terça-feira, 20 de setembro de 2011

Inconstitucionalidade da Inciciativa Pública no crime do art. 184 CP - Da Série Seis teses sobre a violação de direitos autorais (Parte I)

Os argumentos apresentados neste capítulo, em sua quase totalidade, são de mérito do Defensor público Fernando Calmon (clique aqui para conhecer seu artigo).

1. Necessidade da iniciativa privada para a ação penal pública pelo crime de violação de direitos autorais.
1.1. Peculiaridade dos crimes patrimoniais sem violência[1].
1.1.1. Introdução do problema.

Embora o sistema jurídico deva ser um todo único, infelizmente não é pouco comum o surgimento de normas que guardam contradição e/ou desproporcionalidade.

Embora a Constituição Federal garanta o direito de propriedade (art. 5º, XXII), bem como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), o legislador penal tipifica inúmeros crimes e decide, de forma discricionária e desarrazoada, a quem caberá a iniciativa da ação penal, o que pode constituir, em determinadas situações, em uma afronta aos direitos da própria vítima.

1.1.2. Dos Direitos Disponíveis.

Numa concepção civilista, bem jurídico também pode ser conceituado como coisa material ou imaterial apropriável, útil à pessoa humana e revestida de valor econômico que pode ser objeto de uma relação jurídica. Paulo Nader sustenta uma diferenciação entre bem e coisa, sendo aquele considerado gênero, porquanto pode comportar objetos sem valor econômico, enquanto, este, espécie, uma vez que se refere somente a objetos corpóreos[2]. Welzel doutrina que “o bem jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, é juridicamente protegido”[3]. Nas palavras de Toledo, “é tudo que nos apresenta como útil, necessário, valioso”[4].

Por outro lado, em uma concepção pura do Direito Penal, lecionam Zaffaroni e Pirangeli, que “bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”[5]. Portanto, o bem jurídico que se protege “não é a propriedade, e sim o direito de dispor dos próprios direitos patrimoniais”.

A Constituição Federal assegura o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e a lei civil dispõe que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou a detenha (art. 1228). Tal propriedade se presume plena e exclusiva, até prova em contrário (art. 1231).

A propriedade é um fato absoluto, erga omnes, pleno, conferindo ao titular o “poder de decidir se deve usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo, por desmembramento, outros direitos reais em favor de terceiros[6].

Limitando-nos a tratar de coisas apropriáveis, úteis e de valor econômico, que podem ser de alguma forma objeto de subtração, usurpação, destruição, dentre outras condutas dos tipos elencados nos crimes contra o patrimônio, podemos concluir, com segurança, que uma característica qualificada do poder inerente à propriedade e a posse é a disposição.

Pode-se dispor da propriedade por diversas formas e, dentre elas, pela renúncia (art. 1275, II). Ou seja, na melhor descrição de Orlando Gomes, “ato pelo qual o proprietário declara explicitamente o propósito de despojar-se do seu direito. Independe do abandono material da coisa. Para valer, não necessita de aceitação de quem quer que seja. É nimiamente um ato unilateral. Mas para produzir efeitos, mister se faz, em nosso direito, que o ato renunciativo seja transcrito no Registro de Imóveis. A renúncia da propriedade dos bens móveis não está subordinada a qualquer exigência para a sua eficácia”[7].

Assim, se constitucionalmente temos a garantia do direito de propriedade, na mesma gradação temos o direito de renunciar à propriedade, constituindo-se, também e por derivação, em uma garantia de concepção constitucional, porquanto inerente à própria natureza da disponibilidade do instituto da propriedade. O exercício do direito de ter ou não ter (direito subjetivo), desde que não viole comando normativo, não pode sofrer qualquer limitação, sendo da mesma forma absoluto, não guardando, por consequência, qualquer dependência de autorização ou aceitação de terceiros.

