quarta-feira, 14 de março de 2012

ADIs 3892 e 4270 - Santa Catarina e seu modelo alternativo à Defensoria Pública

O ano de 2008 foi muito especial para mim. Tomei posse como Defensor Público no final de agosto e, já em outubro tive a oportunidade de participar do Congresso Nacional dos Defensores Públicos daquele ano e defender uma tese que acabou sendo aprovada em primeiro lugar. Para terminar, falei para os colegas de todo o Brasil no encerramento do evento. Muitos choraram comigo naquele dia.

A minha tese foi a Inconstitucionalidade dos Meios Alternativos à Defensoria Pública, que pode ser lida no Jus Navigandi.

Na data de hoje, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar muitos dos argumentos que levantei naquela tese.

A ADI 3892 é de 2007 e foi ingressada pela Associação dos Defensores Públicos Federais (ANADEF). A ADI 4270 é de 2009 e é da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP). Diversas instituições, entre elas a Associação de Juizas para a Democracia (AJD), foram admitidas como amicus curiae.

Resumindo o problema, Santa Catarina se nega a instalar sua Defensoria Pública e estabeleceu um sistema alternativo. Foi formatada uma tabela de pagamento para defensores dativos e a OAB, em troca de 10%, gerencia o repasse dos montantes do Estado para os advogados cadastrados.

ANADEF e ANADEP entendem que a assistência jurídica gratuita deve ser de qualidade. O Defensor Público é aprovado mediante concurso público e tem a qualidade de seu trabalho acompanhada por uma corregedoria. O Defensor Público tem autonomia funcional, podendo inclusive processar o Estado que o emprega. O Defensor Público é impedido de advogar, devendo se dedicar exclusivamente à defesa dos necessitados. O Defensor Público possui (ou deveria possuir) uma estrutura funcional para lhe dar suporte.

O modelo de Santa Catarina não atende estes requisitos de garantia de qualidade.

Gostaria de fazer uma análise diferente das efetuadas no julgamento e mesmo na minha tese. Parto de uma conversa que tive com um juiz de Santa Catarina. O magistrado me relatou o pequeno valor que o advogado recebe por processo (parece-me que cerca de R$ 700,00) e a péssima qualidade da maioria dos advogados que se submete a receber este valor.

Quando o estudante está no curso de Direito, ocorre uma divisão natural entre os que desejam ser advogados e os que desejam realizar concurso (a grande maioria).

Dentre os que desejam advogar, poucos descobre realmente possuir vocação para o negócio - os chamarei de feras. Os demais não têm qualidade para se destacar e lutam para se manter - os chamarei de rábulas.

Dentre os que querem realizar concursos, poucos possuem a dedicação (e a sorte?) necessária para conseguir uma rápida aprovação - os chamarei de nerds. Outros conseguem a aprovação, mas demoram um bocado para isso. Alguns advogam por necessidade e tentam conciliar estudo e trabalho - os chamarei de atolados. Por fim, a maioria acaba desistindo e, contra a vontade, contentam-se com a advocacia - são os frustrados.

Quero observar que a divisão acima é minha particular visão das coisas e, como é óbvio, não pode lida com absolutismo. Cada grupo admite subdivisões e exceções. Tem bacharel que não passa em concurso, mas se torna grande advogado. Tem advogado que nunca quis fazer concurso mas que, por um motivo ou por outro, repentinamente acaba resolvendo fazer concurso... Enfim, tem de tudo.

Mas acho que a classificação acima chega bem perto das principais situações.

Pois bem. Quem são os advogados que vão defender os necessitados em um sistema como o de Santa Catarina?

Bom, os feras dificilmente fazem serviço pro bono. Podem até pegar um ou outro caso para gradar o amigo juiz, mas o verdadeiro trabalho será feito pelos seus estagiários ou advogados recém formados contratados pelo seu escritório.

Os nerds advogam só o necessário para "inteirar" o prazo necessário para a prática jurídica exigida nos concursos públicos. Normalmente em escritórios da família ou de amigos.

Assim, o necessitado acabará sendo defendido pelos rábulas, atolados ou frustrados. E aí seu direto vai pelo ralo.

Sejamos honestos, por pouco mais de um salário mínimo, que advogado qualificado vai aceitar trabalhar em um processo que pode durar anos e render diversas audiências? Que advogado que aceite uma remuneração como esta vai recorrer e mesmo chegar a provocar os tribunais superiores?

Talvez por isso, como disse Sérgio Sérvulo ao se manifestar hoje pela AJD, não tenha ele conseguido encontrar um único Habeas Corpus nos tribunais superiores e que sejam originados da "defensoria dativa" do Estado de Santa Catarina.

Para muitos, é claro, estas considerações são desimportantes. Afinal, para o pobre, "qualquer coisa serve".

Sobre o tema, refiro-me ainda ao post Defensoria Pública X Defensoria Dativa.

Por fim, o STF, à unanimidade, deu total procedência a ambas as ADIs e declarou inconstitucional o modelo catarinense. Houve uma interessante discussão sobre a modulação de efeitos. O relator sugeriu manter a eficácia das normas inconstitucionais por seis meses para dar tempo ao Estado para criar sua Defensoria. Prevaleceu o prazo de 12 meses.

2 comentários:

Ro Nogueira disse...

Meu caro, apenas para ilustrar teus comentários: para realizar defesa na execução de medida socioeducativa, que em alguns casos requer várias manifestações, várias audiências, pedidos especiais etc. o valor pago pela defensoria dativa de SC é de 5 URHs, o que equivale a menos de R$ 300,00. Não paga sequer os custos com combustível, papel etc. E tem muito, muito mais situações que impedem de uma defesa efetiva dos direitos subjetivos dos jurisdicionados, mas, nem vou comentar. A vaca está morta. Agora vamos ver como será o processo de instituição da nova defensoria...

Unknown disse...

Pois é Ro, continuando a ilustração, no meu primeiro mês como Defensor, se eu fosse receber pela tabela do convênio de SP, eu teria direito a R$ 122.000,00. Mas recebi, na época, pouco mais de R$ 3000,00.

Mas, mesmo que o modelo da Defensoria fosse mais caro, ele ainda seria melhor (em minha modesta opinião), posto que garante alguma qualidade do serviço (concurso, estrutura, independencia funcional, corregedoria...).

Certamente não serão os melhores advogados de SC que se aventurarão a receber os R$ 500,00 citados pelo amigo.