três
formas possíveis de se iniciar uma ação penal. Disseca-se o instituto, mas não
a razão de ter sido elegida essa ou aquela iniciativa nos crimes patrimoniais.
Assim, “por considerar os efeitos mais gravosos aos interesses individuais, o
Estado atribui ao ofendido o direito de avaliar a oportunidade e a conveniência
de promover a ação penal”[11].
Segundo Cezar Roberto Bitencourt, “na ação penal pública condicionada há uma
relação complexa de interesses, do ofendido e do Estado. De um lado, o direito
legítimo do ofendido de manter o crime ignorado; de outro o interesse público
do Estado em puni-lo: assim não se move sem a representação do ofendido, mas
iniciada a ação pública pela denúncia, prossegue até o final sob o comando do
Ministério Público”. Talvez esse seja o ponto de equilíbrio que necessitamos ao
tratarmos dos delitos patrimoniais.
Eugenio
Pacelli[12]
contribui, nesse sentido, ao assegurar que de fato a persecução penal evidencia
sempre o interesse público, mas “há casos em que outra ordem de interesses,
igualmente relevantes, devem ser tutelados pelo ordenamento processual.
Trata-se de proteção da vítima de determinados crimes contra os deletérios
efeitos que, eventualmente, podem vir causados pela divulgação pública do fato.
Por isso, em razão do que a doutrina convencionou chamar de strepitus
iudicii (escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal), reserva-se a
ela o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da ação penal, com
objetivo de evitar a produção de novos danos em seu patrimônio – moral, social,
psicológico, etc. – diante de possível repercussão negativa trazida pelo
conhecimento generalizado do fato criminoso”.
Tourinho
Filho defende que “às vezes, o Estado, embora considerando o interesse da
repressão, leva em conta outros interesses, ou outras situações. Às vezes, o
delito cometido afeta tão profundamente a esfera íntima e secreta de um
indivíduo, que o Estado, em face da gravidade, faz respeitar a vontade da
vítima ou de quem legalmente a represente, evitando, assim, que a intimidade
ferida pela infração o seja novamente pelo strepitus fori (v. Sebastian
Soler, Derecho, cit., v.2, p. 500). Nesses casos, adverte o insigne Frank,
surge um conflito de interesse entre a necessidade da repressão e o respeito à
intimidade pessoal. O Estado prefere, então, deixar ao arbítrio do ofendido a
apreciação dos interesses familiares, íntimos e sociais que podem estar em
jogo. Concede-lhe o Estado o direito de julgar da conveniência ou
inconveniência da propositura da ação”[13].
A
intimidade e a vida privada, levantadas por Tourinho Filho, têm proteção
constitucional (art. 5º, X), e, como se não bastasse, dispõe a Convenção
Americana de Direitos Humanos que “ninguém pode ser objeto de ingerências
arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família” (art. 11.2).
Existem,
também, outros argumentos, defendidos por Eugenio Pacelli, que precisam ser
registrados. Além de uma questão pragmática, “se o ofendido não dispuser
confirmar em juízo a ação dificilmente chegará a um bom termo”[14],
trata-se da própria constatação da lesividade[15]
efetivada pelo proprietário ou possuidor do bem, que justificariam a
manifestação do ofendido. Se para esse a lesão não tem relevância, porque
haveria para a sociedade, de modo a justificar uma ação pública incondicionada,
por exemplo, no crime de furto (art. 155) ou de apropriação de coisa achada
(art. 169, II)?
Analisando
esses aspectos sobre o pondo de vista do direito material, Zaffaroni e
Pirangeli ensinam que o “acordo é uma forma de aquiescência que configura uma
causa de atipicidade, mas que deve ser cuidadosamente diferenciada do
consentimento, que só pode ser um limite a alguma causa de justificação. O
acordo é precisamente o exercício da disponibilidade que o bem jurídico
implica, de modo que, por maior que seja a aparência de tipicidade que tenha a
conduta, jamais o tipo pode proibir uma conduta para qual o titular do bem
jurídico tenha prestado a sua conformidade”.