1.1.3. Dos crimes contra o patrimônio.

Os crimes contra o patrimônio estão organizados no Título II do Código Penal, em sete capítulos (furto, o roubo e a extorsão, a usurpação, o dano, a apropriação indébita, o estelionato e outras fraudes e a receptação) comportando trinta e quatro tipos penais. Este título trata da subtração de bens físicos, corpóreos.

No universo dos crimes contra o patrimônio, encontramos penas que variam o seu mínimo de 15 dias, no caso do crime de outras fraudes, previsto pelo art. 176, para o mínimo de 24 anos, quando ocorre a extorsão mediante sequestro seguido de morte, disposto na segunda parte do §3º do art. 159. Podemos encontrar também crimes de ação penal pública, pública condicionada e privada.

A mais enfática das inúmeras incoerências deste Título do Código Penal, dentre tantos tipos penais, é o furto. Trata-se de uma conduta tão antiga quanto o próprio direito de propriedade, de grande repercussão histórica, moral e religiosa, porquanto sua proibição já constava nos dez mandamentos e no Código de Hamurabi (datado de por volta de 1.700 a.C.).

No entanto, tal conduta, em comparação com alguns outros crimes contra o patrimônio, demonstra uma reprovabilidade exacerbada e sem nenhuma explicação aparentemente jurídica. Talvez sociológica ou cultural, mas não jurídica.

Com se não bastasse a desproporcionalidade da pena entre, por exemplo, o furto (01 a 04 anos) e a alteração de limites (01 a 06 meses), saliente-se que este é crime de menor potencial ofensivo, e o furto não. A pena daquele é de detenção e deste de reclusão. A prescrição em abstrato do crime de furto é de oito anos (art. 109, IV) e da alteração de limites de apenas dois anos (art. 109, VI).

Percebe-se, em uma escala de valores, que o Código Penal empresta maior reprovabilidade à conduta do furto do que a de alteração de limites, apesar de ambas serem uma forma de subtração/apropriação de coisa alheia. No entanto, observe-se que o crime de alteração de limites, normalmente, é mais danoso à vítima, além de implicar conflito entre vizinhos, com potencial para gerar graves consequências.

Por sua vez, o crime de esbulho possessório (art. 161, II), que se revela com a invasão, mediante violência ou grave ameaça ou concurso de mais de duas pessoas, a terreno ou edifício alheio (bem imóvel), também é reprimido com a mesma pena da alteração de limites. O Código Penal decreta que a subtração simples de coisa móvel é definitivamente mais grave que a invasão a imóvel com o fim de usurpar, mesmo se cometido com violência ou grave ameaça. Contra essa patente ausência de lógica, não há argumentos.

Seria determinante, então, o fato de que o sujeito ativo do furto normalmente se atém aos elementos marginalizados, sem importância social, e que, em regra, não são proprietários de imóveis? É possível. Apesar de existir furto de obras de artes de grande valor econômico, obviamente o imaginário social conecta a figura do ladrão a algo biltre, reles, vil. Por outro lado, para se apropriar de um bem imóvel, alterando limites, pressupõe-se que o autor do fato não é marginal, mas proprietário de terra e o mais grave, vizinho do lesionado.

O furto também é marginalizado com relação ao crime de dano, ou seja, destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia (art. 163), que na sua forma simples prevê a pena de detenção de 01 a 06 meses, idêntica à alteração de limites. Desse modo, se alguém subtrair coisa alheia que posteriormente for encontrada e restituída ao proprietário, configurando, no entanto, a consumação do crime de furto, será apenado com reclusão de 01 a 04 anos. Se, no entanto, em vez da subtração, o agente resolver destruir o mesmo objeto, que nunca mais terá utilidade para o seu dono, que perderá, assim, a possibilidade de usar, gozar ou dispor do seu bem (ofensa real ao direito de propriedade constitucionalmente assegurado), a pena mínima é será de 1/12 e a máxima de 1/8 da pena do crime de furto.

É interessante, também, destacar que o objeto material do crime de dano tanto pode ser a propriedade móvel como imóvel, diferentemente do furto. Além do mais se o dano for cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; com emprego de substância inflamável ou explosiva; contra o patrimônio público, de concessionária de serviço público ou sociedade de economia mista, ou, ainda, por motivo egoístico com prejuízo considerável para a vítima (art. 163, parágrafo único), a pena mínima continua sendo somente a metade (seis meses) do crime de furto simples ou ¼ da pena mínima do furto qualificado (art. 155, §4º). Trata-se de uma desproporção igualmente inexplicável.

Afinal, é possível sorver cada palavra pregada por Cesare Beccaria[8], desde o século XVIII, incomodado com a demora na reação do Estado a problemas que com nitidez são identificados, e que até hoje depende de uma postura mais ativa da sociedade no sentido de enfrentamento dessas graves questões. Nada do que foi escrito por Beccaria, é resultado de uma mera coincidência:

"Um roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena pecuniária. É justo que quem rouba o bem de outrem, seja despojado do seu.

Mas, se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero, se esse delito só é cometido por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) só deixou a existência como único bem, as penas pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o número de indigentes, arrancando o pão a uma família inocente, para dá-lo a um rico talvez criminoso.
(...)
O roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a sã política deve admitir, ainda mais do que as matemáticas, o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos, há uma distância infinita.

Essas coisas foram ditas, mas é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em práticas. Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido; é, porém, moroso, imprimir-lhe um novo movimento".

1.1.4. Dos crimes contra a propriedade imaterial.

Logo em seguida aos crimes contra o patrimônio, no Título III, sob o título “Dos Crimes Contra a Propriedade Imaterial”. Neste título, originalmente composto por quatro capítulos e dezenove tipos penais, resta apenas o crime de violação de direito de autor. Os demais crimes foram substituídos por previsões específicas constantes na Lei 9.279/1996, que regula a propriedade industrial.

Corpóreo ou imaterial, a objetividade jurídica de todos estres crimes é proteger o direito de alguém possuir bens. Portanto, são crimes correlatos, distintos entre si quanto à conduta do agente e quanto à forma como o patrimônio de alguém é lesado.

Nos crimes contra a propriedade imaterial previstos na Lei 9.279/1996, as penas variam de um mínimo de um mês (como no crime contra patente) a três meses (como no crime contra registro de marca). A pena máxima mais alta é um ano (como nos crimes de concorrência desleal). Todos os crimes são de competência dos Juizados Especiais. Todos os crimes são de ação penal privada, com exceção do crime previsto no art. 191, onde é tipificada a conduta de utilizar sem autorização símbolos oficiais nacionais, estrangeiros ou internacionais. Repita-se: o único crime contra a propriedade imaterial previsto na Lei 9.279/1996 que não é de ação penal privada é justamente aquele em que a vítima não é uma pessoa privada, mas Estados.

Diferente fenômeno ocorre no crime contra a propriedade imaterial remanescente do Código Penal, justamente a violação de direito autoral. Em sua forma simples, no caput do art. 184, a violação de direito autoral é crime de ação penal privada e de competência dos Juizados Especiais, com pena de 03 meses a 01 ano, totalmente compatível com os crimes previstos na Lei 9.279/1996. No entanto, se houver intenção de lucro e se tratar de obra audiovisual, a pena dá um incrível salto para 02 a 04 anos e o Ministério Público deve proceder a acusação independentemente até mesmo de representação, esdruxulamente tutelando o direito patrimonial de artistas famosos e grandes corporações.

Observe-se que, a rigor, não há diferença significativa entre os crimes da Lei 9.279/1996 e a chamada “pirataria” de obra audiovisual. Nada justifica tratamento tão diferenciado.

A Lei 9.279/1996 trata, por exemplo, de: crime contra patente, invenção ou modelo de utilidade (art. 183), com pena de 03 meses a 01 ano de detenção, ou multa; crime contra registro de desenho industrial (art. 188), com pena de 01 a 03 meses de detenção, ou multa; entre outros.

Por outro lado, fenômeno interessante se observa.