Assim,
se processualmente é fundamental a manifestação de vontade da vítima que teve o
seu direito disponível lesionando, como condição de procedibilidade para a ação
penal, materialmente, nos casos dos crimes patrimoniais em especial, não se
pode prescindir dessa manifestação para se caracterizar ou não a aquiescência
do prejudicado, com relação à possibilidade de dispor do bem jurídico em
questão.
Nos
crimes patrimoniais, de acordo com a sistemática adotada por nosso Código
Penal, ainda na vigência da Constituição de 1937, o exercício da ação penal
incondicionada, salvo nos crimes complexos, distribuída de forma aleatória e
sem critérios, fere frontalmente o direito constitucional à intimidade e a vida
privada do ofendido, consubstanciando-se em um desrespeito a vítima, tutelada
como se fosse sempre hipossuficiente, inclusive para demonstrar o seu
inconformismo com determinadas condutas. Esse exercício arbitrário fere, ainda,
o direito de propriedade, que se revela substancialmente na sua
disponibilidade, no ato unilateral de sua renúncia.
1.3.
Conclusão.
Insistir
na propositura de ações penais incondicionadas para delitos patrimoniais, salvo
os crimes complexos, fere frontalmente a ordem constitucional hoje
estabelecida, não sendo necessária a edição de norma específica para regular a
espécie.
Se
o proprietário tem o dever de dispor de seus bens, não é admissível que, nos
crimes contra o patrimônio – e aqui se inclui os crimes contra a propriedade
imaterial –, o Estado proceda de forma direta, sem ouvir a vítima se possui ou
não interesse na punição do agente.
Por
fim, pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e da isonomia, não é
admissível que o crime de violação de direito autoral seja processado mediante
ação penal pública enquanto os demais crimes contra a propriedade imaterial são
processados mediante ação penal privada (com a emblemática e justificável
exceção do art. 191 da Lei 9.279/1996, cuja vítima é um Estado Nacional).
Assim,
necessário se reconhecer a inconstitucionalidade da distinção, para se exigir
que o crime em questão seja processado mediante ação penal privada, intimando-se
a(s) vítima(s) para, querendo, ingressar com queixa-crime.
[1] Necessário se
observar que os argumentos apresentados neste capítulo são de mérito do
Defensor público Fernando Calmon
(http://jus.com.br/revista/texto/13767/digressoes-sobre-os-direitos-disponiveis-os-crimes-patrimoniais-e-a-acao-penal-de-iniciativa-publica).
[2] Paulo Nader.
Curso de Direito Civil. Volume 1. Parte Geral. 2ª edição. 2004. Editora
Forense, p. 295.
[3] Apud,
Francisco de Assis Toledo. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª edição.
Editora Saraiva, p. 16.
[4] Francisco de
Assis Toledo. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª edição. Editora Saraiva,
p. 15.
[5] Eugênio Raúl
Zaffaroni e José Henrique Pirangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. Volume
I. Parte Geral. 7ª edição. 2008. Editora Revista dos Tribunais, p. 399.
[6] Orlando Gomes.
Direitos Reais. 9ª edição. 1985. Editora Forense, p. 86..
[7] Orlando Gomes
Idem, p. 177.
[8] Dos Delitos e
da Pena. Edição eletrônica. Editora Ridendo Castigat Moraes. Sitio eletrônico www.jahr.org.
[9] Júlio Fabbrini
Mirabete. Processo Penal. 4ª edição. 1995. Editora Atlas, p. 105/106.
[10] Damásio E. de
Jesus. Código Penal Anotado. 19 edição. 2009. Editora Saraiva, p. 583.
[11] Cezar Roberto
Bitencourt. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 14ª edição. 2009. Editora
Saraiva, p. 755/756.
[12] Eugênio
Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen
Juris, p. 121.
[13] Fernando da
Costa Tourinho Filho. Processo Penal. 1º volume. 13ª edição. 1992. Editora
Saraiva, p. 282/283.
[14] Eugênio
Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen
Juris, 120.
[15] Eugênio
Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen
Juris, 121.
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