Os crimes contra a propriedade imaterial do Código Penal que foram revogados pela Lei 9.279/1996 tiveram suas penas abrandadas. Por exemplo, o antigo crime de violação de privilégio de invenção possuía pena de 06 meses a 01 ano e multa. Com a nova lei, passou a pena a ser de 03 meses a 01 ano, ou multa.

Por outro lado, provavelmente em decorrência dos pesados lobbys dos artistas e grandes corporações ligadas à mídia audiovisual, a pena de violação de direito do autor que a estes grupos interessava, a pena mínima foi exasperada de um para dois anos, justamente afastando este tipo de conduta dos juizados especiais.

Não se trata aqui de mera inconsistência, mas de ofensa descarada ao princípio da proporcionalidade e da isonomia. Não é admissível a manutenção destas disparidades, como também não é admissível que as grandes corporações utilizem o Ministério Público como seus advogados particulares.

1.2. Da Iniciativa da Ação Penal.

O direito de agir (subjetivo) para exigir que o Estado aplique o direito (objetivo), diante de uma transgressão aos limites impostos por uma norma comportamental, só é possível com o exercício do devido processo legal (garantia constitucional), consubstanciando-se, ao final, no direito estatal de punir. Mirabete assegura que “sendo o crime um fato que lesa direitos do indivíduo e da sociedade, cabe ao Estado reprimi-lo com o exercício do jus puniendi. O direito subjetivo de punir, que é mais o dever de punir, não é ilimitado, vinculando-se o Estado ao direito objetivo, tanto na imputação, circunscrita aos fatos típicos, como nas penas a serem aplicadas. Além disso, para exercitar o direito de punir é necessário que haja processo e julgamento, já que não pode o Estado impor, arbitrariamente, a sanção”.[9]

A legitimidade ativa ad causam para o exercício da ação penal, segundo o nosso ordenamento, possui três formas: a iniciativa pública incondicionada; a pública condicionada e a privada. A regra estabelece que a ação penal seja sempre de iniciativa pública, promovida pelo Ministério Público, salvo quando a lei a declara privativa do ofendido (art. 100). A lei também deve ser expressa quando a ação do Ministério Público exige representação do ofendido (art. 100, §1º).

Nos crimes patrimoniais, existe a possibilidade de se iniciar uma ação penal de todas as três formas permitidas. Tomando o direcionamento da regra do artigo 100 do Código Penal ou do artigo 24 do Código de Processo Penal, ou seja, pela exceção, se inicia uma ação penal condicionada à representação apenas nos crimes de furto de coisa comum (§2º do art. 156) e outras fraudes (parágrafo único do art. 176). Já a iniciativa por ação penal privada é permitida expressamente nos crimes de alterações de limites, usurpação de águas e esbulho possessório, quando não forem cometidos com violência (§3º do art. 161); dano simples, dano qualificado cometido por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima e a introdução ou abandono de animais em propriedade particular (art. 167); e, por fim, fraude à execução (parágrafo único do art. 179). Nos demais, para todos os crimes, a iniciativa é sempre pública incondicionada.

Há de se indagar qual foi o critério que o legislador elegeu para considerar que um crime contra o patrimônio possa ter a iniciativa da ação penal incondicionada, condicionada à representação ou privada. Se a primeira hipótese é a regra, o que importa na diferenciação das demais? Quais são os argumentos que embasaram essa determinação?

Certamente podemos, desde logo, afastar os casos de crimes complexos, onde se protege dois ou mais bens jurídicos, como, por exemplo, nos casos de roubo (art. 157), extorsão (art. 158) e extorsão mediante sequestro (art. 159), em que o objeto jurídico, além do patrimônio (propriedade e posse), alcança a “integridade física, a vida, a saúde e a liberdade individual”[10]. Por óbvio, nestes casos não se protege unicamente o patrimônio, há direitos indisponíveis lesionados. Nada mais natural, portanto, que o Estado assuma sozinho o ônus de iniciar uma ação penal. Os elementos que informam a culpabilidade no próprio tipo justificam tal iniciativa.

O mesmo não se pode assegurar certeza com relação aos demais tipos dos crimes patrimoniais. Assim, na apropriação indébita acidental de coisa alheia havida por erro, caso fortuito ou força da natureza, crime previsto no art. 169, caput, cuja pena é de detenção de apenas um mês a um ano, a iniciativa da ação penal é publica incondicionada. Ora, o sujeito passivo do delito é o particular que teve o seu bem apropriado por erro, caso fortuito ou coisa da natureza e o legislador, assim, não quis saber se há ou não interesse do proprietário ou possuidor em retomar o seu bem, ou a que ponto isso de fato representa uma lesão ao seu patrimônio. Como se trata de iniciativa de ofício, mesmo que não haja nenhuma manifestação do proprietário, se um terceiro noticiar as autoridades, a ação penal pode ser iniciada com todas as suas consequências. Trata-se de uma intervenção arbitrária e antiquada.

Tal fato, a iniciativa incondicionada da ação para o delito de apropriação acidental de coisa alheia, se torna mais evidente, quando o legislador comina, como contraponto, para o dano qualificado por motivo egoístico ou para aquele dano que causou prejuízo considerável à vítima (art. 163, IV) a possibilidade de se proceder mediante ação penal privada. Ora, aqui o prejuízo é considerável, de grande monta, ou o crime foi cometido por motivo egoístico, mas mesmo assim o legislador optou, sem qualquer critério, pela ação penal de iniciativa privada. O elemento subjetivo do tipo que no dano é de destruir, inutilizar, enquanto que no crime do artigo 169 é de apropriar-se de coisa alheia que veio ao seu poder, não justifica, por si, essa diferenciação.

No mesmo sentido podemos argumentar com relação ao furto (art. 155), cuja iniciativa é incondicionada, comparando-se com a conduta de fraudar a execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas – crime de fraude à execução (art. 179), de iniciativa meramente privada. Qual seria de fato a conduta mais grave, mais reprovável? Por que qualificar a simples subtração em detrimento da fraude processual, que sabemos ter muito mais poder ofensivo, e que comporta não só lesão ao particular como também ao interesse público, em razão de ofensa à própria administração da Justiça? Procurando encontrar a lógica, estabelecer uma diferenciação conceitual, nos deparamos com uma inusitada ausência de explicação.

Ademais, estamos argumentando sobre bens de origem patrimonial, derivados da propriedade e da posse, direito absoluto, garantido constitucionalmente. Não é razoável que qualquer ação penal, nos casos dos crimes contra o patrimônio, salvo os crimes complexos, se inicie de forma incondicionada, sem a manifestação explícita do titular do bem que se procura tutelar. No fundo, quando estabelecemos uma linha de aproximação de todos os tipos penais previstos para os crimes contra o patrimônio, encontramos um mesmo resultado: a perda patrimonial seja ela ocorrida pela subtração, usurpação, destruição ou inutilização, apropriação e alienação ou desvio de um bem móvel ou imóvel. Trata-se, no fim, de perda patrimonial, nada mais, o que nos remete ao caráter sancionatório do Direito Penal, no tocante aos delitos patrimoniais, destacado por Heleno Fragoso.

Ao se estabelecer formas de se iniciar uma ação penal diferenciada, para a proteção do mesmo bem jurídico (patrimônio), deveria haver uma forma mais racional adotada pelo legislador e não tão discricionária e sem conteúdo. Os exemplos se sucedem: o crime de outras fraudes (art. 176) consiste em “tomar refeições em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recurso para o pagamento”. Para tanto, tem a previsão de uma pena de detenção de quinze dias a dois meses. Trata-se, obviamente, de um crime patrimonial, que pode ocorrer diante de diversas situações. Nada melhor do que o legislador transferir ao titular do patrimônio lesado pela ausência do pagamento da refeição, da diária ou da passagem a decisão de acionar ou não o Estado através de uma representação, para que esse possa postular a pena correspondente ao delito praticado. A decisão será sempre do titular do direito lesionado.

Neste delito, em particular, o legislador andou muito bem, adotando a representação (parágrafo único do artigo 176), o que só faz ressaltar a incoerência com relação aos demais. Por que tantos critérios diferentes se estamos, de fato, trabalhando sempre com a mesma natureza de resultados na conduta lesiva?

Diversos doutrinadores oferecem uma razoável explicação para a ocorrência das três formas possíveis de se iniciar uma ação penal. Disseca-se o instituto, mas não a razão de ter sido elegida essa ou aquela iniciativa nos crimes patrimoniais. Assim, “por considerar os efeitos mais gravosos aos interesses individuais, o Estado atribui ao ofendido o direito de avaliar a oportunidade e a conveniência de promover a ação penal”[11]. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, “na ação penal pública condicionada há uma relação complexa de interesses, do ofendido e do Estado. De um lado, o direito legítimo do ofendido de manter o crime ignorado; de outro o interesse público do Estado em puni-lo: assim não se move sem a representação do ofendido, mas iniciada a ação pública pela denúncia, prossegue até o final sob o comando do Ministério Público”. Talvez esse seja o ponto de equilíbrio que necessitamos ao tratarmos dos delitos patrimoniais.

Eugenio Pacelli[12] contribui, nesse sentido, ao assegurar que de fato a persecução penal evidencia sempre o interesse público, mas “há casos em que outra ordem de interesses, igualmente relevantes, devem ser tutelados pelo ordenamento processual. Trata-se de proteção da vítima de determinados crimes contra os deletérios efeitos que, eventualmente, podem vir causados pela divulgação pública do fato. Por isso, em razão do que a doutrina convencionou chamar de strepitus iudicii (escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal), reserva-se a ela o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da ação penal, com objetivo de evitar a produção de novos danos em seu patrimônio – moral, social, psicológico, etc. – diante de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato criminoso”.

Tourinho Filho defende que “às vezes, o Estado, embora considerando o interesse da repressão, leva em conta outros interesses, ou outras situações. Às vezes, o delito cometido afeta tão profundamente a esfera íntima e secreta de um indivíduo, que o Estado, em face da gravidade, faz respeitar a vontade da vítima ou de quem legalmente a represente, evitando, assim, que a intimidade ferida pela infração o seja novamente pelo strepitus fori (v. Sebastian Soler, Derecho, cit., v.2, p. 500). Nesses casos, adverte o insigne Frank, surge um conflito de interesse entre a necessidade da repressão e o respeito à intimidade pessoal. O Estado prefere, então, deixar ao arbítrio do ofendido a apreciação dos interesses familiares, íntimos e sociais que podem estar em jogo. Concede-lhe o Estado o direito de julgar da conveniência ou inconveniência da propositura da ação”[13].

A intimidade e a vida privada, levantadas por Tourinho Filho, têm proteção constitucional (art. 5º, X), e, como se não bastasse, dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família” (art. 11.2).

Existem, também, outros argumentos, defendidos por Eugenio Pacelli, que precisam ser registrados. Além de uma questão pragmática, “se o ofendido não dispuser confirmar em juízo a ação dificilmente chegará a um bom termo”[14], trata-se da própria constatação da lesividade[15] efetivada pelo proprietário ou possuidor do bem, que justificariam a manifestação do ofendido. Se para esse a lesão não tem relevância, porque haveria para a sociedade, de modo a justificar uma ação pública incondicionada, por exemplo, no crime de furto (art. 155) ou de apropriação de coisa achada (art. 169, II)?

Analisando esses aspectos sobre o pondo de vista do direito material, Zaffaroni e Pirangeli ensinam que o “acordo é uma forma de aquiescência que configura uma causa de atipicidade, mas que deve ser cuidadosamente diferenciada do consentimento, que só pode ser um limite a alguma causa de justificação. O acordo é precisamente o exercício da disponibilidade que o bem jurídico implica, de modo que, por maior que seja a aparência de tipicidade que tenha a conduta, jamais o tipo pode proibir uma conduta para qual o titular do bem jurídico tenha prestado a sua conformidade”.

Assim, se processualmente é fundamental a manifestação de vontade da vítima que teve o seu direito disponível lesionando, como condição de procedibilidade para a ação penal, materialmente, nos casos dos crimes patrimoniais em especial, não se pode prescindir dessa manifestação para se caracterizar ou não a aquiescência do prejudicado, com relação à possibilidade de dispor do bem jurídico em questão.

Nos crimes patrimoniais, de acordo com a sistemática adotada por nosso Código Penal, ainda na vigência da Constituição de 1937, o exercício da ação penal incondicionada, salvo nos crimes complexos, distribuída de forma aleatória e sem critérios, fere frontalmente o direito constitucional à intimidade e a vida privada do ofendido, consubstanciando-se em um desrespeito a vítima, tutelada como se fosse sempre hipossuficiente, inclusive para demonstrar o seu inconformismo com determinadas condutas. Esse exercício arbitrário fere, ainda, o direito de propriedade, que se revela substancialmente na sua disponibilidade, no ato unilateral de sua renúncia.

1.3. Conclusão.

Insistir na propositura de ações penais incondicionadas para delitos patrimoniais, salvo os crimes complexos, fere frontalmente a ordem constitucional hoje estabelecida, não sendo necessária a edição de norma específica para regular a espécie.

Se o proprietário tem o dever de dispor de seus bens, não é admissível que, nos crimes contra o patrimônio – e aqui se inclui os crimes contra a propriedade imaterial –, o Estado proceda de forma direta, sem ouvir a vítima se possui ou não interesse na punição do agente.

Por fim, pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e da isonomia, não é admissível que o crime de violação de direito autoral seja processado mediante ação penal pública enquanto os demais crimes contra a propriedade imaterial são processados mediante ação penal privada (com a emblemática e justificável exceção do art. 191 da Lei 9.279/1996, cuja vítima é um Estado Nacional).

Assim, necessário se reconhecer a inconstitucionalidade da distinção, para se exigir que o crime em questão seja processado mediante ação penal privada, intimando-se a(s) vítima(s) para, querendo, ingressar com queixa-crime.



[1] Necessário se observar que os argumentos apresentados neste capítulo são de mérito do Defensor público Fernando Calmon (http://jus.com.br/revista/texto/13767/digressoes-sobre-os-direitos-disponiveis-os-crimes-patrimoniais-e-a-acao-penal-de-iniciativa-publica).
[2] Paulo Nader. Curso de Direito Civil. Volume 1. Parte Geral. 2ª edição. 2004. Editora Forense, p. 295.
[3] Apud, Francisco de Assis Toledo. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª edição. Editora Saraiva, p. 16.
[4] Francisco de Assis Toledo. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª edição. Editora Saraiva, p. 15.
[5] Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pirangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. Volume I. Parte Geral. 7ª edição. 2008. Editora Revista dos Tribunais, p. 399.
[6] Orlando Gomes. Direitos Reais. 9ª edição. 1985. Editora Forense, p. 86..
[7] Orlando Gomes Idem, p. 177.
[8] Dos Delitos e da Pena. Edição eletrônica. Editora Ridendo Castigat Moraes. Sitio eletrônico www.jahr.org.
[9] Júlio Fabbrini Mirabete. Processo Penal. 4ª edição. 1995. Editora Atlas, p. 105/106.
[10] Damásio E. de Jesus. Código Penal Anotado. 19 edição. 2009. Editora Saraiva, p. 583.
[11] Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 14ª edição. 2009. Editora Saraiva, p. 755/756.
[12] Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen Juris, p. 121.
[13] Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo Penal. 1º volume. 13ª edição. 1992. Editora Saraiva, p. 282/283.
[14] Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen Juris, 120.
[15] Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen Juris, 121.

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